quarta-feira, julho 13, 2016

Dilma na nuvem - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 13/07

Vamos sentir saudades dela. Onde encontraremos outra tão deliciosamente inepta, magnificamente irresponsável e esplendidamente à vontade no seu sesquipedal despreparo? Ninguém se lhe compara na firmeza com que exerce seu desconhecimento sobre a lógica ou a aritmética mais simples. Ninguém a supera na arte de dizer sandices e, ao corrigir-se, dobrar a meta e dizer mais sandices. E ninguém faz isto num português tão tosco, singelo e de quinta. Refiro-me, claro, à ex-presidente Dilma Rousseff.

Depois de nos brindar com enunciados inesquecíveis sobre a mandioca, o vento estocado, a mulher sapiens, as pastas de dente que insistem em escapar do dentifrício e o meio ambiente como uma ameaça ao desenvolvimento sustentável, temia-se que seu afastamento nos privasse de novas contribuições ao nonsense. Mas Dilma não falha — é só colocar-se ao alcance de um microfone.

Sua última façanha está na internet e é facilmente acessível basta digitar "Dilma" e "nuvem". Ao saber outro dia que as acusações contra ela estão na "nuvem" — uma nova forma de armazenamento incorpóreo e universal de arquivos –, soltou os cachorros em entrevista a um canal de televisão.

"Pois bem", rugiu. "Inventam uma história fantástica. Que tá na nuvem. É. Tá na nuvem. Sei lá que nuvem. Sabe, eu não entendi muito bem essa história de nuvem. Tô aqui tentando apurar direitinho. Como é que uma coisa pode estar na nuvem? É muito simples estar na nuvem, não tem de provar. Que nuvem? Onde está a prova?"

A Dilma tá certa. Essa história de nuvem é mais uma tentativa de golpe contra uma mulher honesta, que fez o diabo para se eleger, digo, sofreu o diabo na ditadura. Quero ver provar. Mas o José Eduardo Cardozo [seu ministro de estimação, advogado e porta-voz] já está vendo isso. Ele vai desmoralizar essa nuvem.


É cada um por si e Deus só por alguns - JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 13/07

Fiasco albanês, um prócer irrelevante e um suspeito na polícia comandam a Câmara



Ao renunciar à presidência da Câmara dos Deputados na semana passada, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi de uma precisão cirúrgica quando desqualificou a atual administração da Casa ao empregar a expressão “interinidade bizarra”. Com o morteiro disparado na direção do primeiro sucessor do presidente (também interino) da República, Michel Temer, o ex-ocupante do poderoso e honorável posto, “sem querer querendo”, como rezava o mote do protagonista de um dos maiores sucessos da televisão brasileira, o mexicano Chaves, definiu a esdrúxula situação sob a qual vivemos todos nesta atual barafunda.

Esta nossa República é tudo menos honrada, serena e lógica. Os três Poderes atuam como se vivessem em mixórdia e intromissão permanentes, um nos outros e vice-versa, chamando o nefasto resultado geral, cínica e equivocadamente, de “autonomia”. Esta se impôs sobre a “harmonia” na base do braço de ferro e do berro mais alto. Nas atuais circunstâncias e há bastante tempo, o lema “ordem e progresso” da Bandeira Nacional não descreve a desordem vigente, a ponto de dever ser substituído por “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Em relação a esse recado generalizado à cidadania, o povo, impotente, fica na condição do “salve-se quem puder” e o resto que se dane.

De acordo com chamada na primeira página deste jornal, domingo, o segundo maior fornecedor da campanha vitoriosa da reeleição da presidente afastada, Dilma Rousseff, Carlos Augusto Cortegoso – conhecido como “garçom do Lula”, por tê-lo servido nos anos de liderança sindical no Demarchi, famoso restaurante no circuito do frango com polenta em São Bernardo do Campo –, movimentou quase R$ 50 milhões naquele pleito. Ou seja, cinco vezes o valor que declarou. Assim, a chapa Dilma-Temer teria cometido, conforme relatório da Receita Federal, duplo crime: foi financiada por caixa 2 e, ao declarar que as doações eram legais, lavou o dinheiro sujo na máquina da Justiça Eleitoral. Um desplante!

Caso o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) constate o duplo delito na investigação que promove sobre a validade dos votos sufragados em 2014, terá de mandar presidente e vice entregarem o poder ao presidente da Câmara dos Deputados, seja ele quem for. Este terá 90 dias para convocar eleição direta para um mandato-tampão até dezembro de 2018, quando, então, já terá sido eleito seu substituto constitucional. Em sufrágio direto e universal, se a disputa for este ano, antes de ser completada a primeira metade do mandato dado como usurpado por abuso de poder econômico (e com uso de dinheiro público, o que é mais grave). Ou em eleição indireta, pelo Congresso, se a decisão for posterior.

Ocorrendo isso, em qualquer das hipóteses, falirá a lorota do “impeachment sem crime é golpe”, que mantém o fio inconsútil do que ainda resta do mandato de Dilma e do PT. Seu substituto constitucional, Michel Temer, eleito vice também de forma supostamente ilícita, sucumbirá junto. E levará no féretro a equipe econômica mais equipada para tirar o Brasil da crise e reconstruir a credibilidade do Estado. A Nação ficará, na hipótese, a reboque de algum aventureiro que emergir das urnas ou do painel do plenário parlamentar, ambos eletrônicos. Não será algo a se chamar de “o melhor dos mundos”. Muito ao contrário!

A eleição direta, única capaz de refletir a vontade popular, é volátil a ponto de ter inflado, de um lado, Jânio, Collor e Dilma, produtos da paixão popular por aventureiros que se fingem de faxineiros contra a corrupção e terminam enredados nos crimes que denunciavam. E, de outro, Fernando Henrique e Lula, representantes de grupos políticos consolidados que terminaram se dissolvendo numa cultura de ácido implacável que derrete idolatrias e reputações. O tucano foi abatido pela vaidade do segundo mandato. O petista, pela ilusão do fogo-fátuo da fortuna fácil.

O esfarelamento dos partidos, flagrado na disputa da presidência da Câmara por meio ano e meio mês, desmoraliza utopias como o parlamentarismo e suas variações “semi”. E revela o pragmatismo de chiqueiro na disputa pela proximidade da gamela em que é servida a lavagem. O baixo clero que elevou Cunha ao cargo que lhe permitiu abrir o impeachment da desafeta de última hora, Dilma, logo se desfez diante da evidente ausência de um mínimo de espírito público nele.

Waldir Maranhão, eleito vice na chapa vencedora por 80% dos pares, muitos dos quais certamente agora fingem tapar o nariz, entregou-se à farra do poder inesperado, participando de farsas tão absurdas como a tentativa de interromper o impeachment no Senado apenas pela vontade de seu líder, Flávio Dino (PC do B), governador do Maranhão. Ou seja, pelo projeto político de entregar o destino de uma das dez maiores economias do mundo à ditadura grotesca que produziu a excrescência albanesa, retrato de miséria política e econômica num continente abastado e plenamente democrático.

Para completar, o bizarro intendente interino tem mais dois diabos a servir. De um lado, Rodrigo Maia (DEM), herdeiro de César Maia, hoje sem relevância na política do próprio Estado, o Rio. E, de outro, pai Lulinha, cujo impávido colosso desmoronou sob sua imagem corroída por várias investigações policiais e jurídicas. Representante de um Estado sem peso político e econômico e incapaz de conduzir sessões da Câmara até o fim, Maranhão balança entre um prócer irrelevante e outro investigado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal e Estadual de São Paulo, sob a égide da Justiça Federal no Paraná e da Estadual em São Paulo. A bizarria do interino desfila entre o baile da saudade e a medalha olímpica dos saltos orçamentais.

A hipotenusa do triângulo é o Judiciário do “cada um por si e Deus só por alguns”, regime no qual a paridade de todos é submetida a privilégios que a promiscuidade assegura.

* JOSÉ NÊUMANNE É JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Isto não é um assalto - MARCELO COELHO

FOLHA DE SP - 13/07

No jornalismo antigo, qualquer assalto à luz do dia provocava a aparição de um bonito clichê jornalístico, o da crescente "ousadia dos meliantes".

Já existia, naqueles tempos do onça, o espanto diante da "desfaçatez dos nossos políticos", sempre capazes de negar acusações com um "cinismo revoltante".

A "voz rouca das urnas", a "desabalada carreira", os "curiosos" que "acorriam ao local do acidente"... Não existiam "pessoas" ou "cidadãos" nas ruas: havia "populares".

Expressões assim eram boas demais para que fossem usadas apenas uma vez. Perdeu-se, acho, essa qualidade literária no jornalismo contemporâneo. Aliás, era uma qualidade ao mesmo tempo literária e antiliterária.

O adjetivo surpreendente e expressivo, o substantivo peculiar, juntavam-se numa fórmula que, rapidamente, terminava perdendo seu sabor de invenção. Mas, por seu toque erudito e formal, talvez esse estilo fosse preferível ao do que vigora no jornalismo de agora, menos tributário da literatura do que das ciências sociais.

"Setores da população", "decréscimo nos níveis de criminalidade", "viés de alta": talvez essas expressões sejam inevitáveis, já que os próprios fatos, hoje em dia, são menos acontecimentos isolados do que "pontos" numa série (ou curva?) estatística, a qual conhece suas "inflexões" e seus "picos" e "vales".

Isso não se confunde com o "jornalês" contemporâneo. Aqui, vemos o esforço de combinar o tom científico e matemático com alguma dramaticidade e sensação, típicas de qualquer noticiário que se preze.

Surgem então o índice de desemprego que "dispara", as exportações que "patinam", a declaração de um político que "detona" uma crise em seu partido.

Bom, criticar tantos clichês acaba virando um clichê também, ou, para ser mais exato, um lugar-comum. A crítica do estilo pode acabar impondo o silêncio geral –e sem dúvida o melhor modo de exercê-la seria criando coisas novas em vez de condenar as velhas.

Digo tudo isso um pouco por acaso, já que me lembrei da antiga "ousadia dos meliantes" ao ouvir relatos a respeito de um novo problema social. Trata-se do "quase assalto". Com a disseminação do crack, desaparece a figura do mendigo tradicional. Aquele da porta de igreja, da "esmolinha pelo amor de Deus".

Eu estava perto da igreja da Consolação, aí pelas dez da noite. Surge da escuridão uma figura de cobertor e capuz, que me faz parar. "Sabe que hoje é meu aniversário?"

Disse isso, e pediu cinco reais. Na inocência, tirei minha carteira. Ele poderia tê-la arrancado. Viu que eu tinha dinheiro, e subiu o preço. "Dez reais". Contaram-me depois que, na ansiedade, alguns noias vão exigindo "quinze, vinte, cinquenta, tudo".

No processo, ameaçam o doador, mas não parece que estejam armados. Chegamos ao ponto, em todo caso, de ficar pechinchando com mendigos...

Naquela região do centro paulistano, há mesas de bar na calçada. Contam-me que os dependentes de crack simplesmente passam perto e metem a mão no prato de batata frita, ou arrancam do cliente a garrafa de cerveja.

As faixas de ciclistas, por sua vez, criaram por ali um novo tipo de risco à segurança. Quem deixa o celular na mesinha vê um garoto que passa correndo de bicicleta e leva o aparelho.

Espanta-me, em todo caso, que ainda haja clientes nos bares por ali.

É como se antigas formas de convívio tentassem resistir a um tipo de coisa que já não representa convívio nenhum.

Antigamente, até um assalto tinha suas regras. Voltamos aos clichês, aos bons clichês. "A bolsa ou a vida". "Isto é um assalto" –a frase não aparecia apenas nos filmes. Soube de um velho motorista português, numa casa de família, que diante do clássico anúncio respondeu, apavorado: "Eu já tinha percebido".

O mendigo –ainda que estivesse "à margem da sociedade", como se diz– parecia, afinal de contas, "saber o seu lugar". Hoje, dizem-me que esses quase-assaltantes estão sempre em trânsito.

Um motorista de táxi, no ponto da Consolação, contou vinte deles passando por ali no espaço de uma hora. "Espaço de uma hora": mais uma expressão feia para o que, antigamente, era o "decurso de uma hora", ou, melhor ainda, "um breve lapso de tempo". Enquanto pensa em teclar a melhor palavra, preste atenção para não levarem seu celular.


A importância do 'Dilmexit' - MARCOS TROYJO

FOLHA DE SP - 13/07

Há alguns meses, o economista de Harvard Dani Rodrik, um dos mais conceituados do mundo, foi questionado sobre qual país encontrava-se mais subestimado perante a opinião pública global e a comunidade de investidores.

Rodrik não teve dúvidas e cravou: "Brasil". Argumentou, em referência ao combate à corrupção, que os brasileiros "...estão demonstrando uma maturidade política de operação do sistema décadas à frente mesmo de países industriais mais avançados (...) Eu apostaria no longo prazo no Brasil".

Mais recentemente, a decisão britânica de dizer adeus à União Europeia (UE) deslocou o eixo gravitacional de risco mundial. Se até há pouco os países emergentes, com o fim do superciclo de commodities e a suposta retomada do crescimento nas nações da OCDE, eram a bola negativa da vez, tal tendência, ao menos conjunturalmente, mudou.

Ficou mais difícil, num contexto de eventuais fraturas na UE e no próprio Reino Unido, assistir a uma decisão pelo aumento das taxas de juros praticadas pelo FED, o banco central norte-americano. Tudo isso favorece àqueles que, como o Brasil, precisam colocar a casa macroeconômica em ordem.

Além disso, muitos capitais ociosos no mundo buscam oportunidades de M&A (fusões e aquisições), atraentes no Brasil pelo menor valor de empresas quando comparado aos níveis de "Brasilmania" (sobretudo entre 2007 e 2012). Há ainda abundantes recursos no mundo para projetos de infraestrutura —tão necessários e potencialmente lucrativos no Brasil.

E agora vários projetos de infraetrutura deixaram de ser itens de apresentações de power-point. O governo brasileiro sinaliza com um programa de concessões ambicioso. Outros países já apontam a viabilidade de iniciativas amplamente transformadoras, como a ferrovia Bioceânica, desenhada para conectar o Brasil ao Pacífico.

Em estudo realizado pela empresa chinesa CREEC, aponta-se que a Bioceânica abrangeria um período de construção estimado em nove anos e a ferrovia se estenderia por 5.000 quilômetros. Teria ponto de partida em Goiás, atravessaria a Cordilheira dos Andes e terminaria em Bayovar, no Peru. Na largada, o projeto começa levando 23 milhões de toneladas de carga. Após 25 anos, chega a 53 milhões de toneladas.

Estranha e inesperadamente, a atmosfera que envolve o Brasil melhorou. No entanto, investidores de mais longo prazo, seja os interessados na infraestrutura, seja os que querem comprar ou expandir negócios no Brasil, precisam de um mínimo de chão firme. Necessitam do símbolo de uma virada de página. Aguardam a confirmação do impeachment da presidente afastada. Esperam —e torcem— pelo "Dilmexit".

O Brexit implica algumas repercussões para o Brasil. Mas o Reino Unido não representa um destino crucial para nossas exportações (embora haja muito potencial a explorar), e o Brasil seguramente não é prioridade para o investimento estrangeiro direto (IED) britânico (e aqui também há muito a expandir).

Há, é claro, significativos impactos nos delineamentos da globalização, mas isso não se dá da noite para o dia. E, com sabedoria e estratégia, o Brasil poderá adaptar-se.

Já o "Dilmexit" produz efeitos —todos positivos— absolutamente imediatos. Representa o fim de uma era. Significa parar de piorar. Voltar ao caminho da reconquista do grau de investimento. Abandonar uma postura diplomática terceiro-mundista. Reduzir a influência do bolivarianismo no Brasil e seu peso em toda América Latina. Reforçar o que deve ser o interesse nacional.

O "Dilmexit" possibilita uma retomada do tripé macroeconômico. Permite ao menos sonhar com reformas modernizantes na política, previdência, trabalho e na área fiscal. Ter um modus operandi no serviço público mais meritocrático. Diminuir espaço para uma política industrial de compadrio. Apontar, enfim, à volta do crescimento.

Para o futuro próximo do Brasil, não há dúvida. O "Dilmexit" é mais importante que o Brexit.


As amarras da política - MONICA DE BOLLE

ESTADÃO - 13/07

Confesso que nos últimos dias tenho pensado bastante em Dilma Rousseff. Antes que o leitor corra para as montanhas após ler essa frase, as razões têm relação direta com atitudes positivas da equipe econômica de Temer. Dilma e alguns membros de sua equipe durante o primeiro mandato costumavam chamar de “pessimistas adversativos” qualquer um que se dispusesse a criticá-los, apontando equívocos que poderiam levar o País à lona. A equipe econômica de Temer parece escutar seus críticos com sobriedade e reconsiderar rumos dentro da estreitíssima margem de que dispõe. É um alívio.

A equipe de Temer recebeu duras críticas nas últimas semanas por – como noticiaram os jornais – ter possivelmente flertado com a frouxidão fiscal mais ampla e duradoura do que havia sinalizado. As críticas foram recebidas com reflexão, não com adjetivos como era a praxe no governo anterior. Anunciaram metas fiscais mais ambiciosas para os próximos anos, ainda que alguns pressupostos que as sustentem possam ser questionados. Disseram que farão o possível para apertar o torniquete das despesas discricionárias no ano que vem. Deram entrevistas esclarecedoras e se dispuseram a dialogar, por meio dos grandes jornais, com todos os que mostraram grande preocupação com os rumos fiscais do País e com a possibilidade concreta de que o Brasil não consiga escapar de uma crise fiscal ainda mais grave do que a atual. O Banco Central, sob nova tutela, tem aproveitado a janela que os fluxos externos nos têm proporcionado para diminuir o estoque de swaps cambiais – essas operações, mais ou menos equivalentes a uma venda de dólares no mercado futuro de divisas, custavam caro aos cofres públicos. Houve tempo em que chegaram a causar prejuízos superiores a 2% do PIB ao Banco Central. Estamos em boas mãos na área econômica, não há dúvida. Há dúvida, entretanto, sobre o que serão capazes de fazer perante as amarras políticas.

Dia desses li um artigo sobre a qualidade do debate da política econômica no Brasil. Embora a matéria tenha se restringido à ladainha “ortodoxos versus heterodoxos”, que, de fato, é picuinha tupiniquim, a pobreza do debate nacional repercute o que ocorre além de nossas fronteiras. O debate internacional, afinal de contas, não está lá essas coisas. Houve tempo, logo depois de terminar meu doutorado na London School of Economics e passar uns anos no Fundo Monetário Internacional, que acadêmicos e formuladores da política econômica eram tratados pela opinião pública com mais respeito.

Havia discordâncias, por certo, mas nos anos em que crises financeiras abatiam países emergentes em série, os políticos e a sociedade tratavam com mais seriedade as recomendações que vinham dos estudiosos e dos organismos internacionais. Foi assim com o debate sobre as crises fiscais e as reestruturações das dívidas soberanas dos anos 90 e início dos anos 2000 feitas por países como a Ucrânia e o Uruguai – dessa última tive a oportunidade de participar diretamente. Foi também assim com o debate sobre os regimes cambiais mais adequados para os emergentes – as crises de então fomentaram o consenso de que flutuar a moeda era melhor do que forçar uma paridade.

De meu posto de observação, hoje, como pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da School for Advanced International Studies da Johns Hopkins University, vejo que a coisa já não funciona mais assim. A opinião dos especialistas já não importa tanto, ou mesmo, simplesmente não importa. Tal situação agravou-se depois da crise de 2008 e intensificou-se nos últimos anos com as vicissitudes da política que tomaram conta de diversos países mundo afora. A política sempre foi uma amarra para a política econômica. Hoje, entretanto, ela é quase forca. Estão aí o Brasil, o Reino Unido, e os EUA para mostrar como é difícil manter um debate racional sobre o que deve ser a política econômica.

Diante disso, aplaudo os objetivos da equipe econômica. Aplaudo seus integrantes, mas continuo a achar muito difícil que o Brasil consiga escalar o muro de cacos de vidro que cerca o beco em que se encontra.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

Três cartas - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 13/07

Segundo antiga anedota, o recém-empossado presidente de empresa encontra três cartas deixadas por seu antecessor, com instruções para abri-las apenas em momentos de crise. Quando a crise estoura, ele recorre à primeira, que diz: "Ponha a culpa em mim". Tempos depois, nova crise e a segunda carta, recomendando a mudança de toda a diretoria. Já na terceira vez, aconselha: "Escreva três cartas".

A administração Temer abriu a primeira, reconhecendo que o deficit primário deste ano deve atingir R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) e notando que, na ausência de medidas compensatórias, o deficit de 2017 superaria, com folga, a casa de R$ 200 bilhões (houve menção a um número de R$ 270 bilhões, mas me parece exagerado).

Medidas foram adotadas, trazendo o valor para R$ 194 bilhões, mas o ministro da Fazenda prometeu receitas extraordinárias, originadas de privatizações, concessões e outorgas (impressão minha, ou se trata essencialmente de sinônimos?), da ordem de R$ 55 bilhões, o que lhe permitiu anunciar uma meta de deficit de R$ 139 bilhões (2,0% do PIB) para 2017.

Esses desenvolvimentos cabem, em larga medida, no escopo da primeira carta. Não é exagero atribuir a piora extraordinária das finanças públicas a ações e omissões do governo anterior, que, conforme o prometido, "fez o diabo" para se reeleger, não só aumentando gastos mas também fugindo de reformas que pudessem evitar o problema antes que se tornasse, como se tornou, grande demais, fato apontado por muitos economistas com enorme antecedência.

A atual equipe econômica herdou terra arrasada no lado fiscal e nos esperam anos de reconstrução à frente.

No entanto, há questões que já pertencem ao atual governo. Por mais que se argumente que o aumento ao funcionalismo já havia sido acordado pela administração ora afastada e que se enquadraria na regra do teto das despesas, não há como concluir que gastar mais possa contribuir de qualquer forma para o ajuste das contas públicas. O mesmo cabe ao acordo com os Estados, cujos efeitos serão nefastos.

Apesar disso, a meta de R$ 139 bilhões (de deficit!) foi vendida como vitória da equipe econômica sobre a "ala política" do governo, para quem até R$ 170 bilhões estavam de bom tamanho (raciocínio equivalente a concluir que perder da Alemanha por 6 a 1 seria progresso diante daquela inesquecível semifinal).

Não, não foi. O número que interessa é aquele sem as receitas extraordinárias, que, diga-se, ninguém sabe de onde virão, ou seja, R$ 194 bilhões (2,9% do PIB).

Há pouco espaço para cortes adicionais, é verdade, mas até agora não se viu da atual administração nenhuma medida que sinalizasse austeridade no presente; apenas uma (boa) promessa para o futuro.

Isso aponta para nova batalha em 2018. Mesmo que receitas extraordinárias se materializem em 2017 (um enorme "se"), partiremos de um deficit recorrente de R$ 194 bilhões no ano que vem. A menos que se possa conjurar novas receitas (sabe-se lá de onde), possivelmente veremos piora das contas fiscais para aquele ano, já pressupondo que o teto de despesas exista e seja operacional, mesmo porque se trata de ano eleitoral.

Temer corre o risco de ter de abrir a segunda carta ainda antes do momento constitucional de escrever as três cartas para seu sucessor.


Rota não linear - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 13/07

Os dados de vendas do varejo de maio decepcionaram. As previsões dos bancos e consultorias que costumam acertar ficaram bem distante da queda de 1%. A maioria previa alta. Mas isso não muda o fato de que o horizonte de 2017 é de recuperação da economia. O Brasil parou de piorar, mas nenhum processo de saída da recessão ocorre de forma linear, nem está garantido.

Haverá outros dados negativos. O comum será oscilar números ruins e bons. Amanhã vai sair o IBC-Br, índice de atividade econômica do Banco Central, de maio. As projeções estão próximas de zero e vários economistas estão prevendo um índice ligeiramente negativo. O PIB mensal do Itaú, para maio, mostrou uma contração de 0,4%. Ao mesmo tempo os indicadores de confiança tiveram discretas melhoras. O saldo comercial de 2016 já superou o de todo o ano passado e deve terminar o ano em torno de R$ 50 bilhões. Em parte é resultado pela queda das importações, mas há setores elevando exportação. Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, explica como a economia brasileira reage.

— Pelo padrão histórico, a reação brasileira é rápida. A dúvida no caso atual é que a crise foi profunda, atingiu a confiança e o mercado de crédito. As empresas, antes de voltar a investir, vão ter que resolver a dívida delas com o banco.

O banco Santander está prevendo um crescimento de 2% no ano que vem, acima do 1,2% que o governo registrou no orçamento. Maurício Molin, economistachefe do banco, conta que para este ano a projeção está mais pessimista que a média do mercado. Acredita em recessão de 3,7%, mas acha que o país já estará crescendo no terceiro trimestre. Ele divide o processo de retomada em três passos. Começa pelo mercado financeiro que, por exemplo, já aposta em juros menores no futuro. Em seguida, vem a melhora na confiança, o que já está sendo visto entre os empresários. A última parte do processo é a recuperação dos indicadores da economia real. No caso da produção industrial, que não cai há três meses, o pior parece já ter passado.

— A confiança é fundamental para a retomada. Inclusive, a previsão sobre o crescimento de 2017 pode mudar se o ajuste não for aprovado como se espera. Ela, a confiança, vai propiciar a retomada do investimento, puxado pelos bens de capital na indústria e pela agricultura — disse.

Zeina também lembra que o ritmo da melhora depende do governo.

— A intensidade da recuperação vai depender do governo. Se o ajuste aprovado for desidratado, a retomada será mais fraca. Há muito ruído no cenário político.

A MB Associados está com a previsão de 2% de crescimento em 2017 desde o afastamento da presidente Dilma. O economista Sérgio Vale acha que o que permitirá a virada — de -3,3% este ano para alta de 2% — será a melhora do quadro fiscal, que poderá destravar o crescimento.

— Só será possível ter essa recuperação se as medidas fiscais forem aprovadas.

Mas o que Sérgio Vale alerta é que o desemprego vai piorar antes de começar a melhorar e levará mais tempo para se recuperar. Ele acha que a taxa de desocupação pode chegar a 13% em 2016, cair para 8,5% no final do ano que vem, fechando 2018 em 6%.

O caminho não será linear, como nunca foi. Mas desta vez as surpresas, sejam negativas, sejam positivas, serão maiores. O governo Temer será sempre marcado pela incerteza política, mesmo após superar o teste do impeachment. Essa instabilidade afetará as decisões de investimento e consumo, portanto, o ritmo do PIB.

Até agora o governo anunciou medidas fortes na área fiscal, como o teto para os gastos que, se adotado, terá um efeito duradouro na economia. Ao mesmo tempo, a administração está sendo sitiada de pedidos de aumentos salariais de funcionários. Uma coisa não conversa com a outra. Se for para ter limite de gastos não é possível aprovar na largada elevações nas despesas permanentes, mesmo que sejam reivindicações justas.

Por isso, até os economistas que estão com previsões mais positivas alertam que o quadro pode mudar dependendo do comportamento do governo. O problema não é ter sido divulgado, ontem, um número negativo para vendas de varejo, mas sim o de conviver com a incerteza nessa longa temporada de crise.


Ilusões à toa - DORA KRAMER

ESTADÃO - 13/07

A despeito da existência de dois ou três favoritos, o resultado da eleição prevista para hoje na Câmara é imprevisível. Tudo ali é incerto. Exceto duas constatações que, de véspera, já sustentam as análises do dia seguinte. Ambas surradas de tão repetidas e previsíveis.

Uma parte do princípio de que o quase cassado Eduardo Cunha continuará influente caso seja eleito um deputado “ligado” a ele. Como se entre os aspirantes com chance de vitória houvesse algum que possa se dizer inteiramente “desligado” dele. Cunha foi eleito em fevereiro de 2015 com 267 votos, batendo três concorrentes no primeiro turno.

Chegou à presidência da Casa com o apoio explícito dos partidos ao qual são filiados os principais oponentes da disputa atual e a torcida implícita do PSDB, hoje prometendo votos a Rodrigo Maia (DEM-RJ), cujo partido foi entusiasta da eleição de Cunha pelo mesmo motivo dos tucanos: impor derrota ao PT.

Na ocasião, o partido de Rogério Rosso (PSD-DF) ficou com o petista Arlindo Chinaglia, mas logo o deputado hoje tido como um dos favoritos viria a integrar o grupo do novo presidente. Marcelo Castro (PMDB-PI), lançado ontem pelo partido do presidente em exercício antes de ter sido ministro de Dilma, é correligionário de Cunha.

Portanto, no quesito que uns usam para desqualificar os outros, o cenário une os rotos aos esfarrapados, pois o hoje renegado chegou a viver dias de quase unanimidade na Câmara. Sobre o mito da manutenção do poder por trás das cortinas não há muito a dizer além de apontar o vazio de uma tese que parte de premissa errada, transforma um ator no irrecuperável ocaso de carreira em astro digno de Oscar no papel principal.

Cunha é rei posto. Será cassado, provavelmente preso, e tal como outros que já mandaram muito mais que ele no País, sentará praça no ostracismo na companhia de seus advogados. O polo de poder em relação ao Legislativo voltará a ser o Palácio do Planalto. Ainda mais nessa situação em que o presidente não será alguém de grande capital político. Basta ver a lista dos candidatos.

Isso quer dizer que o governo dará boas-vindas ao novo rei, seja ele quem for. A recíproca será verdadeira, voltando a vigorar a tradicional relação de dependência (às vezes afetiva e sempre pragmática). Neste ponto chegamos ao segundo tema das análises previsíveis referidas no início. Diz respeito à expectativa de que a saída de Eduardo Cunha de cena possa dar ensejo a modificações dos meios de modos da nossa política tão antiga.

É preciso ter claro: Cunha não é causa; antes é consequência – não a única – daqueles notórios maneirismos. Não inventou a troca de apoio por benesses nem mesmo pode ser apontado como o responsável pela ascensão do baixo clero ao cardinalato. Quem inverteu essa correlação de forças internas foi Luiz Inácio da Silva ao institucionalizar o armazém depois conhecido como mensalão. Ali as nulidades ascenderam à condição de divindades, piorando bem o que já vinha ruim há muito tempo.

Creditar o defeito coletivo a Cunha é alimentar falsas expectativas para depois constatar que não foram atendidas. Lamentável informar, mas ainda não será agora nesse mandato-tampão. Talvez a partir de 2019 quando, e se, na eleição do ano anterior ao menos a parcela mais consciente da sociedade resolver abandonar a atitude de repúdio à política – primo-irmão da alienação – e fizer a sua parte.

Negócio da China. Convém lembrar: o deputado eleito hoje será, na prática, o vice-presidente a exercitar a interinidade logo após a resolução do impeachment quando Michel Temer, caso efetivado, irá à China em sua primeira viagem internacional.


Conflito de interesses - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/07

Os conselheiros classificaram palestras remuneradas a empresas e entidades empresariais como 'exercício de magistério superior'

Uma semana depois de ter determinado a apreensão de um boneco que o caricaturava, sob a alegação de que representava “grave ameaça à ordem pública” e comprometia a dignidade da Justiça, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, voltou a provocar polêmica. Em sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual também é presidente, ele defendeu que os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que proferirem palestras remuneradas por entidades privadas não precisam informar o valor recebido. “A preocupação é resguardar a privacidade, a intimidade e a própria segurança porque, num país em crise, a segurança pública ainda não atingiu os níveis desejados”, afirmou.

A discussão sobre o tema começou no ano passado, depois da divulgação de que alguns ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) estariam recebendo pagamentos por palestras proferidas aos advogados de um grande banco, sem que em seguida se declarassem impedidos de julgar os recursos por eles impetrados contra decisões nas instâncias da Justiça do Trabalho. Até o corregedor-geral da instituição, que à época era relator de várias ações que tinham o banco como parte, proferia palestras remuneradas por aquela instituição.

Por causa das implicações éticas do pagamento a ministros dos tribunais superiores por palestras proferidas em instituições financeiras, que são apontadas pelas pesquisas do Judiciário como as maiores litigantes do País, o caso foi levado ao CNJ. Encarregado de fiscalizar os tribunais no plano administrativo, o órgão decidiu baixar uma resolução sobre a matéria, mas se deixou levar pelo corporativismo. Os conselheiros classificaram palestras remuneradas a empresas e entidades empresariais como “exercício de magistério superior”, que é a única atividade extra permitida aos juízes. Ao justificar essa decisão, que contraria o artigo 26 da Lei Orgânica da Magistratura, em vigor desde 1979, alguns conselheiros afirmaram que ela teria restringido as atividades extrajudiciais dos magistrados por ter sido editada no regime militar. Não levaram em conta, porém, que o artigo 95 da Constituição, promulgada no regime democrático, proíbe os juízes de “receber, a qualquer título ou pretexto, auxílio ou contribuições de pessoas físicas e entidades públicas e privadas”.

Os conselheiros também incluíram na minuta da resolução um dispositivo que obriga os magistrados que aceitarem convite para ministrar palestra remunerada a informar a data e o local de sua participação, o tema abordado, a entidade promotora do evento e o valor dos honorários. Mas Lewandowski vetou a última exigência. Além do argumento da segurança, ele alegou que ela feriria o direito dos magistrados à intimidade, à privacidade e ao sigilo fiscal. “Não somos obrigados a revelar quanto recebemos nas atividades privadas”, afirmou. O argumento é tão disparatado que levou o deputado Rubens Bueno (PPS-PR) a apresentar um pedido de esclarecimento ao CNJ. “Qual é a transparência de alguém que tem carreira de Estado e não divulga publicamente o quanto ganha?”, indagou o parlamentar. O veto “impede a transparência e o controle público”, afirmou ao jornal Valor o advogado trabalhista Ericson Crivelli, que já pediu ao TST o afastamento, no julgamento das causas de seus clientes, de ministros que proferirem palestras remuneradas no banco em questão.

Com isso, a resolução que o CNJ acabou aprovando ficou desfigurada, uma vez que não impede que ministros de tribunais superiores continuem treinando ou capacitando advogados de grandes litigantes, a pretexto de discutir “doutrinas jurídicas”. Quando julgadores se transformam em palestrantes pagos por uma das partes das ações que têm de julgar, os conflitos de interesses são flagrantes. E quando essa prática não é impedida pelo órgão encarregado de fiscalizar a Justiça, a instituição acaba sendo cooptada pelo poder econômico, em detrimento dos trabalhadores que correm à Justiça do Trabalho para lutar por seus direitos, mas não têm as mesmas condições das partes adversas.


Chamem o ladrão - ANTONIO CARLOS WELTER E CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA

O GLOBO - 13/07

Estamos diante do paradoxo absoluto: pretende-se transformar em lei a vontade do criminoso de prender quem o investiga



O Brasil é um país contraditório. Um país rico, com uma população pobre. Um país em que pessoas de bem trancam-se em suas casas enquanto criminosos andam livremente pelas ruas. E agora, com o projeto de lei de crimes de abuso de autoridade, estamos diante do paradoxo absoluto: pretende-se transformar em lei a vontade do criminoso de prender quem o investiga.

No passado, com a indignação da população, diversos projetos de mordaça de autoridades foram derrotados. E essas propostas foram bancadas por políticos de todo o espectro partidário, pois se há um terreno comum a quem está no poder é o interesse de fazer calar investigações, sobretudo quando batem à sua porta.

Agora surge um movimento muito mais insidioso, que se apresenta como se estivesse identificado com o interesse público. Sob o discurso da repressão do abuso de autoridade, que realmente acontece no dia a dia, mas não nas hipóteses previstas nesse projeto, pretende-se, em verdade, não apenas calar investigadores e juízes, mas paralisar investigações de criminosos do colarinho branco, especialmente aqueles que possuem poder político e que durante anos se beneficiaram de um vasto esquema de corrupção.

Essa prática de terror contra funcionários públicos, atemorizando-os com ameaças a sua liberdade, seu patrimônio e o seu bom nome, apenas demonstra o nível de degradação a que chegou o Estado brasileiro. Quem deve ser expurgado da vida pública não é quem investiga, nem o promotor que acusa, muito menos o juiz que julga, mas aqueles que recebem valores desviados do poder público, aqueles outros que vivem de negociatas com os poderes que a lei lhes defere, ou ainda aqueles que, por motivação ilícita, deixam de cumprir sua responsabilidade para com a população.

Isso fica ainda mais claro quando se percebe que o projeto ultrapassa o senso do razoável, senão do ridículo, criando amarras e limites àqueles que atuam contra o ilícito, estabelecendo punições desmedidas para condutas que não deveriam ser sancionadas. A tentativa de retorsão é ainda mais clara quando o projeto cria a hipótese anômala de ação penal privada, em que o criminoso é autorizado a buscar a punição dos agentes públicos que o investigam, em uma solução digna de Kafka.

Nesta verdadeira inversão de valores, o projeto ora em andamento, erigido como prioritário para ser colocado em votação, reflete na medida o interesse daqueles que estão acostumados a não ter suas condutas escrutinadas pela população e pela imprensa, quanto mais submetidas ao Poder Judiciário; daqueles que estão acostumados a ver a ação das autoridades apenas atender a seus interesses individuais; ou então alcançar apenas seus inimigos, agindo como garoto de recados sob suas ordens.

Quando isto não acontece, quando se veem tendo que justificar seus atos, quando são vistos pelos investigadores como cidadãos iguais a todos que são, como nos tempos presentes, estes integrantes da classe dirigente pregam a mudança da lei, brandem ameaças. Diz-se classe dirigente porque esta manobra não é de autoria apenas de políticos, mas de integrantes de vários estamentos da sociedade brasileira, que se articulam para fazer cessar as investigações, pelos mais variados motivos, todos espúrios.

Somente uma lei séria — coerente com a vontade da população, que estabeleça sanções para aqueles que abusam de seus poderes e com a finalidade ética que deve permear todas as atividades do Estado — pode prosperar. Enfim, cabe novamente à população repelir essa nova ameaça, permitindo a continuidade das investigações que lavam este país de norte a sul, doa a quem doer. Ou então aceitemos a contradição e, em vez do poder público, chamemos o ladrão.

Antonio Carlos Welter e Carlos Fernando dos Santos Lima são procuradores regionais da República

Ambições e traições - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 13/07

A eleição do novo presidente da Câmara ganhou ontem uma definição mais clara, apesar de nada menos que 15 candidatos terem se apresentado. O surgimento da candidatura de Marcelo Castro pelo PMDB, ex-ministro de Dilma, numa manobra articulada pelo ex-presidente Lula, o torna o único a ser batido pelas forças aliadas do governo interino de Temer.

Oreceio de interferir na disputa fez com que o governo abrisse mão de seu poder, dando espaço para esse tipo de traição branca da bancada do PMDB. Temer apressou-se a salientar que a escolha de Castro é uma prova de que o governo não interferiu na disputa, mas, assim como é inevitável ela ir para o segundo turno com esse número exagerado de candidatos, também será irrecusável para o governo interino apoiar outra candidatura que não a do PMDB, caso Castro chegue lá, o que tornará o jogo político interno paradoxal e mais perigoso para Temer.

Marcelo Castro entra na disputa com a chancela do PT, por ter votado contra o impeachment da presidente Dilma, e por isso mesmo é o candidato contra quem todos os outros do “centrão” e da antiga oposição se aliarão num segundo turno.

O deputado Rodrigo Maia torna-se, assim, uma opção tanto para os partidos que formavam a antiga oposição ao governo petista — PSDB, DEM, PPS, PSB —, como do próprio governo interino, se conseguir chegar ao segundo turno. Ele tenta um acordo com Júlio Delgado, que já estava implícito caso o deputado Heráclito Fortes saísse vencedor na bancada pessebista: quem tivesse mais chance cederia a candidatura ao outro. Fortes tinha mais acesso a voto em outros partidos, mas perdeu a disputa interna, e agora trabalha para que o PSB apoie Rodrigo Maia.

O racha da esquerda fica por conta da candidatura de Erundina, lançada pelo PSOL, e de Miro Teixeira pela Rede, mais anti candidaturas do que reais possibilidades de vitória. Os dois servem, no entanto, para marcar posições de independência e recusa a esses conchavos que transformam a disputa da presidência da Câmara em palco de manobras de bastidores, com candidatos nem tanto ocultos de Lula (Marcelo Castro) e de Eduardo Cunha (Rogério Rosso) entre os mais cotados.

Erundina tenta, até aqui em vão, o apoio do PT e de outros partidos de esquerda, defendendo uma posição não pragmática, mais ideológica. Miro Teixeira, que já foi cotado, decano da Câmara que é, como candidato de consenso, apresenta-se em nome de reivindicações específicas da sociedade civil, especialmente na defesa do combate a corrupção como maneira de sanear a atividade política.

Se posta, portanto, como o candidato contrário aos conchavos que dominam a disputa e espantam os leigos, admirados com a ambição de tantos por um cargo que está manchado indelevelmente pela história política de Eduardo Cunha.

Num momento de crise política e econômica como o que vivemos, é realmente espantoso que tantos candidatos se coloquem no páreo sem que a maioria apresente plataforma de fortalecimento institucional da Câmara. Quase todos querem o poder de barganha que o cargo dá, até mesmo diante do governo interino, mas poucos são os que colocam o fortalecimento moral da classe parlamentar como elemento essencial das candidaturas.

Todos negociam troca de posições em mesas e comissões, ou ainda a futura eleição para o novo período de dois anos, sem levar em conta que o mandato-tampão de agora deveria servir de busca de mudanças de atitudes para melhorar a imagem dos deputados.

A noite em Brasília será intensa, e pode ser que o dia da votação amanheça com menos candidatos.


Lições do Brexit - JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

ESTADÃO - 13/07

Se o atual governo não chegar ao fim de 2018, é porque foi dado o passo para o colapso



Semelhantes no tamanho de sua economia, o Brasil e o Reino Unido diferem em quase tudo o mais. O Reino Unido é um modelo de capitalismo avançado, integrado ao século 21, que não olha com nostalgia para o modelo de economia autárquica, conduzida por um Estado modernizador, como muitos de nós. Nem se sente confortável com a irracionalidade comercial e social da União Europeia (UE).

Um abismo nos separa. Talvez seja esse abismo que hoje atrai igualmente as classes políticas de ambas as bandas do Atlântico. Estou me referindo ao fato de estarmos assistindo, com certa angústia, a ambas as classes políticas – e, no seu rastro, os publicistas, as comunidades empresariais, os grupos de interesses, as comunidades científicas – brincarem de empurra-empurra à beira do desconhecido.

Ninguém é capaz de prever qual, como e quando será o desfecho do processo – até agora simbólico – desencadeado pela vitória da secessão do Reino Unido da UE. Ninguém sabe qual, como e quando será o desfecho do atual processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, caso o quórum a favor de seu impedimento seja igual ou menor que 53 votos. Aqui também, estamos diante do desconhecido.

No caso brasileiro existe um amplo consenso na classe política, na opinião pública, nas elites econômicas, em todos os partidos, incluindo os que ainda apoiam Dilma da boca para fora, sobre a irreversibilidade de seu afastamento. Para a própria Dilma, sua volta ao poder não é objeto de uma estratégia racional, trata-se apenas do devaneio de voltar a ser dona do destino do País, se não de si própria, convocando novas eleições. Uma renúncia travestida de referendo: mais uma evidência de que o referendo não constitui decisão política, é uma opção entre dois cheques em branco.

Mas consenso sobre o que ainda vai acontecer não substitui os fatos. A prova foi a vitória do não à União Europeia, apesar de sua derrota ter-se revelado consensual até às vésperas do pleito. Os partidos políticos britânicos não evitaram o salto no escuro que os colocou num limbo econômico e político pelos próximos anos e meses porque fecharam os olhos à ameaça populista.

A razão disso é que a era de uma política liberal bancada pelo centro-esquerda, que marcara as três eleições do Labour com Tony Blair, foi substituída por um namoro dos conservadores com demandas populistas, sobretudo de direita, que ganharam força com a disseminação da insatisfação popular. David Cameron e seus conservadores encontraram, no referendo, uma forma estranha às tradições britânicas, para responder a essa demandas. O primeiro, sobre a independência da Escócia, para atender às demandas de maior autonomia regional.

Os grandes partidos – Conservador, Trabalhista e Liberal Democrata – foram dizimados pelos resultados do referendo escocês e não souberam distinguir-se do populismo com uma nova agenda aceitável pela maioria. Com o novo referendo, este sobre a saída da UE, o governo conservador tentou aproveitar a insatisfação crescente com a crise vinda da Europa e atrair o eleitorado descrente dos trabalhistas, chantageando a União com argumentos análogos aos dos movimentos nacionalistas e populistas.

O resultado da polarização com a UE, longe de reforçar a identidade britânica, levou ao seu esfacelamento entre várias regiões, que agora também sonham com a secessão. Os partidos perderam toda a sua credibilidade, divididos internamente, e o país está sem rumo. A classe política cavou o próprio túmulo.

No Brasil, a principal diferença em relação ao caso britânico é que o processo de autoimolação da classe política foi mais lento e mais longo. O populismo “de esquerda” grassa há mais de uma década, travestido de socialismo. É verdade que o populismo tem inúmeros pontos de superposição com a esquerda – e com o corporativismo fascista também –, o que poderia provocar certa confusão. Mas não há um só ponto da agenda lulopetista que não seja populista em sua concepção e execução, enquanto não consigo enxergar uma só política essencialmente socialista, sem conotação populista.

Embora metade da sociedade – como mostraram todas as eleições a partir de 2002 – não se tenha deixado iludir pela demolição das instituições, pela corrupção “do bem”, pela extinção da pobreza e pelo enriquecimento geral alardeados, pela pretensa liderança global e pelo pão e circo generalizado, o mesmo não se pode dizer da classe dirigente. A classe política acomodou-se ao sistema de favores e de distribuição da pilhagem da riqueza nacional. A elite empresarial, quando não se deixou corromper, fechou os olhos para a devastação de nossos recursos, causada por incompetência ou por ganância. Os intelectuais foram, em geral, incapazes de denunciar as imensas limitações do redistribucionismo e do igualitarismo apregoados e das assustadoras distorções introduzidas no ensino, na saúde, no exercício da função pública.

E agora, agindo como se a confirmação do impeachment fosse um processo capaz de se realimentar e atingir seu desfecho por si só, cada um pode atuar livremente na direção oposta. A classe política comporta-se abertamente como se o sistema de favores estivesse aí para ficar, como se os mesmos antigos erros pudessem produzir novos milagres. O mundo jurídico olha com desprezo para a política e com hostilidade para os políticos, todavia, evidentemente, não tem conhecimento nem recursos para engendrar uma República ideal. Que, convenhamos, não existe.

Chegamos a um ponto em que já despontou um germe de conflito entre Poderes, a classe política está desmoralizada e de todos os lados se tenta enfraquecer o governo. Mas poucos ignoram que se o atual governo não chegar a dezembro de 2018 será porque foi dado o passo que faltava para o colapso final.

* JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE É PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP

Na própria pele - UIRÁ MACHADO

FOLHA DE SP - 13/07

SÃO PAULO - É possível ver com algum otimismo a disputa pela presidência da Câmara dos Deputados. A desorganização desse pleito atingiu níveis tão elevados que já não parece descabido imaginar líderes partidários defendendo uma reforma política e eleitoral para valer.

Nesta terça-feira (12), a Casa registrava mais de dez deputados dispostos a ocupar o lugar deixado vago por Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Em eleições anteriores, mesmo considerados os parlamentares inscritos na última hora, contavam-se os nomes com os dedos de uma mão.

Devido à superoferta de candidaturas, muitos deputados ficarão sem saber quem apoiar abertamente. Não são poucos os que se decidem apenas quando um determinado postulante se revela franco favorito. Haverá, portanto, uma divisão na base aliada.

Não que esse tipo de situação seja inédita. Em 2007 e 2011, os petistas Arlindo Chinaglia (SP) e Marco Maia (RS) sofreram com a falta de apoio de integrantes da coalizão governista.

Agora, porém, a confusão é muito maior. Tome-se o PMDB. Michel Temer preferia que seu partido não tivesse nome próprio na eleição —justamente para evitar a pulverização da disputa. Em vão. Não só a sigla lançou um competidor como escolheu Marcelo Castro (PI), o deputado que foi ministro da Saúde no governo Dilma (PT) e votou contra o impeachment da presidente afastada.

Dificuldade de entender o sistema e impossibilidade de decidir racionalmente entre os muitos candidatos, dada a ausência de diferença programática entre boa parte deles —eis aí dois fardos que o brasileiro há muito carrega em anos eleitorais.

Esses problemas não deixarão de existir sem uma reforma política, mas sempre se disse que a reforma política não existirá enquanto os legisladores forem os principais beneficiários das normas em vigor.

Essa percepção pode começar a mudar a partir de agora. Ao menos os deputados terão sentido na própria pele o que sente todo eleitor.


Efeito Orloff - BERNARDO MELLO FRANCO

FOLHA DE SP - 13/07

BRASÍLIA - Eduardo Cunha renunciou, chorou, mas não mudou. Ao reaparecer ontem na Câmara, o deputado afastado voltou a empunhar sua arma mais conhecida: a ameaça. Em tom agressivo, ele bateu na mesa, elevou a voz e disse que quem não ajudá-lo pode entrar na fila do precipício. Nem parecia o político lacrimejante da semana passada.

Como a teoria dos trustes não engana mais ninguém, Cunha trocou a defesa pelo ataque. Disse que não é o único investigado na Câmara e que os algozes do presente correm o risco de virar vítimas do futuro. Ele citou uma antiga propaganda de vodca para reforçar o aviso. "Hoje sou eu. É o efeito Orloff. Vocês, amanhã. Não tenho a menor dúvida", disse.

No anúncio dos anos 80, o consumidor era aconselhado a comprar uma bebida mais cara para evitar a ressaca no dia seguinte. "Eu sou você amanhã", dizia o slogan. Cunha quer convencer os colegas de que é melhor pagar o preço de salvá-lo a enfrentar o custo de uma retaliação.

O correntista suíço conhece os esqueletos de muitos colegas, mas suas ameaças não surtem mais o efeito de antes. Ele perdeu a aura de imbatível e já foi abandonado por muitos aliados que o apoiaram até conseguir o impeachment. A votação no Conselho de Ética mostrou que a pressão para cassá-lo passou a falar mais alto que o medo da sua reação.

Os deputados costumam ter forte instinto de sobrevivência. Entre duas opções no bar, quase sempre sabem escolher a que dará menos dor de cabeça no dia seguinte.

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A eleição na Câmara continua indefinida, mas alguns aliados do governo interino já estão em clima de ressaca. Um dos articuladores do impeachment, o deputado Heráclito Fortes está convencido de que foi sabotado. Ele diz que o Planalto ofereceu a direção da Codevasf para um deputado do PSB abandoná-lo na disputa interna do partido. "Passaram por cima de mim", reclama.

Temer e a privataria 3.0 - ELIO GASPARI

O GLOBO - 13/07

Para quem acredita nos efeitos benignos das privatizações e se desinteressa pela forma como elas são conduzidas, a boa notícia veio do presidente Michel Temer: seu governo estuda a privatização dos aeroportos de Congonhas e Santos Dumont. Numa estimativa grosseira, essas duas operações, somadas às concessões de quatro outros aeroportos, poderiam levar ao governo mais de R$ 10 bilhões ao longo de duas décadas.

No dia seguinte, outra notícia desafinou a orquestra. Maurício Quintella, o ministro dos Transportes do governo que planeja novas privatizações, informou que concorda em dar um refresco aos concessionários de sete aeroportos, que não pagaram as outorgas devidas à Viúva, coisa de pelo menos R$ 2,5 bilhões.

Chama-se “outorga” a prestação que o concessionário se comprometeu a pagar. Algo como aluguel. Em 2012, quando o governo petista privatizou os aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília, o leilão foi considerado um sucesso, e informou-se que ele renderia R$ 24,5 bilhões. Renderia, porque os três concessionários não pagaram os aluguéis. O mesmo aconteceu com os novos donos do Galeão e de Confins.

O ministro diz que os aluguéis serão pagos até o fim de dezembro. Acredita quem quiser. Pelo contrato de concessão dos aeroportos, como acontece com o aluguel de apartamentos, se o inquilino não paga, deve ir embora. O governo preferiu o caminho do refresco para não assustar o mercado. Talvez aí esteja o seu erro. O que assusta investidores é um governo que não cumpre contratos. Não foi por superstição que algumas grandes empreiteiras nacionais e operadoras mundiais de aeroportos resolveram ficar longe dos leilões petistas.

As privatizações de 2012 foram tratadas como um êxito porque parecia que a simples ideia de afastar o governo dos aeroportos resolveria o problema dos apagões. Quem olhou os leilões da privataria petista sentiu cheiro de queimado. A OAS ficou com Guarulhos; a Engevix, com Brasília; e a UTC, com Viracopos. Em quase todos os casos, entraram os fundos de pensão Petros, Previ e Funcef, bem como o velho e bom BNDES. Um ano depois, a Odebrecht levou o Galeão com um socorro das arcas do FGTS e conseguiu um milagre da privataria, o aeroporto foi privatizado e sua concessionária tinha 61% de participação estatal.

A permanência da Infraero nas operações dos aeroportos privatizados foi criticada internacionalmente como sendo um caso de permanência da raposa no novo galinheiro. Como os concessionários decidiram enxugar a folha de pagamentos do seus aeroportos, a estatal transferiu servidores para Congonhas, que continuou na sua jurisdição, e seu quadro passou de 336 funcionários para 573. Um deles era encarregado de vigiar o refeitório.

As privatizações não trouxeram o que prometeram (inclusive os aluguéis), mas as novas operadoras melhoraram alguns aspectos do negócio. Nenhum aeroporto brasileiro pode sonhar com a qualidade dos terminais de Amsterdã, mas Guarulhos pode ser mais confortável do que algumas áreas de embarque congestionadas do Charles De Gaulle. Já o Galeão, em 2015 continuava invicto na posição de pior aeroporto do mundo. Em abril passado, a Odebrecht atrasara o pagamento de R$ 934 milhões.

Projeto do ‘abuso de poder’ é delito com impressão digital - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 13/07

Adiamento do debate em comissão da proposta de lei não elimina o risco de mais esta manobra para manter a impunidade no combate à corrupção


Não é porque o projeto de lei sobre “abuso de poder” só começará a ser discutido em comissão a partir de 16 de agosto, na volta do recesso do Congresso, conforme decidido ontem, que a ameaça da iniciativa ao combate do Estado à corrupção foi atenuada. O perigo permanece, apenas foi adiado.

A tramitação recente deste projeto de lei traz as impressões digitais dos interesses que o cercam. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), explica que desengavetou esta iniciativa, em tramitação na Câmara até 2009, a pedido de um Supremo preocupado com desmandos de organismos do Estado no trato com os cidadãos.

O projeto estabelece punições a agentes públicos, por exemplo, no uso de algemas em detidos, procura evitar grampos sem autorização judicial — supõe-se que as gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado com caciques do PMDB, inclusive Renan, seriam atingidas —, além de criar alternativas jurídicas para investigados se precaverem diante do Ministério Público.

As louváveis preocupações do Supremo estão, porém, sendo usadas, de maneira clara, por Renan Calheiros, um dos investigados na Lava-Jato, para retaliar o Ministério Público Federal, responsável por denúncias contra o senador junto ao Supremo.

Entende-se, então, por que o presidente do Senado instituiu a Comissão de Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação da Constituição. Um nome pomposo com o único objetivo de aprovar o projeto de forma terminativa — sem necessidade de levá-lo a plenário. Toda esta manobra, contra a Lava-Jato e operações semelhantes, ficou ainda mais exposta quando assumiu a presidência da tal comissão Romero Jucá (PMDB-RR), outro atingido pela Lava-Jato.

Segundo a velha imagem, construíram o galinheiro dentro do covil das raposas. Essa operação, denunciada por procuradores e juízes, condiz com o clima de conspiração contra a Lava-Jato, no Legislativo, captado pelos gravadores de Machado em conversas a portas fechadas com Renan, Jucá, José Sarney e outros.

Talvez num rasgo de sensatez decorrente das reações à operação, Jucá atendeu senadores, adiou o início do debate do tema para meados de agosto, e reconheceu que o projeto poderá passar por outras comissões, como é desejado.

Não pode haver rolo compressor em assuntos como este. Até porque é evidente o que motiva a pressa — o interesse em se preservar a impunidade na corrupção, um universo em expansão constante.

Não se duvida que a sociedade precisa de defesas diante do Estado. Mas é inadmissível que se use este pressuposto para enfraquecer funções benignas do próprio Estado.


Reação legislativa - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 13/07

Seria improvável, no atual clima de vigilância da opinião pública, que tentativas explícitas no sentido de arrefecer o combate à corrupção fossem intentadas pelo Executivo ou pelo Congresso.

A Operação Lava Jato, afinal, paira como êxito indiscutível acima dos tropeços políticos e desastres econômicos dos últimos dois anos. Os dados totalizados por esta Folha impressionam: há, até o momento, 56 delatores, 75 réus condenados e R$ 2,9 bilhões a serem devolvidos ao erário.

Mas seria também implausível uma situação em que os principais afetados pela ofensiva policial e judicial —a saber, uma ampla parcela das autoridades brasileiras— não se esforçassem, nos bastidores, por desarmar tantos mecanismos que os ameaçam.

A reação começa a tomar a forma de debates legislativos inspirados em excessos supostos e reais da Lava Jato e operações congêneres.

Reconheça-se, de pronto, que o tema é meritório; princípios como os da presunção de inocência e do direito amplo à defesa não podem ser abandonados em favor de uma cruzada moralista.

O êxito e a eficiência das investigações correm riscos crescentes, entretanto, quanto mais se estendem suas malhas sobre os partidos e políticos beneficiados pela nova conjuntura pós-afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT).

Vieram à tona, por exemplo, gravações em que o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), defende mudanças na lei com o objetivo de limitar o instituto da delação premiada aos casos em que réus estejam em liberdade.

O assunto, a rigor, é dos mais polêmicos —havendo quem argumente que a prisão preventiva dos suspeitos sirva como uma pressão ilegítima para que assinem seus acordos com os investigadores.

Também da presidência do Senado se origina a decisão de recolocar em pauta projeto destinado a coibir abusos de autoridades, entre os quais o vazamento de dados de investigações. A proposta tem pertinência; não deixa de inspirar precauções, porém, o momento em que reaparece seu debate.

Enquanto isso, com aval da Presidência da República, retira-se na Câmara dos Deputados a urgência para o exame de um pacote de medidas anticorrupção—como a que criminaliza o uso do caixa 2 em campanhas eleitorais.

Ainda que defensáveis pontualmente, todas essas iniciativas vão num mesmo sentido, o de diminuir a pressão sofrida pelos próprios políticos que as propõem. Trata-se do bastante, sem dúvida, para que se redobre a vigilância quanto a seu conteúdo.


Exportações na ordem do dia - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE - 13/07

As exportações brasileiras, praticamente o único setor da economia a apresentar resultados positivos nos últimos tempos, devem receber todo estímulo para que a forte recessão que se abate sobre o país possa ser, de alguma forma, amenizada. Os dados recentes são alentadores, na medida em que mostram a retomada, com curva ascendente, das vendas externas pela indústria nacional, notadamente nos setores têxtil, automotivo e de máquinas e equipamentos.

O governo federal tenta desatar as amarras que dificultam as exportações, mas todos os esforços têm de ser feitos para que essa retomada não se torne passageira e o país volte a amargar baixos índices em seu comércio exterior. Há indicadores mostrando que as empresas brasileiras iniciam a recuperação no cenário internacional e o fim do atrelamento das exportações às commodities deve ser um objetivo a ser buscado com perseverança. Focar na venda de manufaturados dará ao Brasil o impulso necessário para o fortalecimento do superavit no comércio externo.

O crescimento da exportação de manufaturados, elixir para a indústria nacional para enfrentar a gravíssima crise econômica, tem sido a principal notícia positiva na área da economia. Medidas pontuais, como a transferência da Agência Brasileira de Promoção às Exportações (Apex) do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (antigo MDIC) para o Ministério das Relações Exteriores, são importantes para o incentivo às vendas externas.

O Plano Nacional de Exportações (PNE), lançado no ano passado e cujo objetivo primordial é o aumento das exportações de produtos manufaturados com maior valor agregado, tem de ser incentivado por todas as esferas governamentais envolvidas no setor. Além de valorizar a comercialização para o exterior de produtos manufaturados, o PNE se propõe a promover a expansão do mercado com a definição de 32 parceiros considerados promissores, como México, Argentina, Peru, Colômbia e Estados Unidos, além da União Europeia.

Mas não bastam boas intenções do governo. Iniciativas de incentivo são louváveis. Entretanto, as exportações continuam enfrentando barreiras históricas. Os entraves às vendas externas passam por uma série de problemas que esbarram num conjunto de políticas públicas envolvendo desde a tributação aos gargalos de infraestrutura, logística e até a capacidade do setor privado em competir no mercado internacional.

O setor de exportações, assim como a economia como um todo, tem urgência na aprovação, o mais breve possível, de uma reforma tributária profunda, com a consequente diminuição da carga tributária, uma reforma trabalhista - a legislação trabalhista vigente é da época do governo de Getúlio Vargas - e uma reforma previdenciária. Só depois de transpostos esses gargalos, as exportações brasileiras conseguirão disputar, palmo a palmo, o mercado internacional.

O Orçamento do atraso - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/07

Para ajustar o projeto da LDO aos novos números, o relator pretende acrescentar R$ 2,4 bilhões às despesas



Pizza pode ser um grande símbolo político. A margherita foi inventada – com as cores verde, vermelha e branca, do manjericão, do molho de tomate e do queijo – como homenagem à rainha Margherita di Savoia. Em pizza, no Brasil, é como terminam, quase sempre, os inquéritos parlamentares, sob influência do corporativismo e do interesse comum na segurança do mandato. Também uma pizza grande, cara e de muitos sabores é o Orçamento-Geral da União, partido e repartido em pedaços de vários tamanhos para atender a muitos interesses particulares, numa festança financeira, e, se algo sobrar, até ao interesse nacional. Essa tradição é reafirmada, agora, com a tentativa do relator-geral da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), senador Wellington Fagundes (PR-MT), de impor um custo para aceitar a nova meta fiscal proposta pelo Executivo.

Para ajustar o projeto da LDO aos novos números, o relator pretende acrescentar R$ 2,4 bilhões às despesas. A maior parte do gasto adicional seria destinada às emendas impositivas, aquelas imunes ao bloqueio pelo Tesouro durante o exercício fiscal.

Os outros R$ 800 milhões engordariam a verba paga aos Estados para compensar a desoneração das exportações de produtos básicos e semielaborados. Desde a aprovação da Lei Kandir, na década de 1990, os governos estaduais ganham essa compensação para livrar do ICMS aquelas exportações. A Lei Kandir deveria ter durado pouco tempo e aquela transferência seria extinta depois de alguns anos. A obrigação imposta ao Tesouro Nacional, porém, passou a ser parte da rotina orçamentária – mas isso é outra história. A obrigação remanescente acrescentou-se, enfim, ao bolo da barganha anual entre parlamentares e Executivo federal.

Se a fatura imposta pelo senador for paga, as emendas imunes a bloqueio passarão de R$ 4,8 bilhões para R$ 6,4 bilhões. O valor pode parecer pequeno, como parcela do Orçamento, mas qualquer aumento de gasto é em princípio inconveniente, quando se projeta um déficit primário de R$ 170,5 bilhões e a dívida pública avança na direção de 80% do Produto Interno Bruto (PIB).

Além disso, a qualidade da maior parte das emendas é bem conhecida e integra, há muitos anos, o folclore da política brasileira. Parlamentares e bancadas estaduais costumam apresentar emendas de interesse meramente clientelístico e local, como se fossem vereadores com mandato federal. Ocasionalmente as despesas propostas podem ter alguma importância, mas têm o defeito congênito de ser descoladas de qualquer princípio de prioridade nacional.

Desse ponto de vista, são inegável desperdício, porque tornam menos eficiente o uso de recursos públicos. A maior parte dos projetos caberia mais adequadamente em orçamentos municipais ou estaduais.

Jogos desse tipo revelam duas atitudes muito comuns em Brasília – muito mais comuns do que em outras capitais políticas de países com tripartição de poderes. Primeira: a incapacidade de pensar em termos de interesse nacional. Não só na forma de tratar o Orçamento, mas também nas discussões de temas de alcance muito amplo, como o sistema tributário ou a política de comércio exterior, a visão provinciana e de muito curto prazo tende a prevalecer.

Segunda: o Tesouro Nacional é único, mas tende-se a conceber a independência dos poderes como independência para gastar. Além disso, atribui-se a responsabilidade pela saúde financeira do Estado somente ao Executivo. Todos têm o direito de gastar, mas só o presidente e sua equipe são responsáveis pelo equilíbrio fiscal.

Nas democracias ocidentais, a sujeição das finanças públicas ao Parlamento foi um meio de regular os gastos. Controlar o poder do rei para entrar em guerras foi um dos objetivos iniciais, mas limitar a necessidade de impostos para sustentar o governo também foi uma forte motivação. Os primeiros países a entrar nesse caminho se tornaram ricos e poderosos. O Brasil ainda espera o futuro. Enquanto isso, danem-se as finanças públicas.