O GLOBO - 13/07
Estamos diante do paradoxo absoluto: pretende-se transformar em lei a vontade do criminoso de prender quem o investiga
O Brasil é um país contraditório. Um país rico, com uma população pobre. Um país em que pessoas de bem trancam-se em suas casas enquanto criminosos andam livremente pelas ruas. E agora, com o projeto de lei de crimes de abuso de autoridade, estamos diante do paradoxo absoluto: pretende-se transformar em lei a vontade do criminoso de prender quem o investiga.
No passado, com a indignação da população, diversos projetos de mordaça de autoridades foram derrotados. E essas propostas foram bancadas por políticos de todo o espectro partidário, pois se há um terreno comum a quem está no poder é o interesse de fazer calar investigações, sobretudo quando batem à sua porta.
Agora surge um movimento muito mais insidioso, que se apresenta como se estivesse identificado com o interesse público. Sob o discurso da repressão do abuso de autoridade, que realmente acontece no dia a dia, mas não nas hipóteses previstas nesse projeto, pretende-se, em verdade, não apenas calar investigadores e juízes, mas paralisar investigações de criminosos do colarinho branco, especialmente aqueles que possuem poder político e que durante anos se beneficiaram de um vasto esquema de corrupção.
Essa prática de terror contra funcionários públicos, atemorizando-os com ameaças a sua liberdade, seu patrimônio e o seu bom nome, apenas demonstra o nível de degradação a que chegou o Estado brasileiro. Quem deve ser expurgado da vida pública não é quem investiga, nem o promotor que acusa, muito menos o juiz que julga, mas aqueles que recebem valores desviados do poder público, aqueles outros que vivem de negociatas com os poderes que a lei lhes defere, ou ainda aqueles que, por motivação ilícita, deixam de cumprir sua responsabilidade para com a população.
Isso fica ainda mais claro quando se percebe que o projeto ultrapassa o senso do razoável, senão do ridículo, criando amarras e limites àqueles que atuam contra o ilícito, estabelecendo punições desmedidas para condutas que não deveriam ser sancionadas. A tentativa de retorsão é ainda mais clara quando o projeto cria a hipótese anômala de ação penal privada, em que o criminoso é autorizado a buscar a punição dos agentes públicos que o investigam, em uma solução digna de Kafka.
Nesta verdadeira inversão de valores, o projeto ora em andamento, erigido como prioritário para ser colocado em votação, reflete na medida o interesse daqueles que estão acostumados a não ter suas condutas escrutinadas pela população e pela imprensa, quanto mais submetidas ao Poder Judiciário; daqueles que estão acostumados a ver a ação das autoridades apenas atender a seus interesses individuais; ou então alcançar apenas seus inimigos, agindo como garoto de recados sob suas ordens.
Quando isto não acontece, quando se veem tendo que justificar seus atos, quando são vistos pelos investigadores como cidadãos iguais a todos que são, como nos tempos presentes, estes integrantes da classe dirigente pregam a mudança da lei, brandem ameaças. Diz-se classe dirigente porque esta manobra não é de autoria apenas de políticos, mas de integrantes de vários estamentos da sociedade brasileira, que se articulam para fazer cessar as investigações, pelos mais variados motivos, todos espúrios.
Somente uma lei séria — coerente com a vontade da população, que estabeleça sanções para aqueles que abusam de seus poderes e com a finalidade ética que deve permear todas as atividades do Estado — pode prosperar. Enfim, cabe novamente à população repelir essa nova ameaça, permitindo a continuidade das investigações que lavam este país de norte a sul, doa a quem doer. Ou então aceitemos a contradição e, em vez do poder público, chamemos o ladrão.
Antonio Carlos Welter e Carlos Fernando dos Santos Lima são procuradores regionais da República
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