Fundo adormecido
Miriam Leitão
O GLOBO - 04/02/11
A operação do PanAmericano é mesmo incrível. Banqueiros abriram mão de juros e devolveram garantias ao devedor; dinheiro coletivo foi usado como se fosse dos bancos interessados; a Caixa pagou por um banco e quando descobriu que tinha comprado gato por lebre não pediu o dinheiro de volta. O antigo dono não perdeu nada, exceto um banco quebrado e embolsou o dinheiro da Caixa.
Conversei ontem com o presidente do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), Gabriel Jorge Ferreira, para tirar minhas dúvidas. Permaneço com elas. Conto aqui a conversa. Perguntei a ele por que o Fundo Garantidor de Crédito abriu mão das garantias dadas pelo empresário Silvio Santos. Ele: "porque trocou de devedor, que agora é o BTG Pactual, que cobriu a dívida." Perguntei por que o fundo aceitou R$450 milhões para pagar uma dívida de R$3,8 bilhões. Ele disse que é porque o capital será remunerado a 13% ao ano e, ao final de 17 anos, R$450 milhões equivalerão a R$3,8 bilhões.
Para que a mágica aconteça, o dinheiro que o FGC pôs no PanAmericano terá que ficar congelado em valor nominal por 17 anos à espera de que os R$450 milhões engordem à ponto de virarem R$3,8 bi. Um dinheiro ficará parado como belo adormecido à espera do encontro com o outro por 17 anos.
Os responsáveis pela decisão têm dito que o FGC é uma entidade privada capitalizada pelos bancos. Não é bem assim. O Fundo não é estatal, mas é público. Foi criado pelo governo, em 1995, para proteger correntistas de bancos que eventualmente quebrassem. É capitalizado com um percentual dos depósitos bancários. O dinheiro é recolhido pelos bancos, mas o custo é repassado aos clientes, aplicadores e devedores dos bancos. Ou seja, a todos nós. O dinheiro não é tirado da conta diretamente. É indiretamente. É mais um custo pago pelo cliente no spread bancário, nas taxas de administração, nos custos dos bancos que são embutidos em todas as taxas. Eu perguntei ao presidente do FGC se eles repassam isso para o cliente e ele respondeu:
- Ora Miriam, eu não preciso explicar a você como a economia funciona.
A participação da Caixa é também difícil de entender. Ela pagou R$740 milhões por 49% das ações do banco. Qualquer compra nesse valor é feito com um contrato em que há uma cláusula estabelecendo que se o ativo não for o que parece ser o negócio é desfeito. No mercado, um banqueiro com quem eu conversei ontem me disse que das duas uma: ou não havia a cláusula, ou a Caixa não quis exercê-la. O empresário Silvio Santos não apenas se livrou de um banco quebrado, antes disso ele embolsou R$740 milhões da Caixa Econômica Federal, banco estatal. As ações do PanAmericano subiram 55% em dois dias. Mesmo assim, segundo cálculos feitos para nós pela consultoria Lopes Filho & Associados, as ações ainda estavam 28,2% abaixo do valor pago pela Caixa, que está com uma perda de R$212,5 milhões. Na verdade, é pior, porque as ações do banco caíram 9,8% no pregão de ontem. Ela pode até zerar esse prejuízo com a recuperação da ação, mas imagina o que a Caixa teria ganhado se tivesse aplicado em primeiro de dezembro de 2009, quando desembolsou o dinheiro, em um ativo bom?
Agora que o BTG assumiu, a Caixa vai colocar R$8 bilhões à disposição da instituição da qual é sócia. Beleza. Quer que o banco se recupere. O problema todo é que ontem o GLOBO trouxe a informação de que a Caixa pode vir a ser novamente capitalizada. De novo, sobrará para o Tesouro, que é formado com o seu, o meu, o nosso dinheiro.
Três dos membros do conselho de administração do Fundo Garantidor que participaram da decisão de emprestar R$2,5 bilhões e depois mais R$1,3 bilhão sem juros para o PanAmericano tinham comprado carteiras de crédito do banco: o Itaú, o Bradesco e o Banco do Brasil. Outro integrante do Conselho é a Caixa, que comprou ações do banco. Se o banco falisse, os quatro teriam prejuízos. Perguntei a Gabriel Ferreira se não havia conflito de interesse em que esses quatro bancos - dos oito representados no Conselho - decidissem esse empréstimo que salvaria seus próprios ativos. Ele respondeu:
- Isso de fato causou um desconforto.
Segundo o banqueiro, tudo foi feito em nome do interesse público porque desta forma se evitou uma crise sistêmica. Pediu que eu lembrasse das manchetes de 15 anos atrás quando quebraram bancos no Brasil. Me lembro bem. Naquela época, do Proer, os controladores e os administradores responderam com seus bens, que ficaram indisponíveis. Ele ponderou que o Banco Central não ganhou nada até agora. Bom, a Justiça é lenta. Mas os donos e administradores dos bancos responsáveis por fraudes contábeis e administração temerária respondem processos na Justiça e ficaram com seus bens indisponíveis.
Há mais mistérios no ar do que sonha a nossa vã filosofia. Como foi mesmo que apareceu esse rombo? O Banco Central foi somar todas as carteiras que todos os bancos diziam que tinham e concluiu que a soma das partes era maior do que o todo. Assim ele descobriu que o PanAmericano vendeu carteiras, mas as mantinha como seu ativo. Deve haver outras manobras ainda não explicadas. Quando o Fundo Garantidor fez o primeiro empréstimo, o Banco Central garantiu que não havia mais rombo e o banco estava saneado. Assim disse também a Caixa Econômica. E depois foi encontrado outro rombo de R$1,3 bilhão. A divulgação do balanço do PanAmericano poderá explicar melhor. Já foi adiada várias vezes e agora ficou para o próximo dia 15.
Gabriel Ferreira disse que o BC fez inquérito administrativo e que o Ministério Público vai investigar tudo. Depende agora do MP um final que dê algum sentido a essa história sem pé nem cabeça.