sábado, setembro 10, 2011



Como será o Brasil de Gabriel?
RUTH DE AQUINO
REVISTA ÉPOCA


No futuro, o neto de Dilma descobrirá se a avó soube enfrentar com energia a corrupção e a impunidade





RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
O neto de Dilma, com nome de anjo, Gabriel, fez 1 aninho. Tem festa neste sábado no Palácio da Alvorada, a residência oficial dos presidentes, batizada assim por Juscelino Kubitschek: “Que é Brasília, senão a alvorada de um novo dia para o Brasil?”. A década era de 1950 e Dilma tinha 10 anos quando foi inaugurado o prédio monumental de mármore, vidro e colunas de Niemeyer. Filha de búlgaro exilado, a menina não sonhava um dia estar ali. Como avó e presidente, diante de dilemas políticos, econômicos e morais.
Dilma tinha 22 anos quando foi detida e torturada por resistir à ditadura em grupo armado. Tem hoje 22 anos o estudante Tiago Lira, que virou símbolo do movimento anticorrupção em Brasília. Ele guardou recortes de jornais com várias fotos suas no protesto que reuniu 25 mil na Capital no feriado da Independência. Estuda ciências políticas na UnB, mora com a tia numa cidade-satélite de Brasília. E era virgem em protestos.
Tiago está eufórico porque o movimento pacífico e espontâneo, “sem rosto e sem líder”, não levantou bandeira de nenhum partido. “Essa gurizada das redes sociais vai tomar conta das ruas do país”, afirmou o senador gaúcho Pedro Simon. Eles levantaram a bandeira do Brasil e impediram a participação de políticos na Marcha. O hino era um refrão do samba de Bezerra da Silva: Se gritar “pega ladrão”, não fica um, meu irmão.
Não havia líderes sindicais no protesto. O sindicalismo subiu à elite nos oito anos de Lula e se lambuzou com o melado das regalias. Não lutará contra a impunidade. Imagina. Logo eles, que ovacionaram José Dirceu na abertura do congresso do PT: “Dirceu, guerreiro, do povo brasileiro”.
Uma faixa na Marcha de Brasília cobrava punição aos envolvidos no mensalão do PT. Dirceu foi chamado pelo procurador-geral da República de “chefe de quadrilha”. Mas o mensalão nunca existiu, não sabiam que foi invenção da imprensa? O publicitário Marcos Valério e o ex-deputado Roberto Jefferson, operador e acusador do esquema de propina, sempre pouparam Lula. Na semana passada, estranharam a ausência do ex-presidente no processo. Não é fácil ser ex.
No futuro, o neto de Dilma descobrirá se a avó soube enfrentar com energia a corrupção e a impunidade 
Os manifestantes estavam vestidos de preto, em luto contra as maracutaias que sugam o dinheiro da saúde e educação. Empunhavam vassouras parecidas com aquela que a presidente escondeu em algum armário do palácio, quando a faxina ética mexeu em sujismundos inconvenientes. Dilma foi “protegida” da Marcha. Ficou na outra metade da Esplanada dos Ministérios, para o desfile oficial do 7 de setembro. Placas de concreto isolaram a Marcha, para não ser vista nem ouvida. O vice Michel Temer estava nas praias de Natal com Marcela e o filho Michelzinho. Tirou cinco dias de folga dessa zorra toda.
Até que ponto Dilma pretende deixar sua marca na história? Ela lê jornais. E viu o que diziam as faixas de jovens tão idealistas quanto um dia ela foi. “Voto secreto, não. Quero ver a cara do ladrão.” Esta era contra a decisão da Câmara de livrar a cara da deputada Jaqueline Roriz. Outra faixa dizia: “País rico é país sem corrupção”. Dilma é boa de conta e sabe quanto seu plano contra a miséria ganharia se o roubo oficial fosse controlado. Sugiro outra bandeira: “Para onde vão os impostos extorsivos? Como foi gasto o IOF, aumentado quando a CPMF foi extinta?”. Transparência, prestação de contas. É disso que precisamos. É o que merecemos.
A presidente teve um papel duplo fundamental nessa campanha ainda modesta contra a corrupção. Primeiro, foi dura com alguns ministros e os rifou. Depois, recolheu a vassoura. Deixou os jovens livres para assumir de forma apartidária o movimento de moralização contra os “malfeitos”. O mais inteligente seria chamar ao Planalto esses idealistas. Saber o que querem hoje, num país que é uma democracia mas subestima seus eleitores.
Quem sabe no futuro, ao estudar história contemporânea, Gabriel descubra que a avó foi a primeira presidente do Brasil a enfrentar com pulso forte tanto a miséria quanto a cara feia da corrupção e da impunidade política. Parabéns para você, bebê.

IVAN ANGELO - Bagunça ética


Bagunça ética
IVAN ANGELO
REVISTA VEJA - SP 






Os sinais se multiplicam. Carros com motoristas embriagados atropelam pedestres até nas calçadas, ampliam estatísticas de morte nas estradas. Gangues de punks e de nazicarecas espancam gays e cidadãos pacíficos nas ruas. Policiais executam detidos, dão tiros em ônibus onde há passageiros sequestrados. Mulheres dão à luz e jogam bebês no lixo ou no córrego. Cuidadores espancam velhinhos doentes indefesos. Padrasto bêbado atira criança de 2 anos na parede e ela morre. Jovens espancam até a morte rapaz na porta da boate.

Isso não acontece do nada, veio sendo gerado e disseminado; há algum tempo percebem-se sinais de exasperação na linguagem da sociedade.

Nos lugares mais cândidos, surpreende-se o aparato dessa exasperação; por exemplo, numa loja de brinquedos. Aqueles pequenos módulos coloridos de plástico, com os quais se montavam homenzinhos e casas, agora formam também alienígenas agressores e artefatos de guerra. Há nas lojas de crianças uma quantidade incrível de monstros, de armas que disparam dardos como metralhadoras, de automóveis que se transformam em robôs de combate.

A música funk é agressiva, no ritmo e nas palavras.

Físico bom é o dos bombados e sarados, os que se impõem, prontos para qualquer coisa. Que que é, vai encarar?

Cão para impressionar a garota já não é aquele para o qual se atirava uma bola ou um pedaço de madeira e ele os trazia festeiro, é o pit bull de grossa coleira de pinos.

Nos filmes, o lado de dentro dos corpos fica para fora. Tudo é explícito: o sangue, a amputação, a perfuração, a descarnadura — para que todos se acostumem, para banalizar o horror.

Os esportes se abrutalham. Futebol é correria, tranco e carrinho; proibido o drible moleque. Vôlei é aquela pancada e preparação para ela. Até o esporte antes considerado o mais violento, o boxe, que já havia abandonado a arte da esquiva e da dança dentro do ringue, em favor da pancada seca dos lutadores de cintura dura, na era Mike Tyson, até o boxe, repito, foi superado por outro espetáculo de maior violência, no qual valem socos, cotoveladas, joelhadas, pernadas, pé na cara, enforcamento, cujo objetivo é o massacre do adversário, mesmo caído.

As tardes da televisão são de horrores. Apresentadores selecionam e exibem atrocidades com a pretensão de “mostrar a realidade”. Só aquela que lhes convém.

A violência explícita das pancadas, dos tiros e das perseguições de carros que se destroem pelas ruas é reforçada por outra, mais insidiosa, presente no jeito estúpido de falar, aos berros, de dirigir, agressivamente, e de amar, aos trancos. Repare nas novelas, como as pessoas se tratam aos berros, mesmo dentro das famílias. A montagem dos filmes é nervosa, tensa, reforçada pela música e pelos efeitos sonoros agressivos, buscando impacto, choque. O filme agride até quem fica de olhos fechados. Aqueles feitos para as crianças seguem o currículo dessa escola.

O pior do pior é que a violência é praticada tanto pelo mal quanto pelo bem. Aplicada com sadismo pelo mocinho contra os bandidos, torna-se uma ação positiva, para olhos ingênuos. O herói bate, mata e até tortura em nome do bem. Por extensão, quem é do bem também pode espancar, assassinar e torturar, como os do mal. E aí estamos a um passo da bagunça ética.

MANOEL CARLOS - Colecionando sonhos


Colecionando sonhos
MANOEL CARLOS
REVISTA VEJA - RIO




A crônica “Sonhos”, que escrevi para este espaço há quinze dias, suscitou alguns comentários de amigos que fui encontrando no correr da semana. O assunto é de grande magnitude e não há quem não se debruce sobre ele, sendo que no mundo moderno, digamos assim, Freud e Jung foram os grandes responsáveis pelo interesse despertado. E aí os gregos, sempre eles, voltaram, com seus deuses, à convivência com a humanidade mortal. Virou moda. Ouvi gente, que mal sabia distinguir entre duas vogais, falar em complexo de Édipo, de Hécuba, de Electra… e dando significado aos sonhos.

Melhor assim, quando entra na moda algo que nos remete à antiga Grécia, berço da civilização europeia.
A razão de muitas vezes falar e escrever sobre o tema é que sou um guardador de sonhos. Colecionador, se preferirem. Sonhos meus e dos outros: amigos que me contam, desconhecidos que me abordam, narrativas sonhadas que leio nos livros e nas entrevistas. Vou passando esse material para um caderno, e minha coleção está se avolumando. Nem todos me interessam, claro, mas posso garantir a vocês que, entre os que merecem a minha atenção e passam a ter lugar na minha coleção, há sonhos ricos, verdadeiras obras-primas da criatividade do sonhador. Estou pensando em reunir esses relatos num livro, o Livro dos Sonhos, com o subtítulo: Para Todos, Até Mesmo para Psicanalistas. Quem sabe não coloco esse livro entre os meus planos para 2012?

Já tenho escrito aqui sobre um dos meus autores preferidos: o argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), amigo e parceiro de Jorge Luis Borges (1899-1986), condição honrosa para ambos, mas que acabou por ofuscar um pouco o seu nome, em favor do outro. Bem, dirão alguns, Borges é maior, é melhor etc., mas todo juízo de valor é subjetivo. E relativo. Borges é um admirável poeta, o que Bioy não é, pelo menos não no que existe publicado até agora de sua poesia. Mas é um mestre das narrativas breves, ao lado de Borges. Como memorialista com senso de humor e sem autopiedade, ele é mais abrangente do que o autor de Ficções, precisamente por ser o narrador de pequenas lembranças, fatos corriqueiros e banais. Ele engrandece o que é pouco e menor, iluminando as áreas escuras da memória, não com uma lâmpada de 1 000 volts, mas com uma pequena vela, trêmula, hesitante. Sim, concordo, Bioy não é tão abrangente e universal como Borges. Não é um gênio, enfim, como seu melhor amigo, mas um ourives do pensamento que se transforma em palavras.

De seu livro De Jardines Ajenos, que foi motivo de uma crônica aqui publicada em 2006, transcrevi uma coleção de pequenas e precisas observações que ele faz sobre a condição humana. São como parábolas. Agora, diante de mais uma de suas obras, Descanso de Caminantes, que pertence aos seus diários íntimos, encontro, em suas 500 páginas, dezenas de sonhos que ele teve (ou terá inventado?), transcritos admiravelmente. Bioy Casares é um grande narrador de sonhos.

Quanto a mim, não me considero um bom sonhador das horas dormidas. Quando acordo, eu me lembro pouco do que vivi no mundo dos sonhos. Em menos de dois ou três minutos, já me esqueci totalmente de tudo. Às vezes são sonhos interessantes, originais, que gostaria de lembrar para contar à minha mulher, que tem sonhos claros, compactos, de fácil transmissão, mas os meus vão se diluindo na memória, até desaparecer totalmente. Uma pena.

Para encerrar a crônica, já que acabou o meu espaço, deixo um dos sonhos de Bioy Casares, na parca tradução que ouso fazer:
“Sonho que nos amamos. Subitamente, acordo, e lhe digo:

— Que vergonha. Dormi.
— Eu também — ela me diz.
— Vamos recomeçar então?
— Vamos, claro — ela me responde.
E, ao recomeçar, desperto realmente e me encontro em meu quarto, na minha cama. Sozinho”.
Boa semana, leitores.
Voltaremos a Bioy Casares.

ANCELMO GOIS - JOGO PESADO

JOGO PESADO
ANCELMO GOIS
O GLOBO - 10/09/11


A Polícia está convencida de que o irmão do traficante Marcinho VP, Cidinho, é quem comanda o mercado ilegal de gás no Complexo do Alemão.
Cidinho é primeiro suplente de deputado estadual. Meu Deus!

ALIÁS... 
O Exército está cada vez mais convencido de que seus problemas no Complexo do Alemão começaram com o combate, junto com a Agência Nacional do Petróleo, exatamente a esta reserva de mercado da venda de gás de cozinha, em toda aquela área.

FAXINA NA BOLA 
A Fifa anuncia dia 21 agora, em Zurique, um pacote anticorrupção.

ESTREIA NA ONU 
Dilma Rousseff sabe que seu discurso na Assembleia Geral da ONU, este mês, será uma espécie de estreia no cenário internacional como presidente.
Ela pretende dedicar um bom espaço do pronunciamento para analisar a situação econômica global e passar uns pitos nos países ricos.

PISCINA DO SULTÃO 
Ainda bem que ninguém avisou, porque perigava Roberto Carlos desmarcar tudo. A Piscina do Sultão, onde o Rei fez seu show em Jerusalém, quarta passada, é a mesma que recebeu Tom Jobim, em maio de 1994, no que acabou sendo o último concerto do grande maestro.
Tom morreu em dezembro daquele ano.

PRIMEIRA CATEGORIA 
Mariana Gomes, bailarina brasileira do Bolshoi, foi promovida a “artista de primeira categoria” no corpo de baile do teatro russo.
Só cinco moças do famoso balé receberam a distinção desta vez.

SEGUNDA CHANCE 
Próxima novela das 18 horas da Globo, A Vida da Gente dará ao público a possibilidade de criar uma “segunda chance” para assuntos desagradáveis que viraram manchete de jornal. No site bit.ly/poljXd, os internautas podem recriar primeiras páginas famosas. A Vida da Gente estreia dia 26 de setembro.

MENOS POP 
A Som Livre investe em produtos mais sofisticados. Depois de lançar CD e DVD de Ella Fitzgerald, põe à venda o DVD Gotan Project, de tango, e o CD da banda francesa Nouvelle Vague. Em outubro, lança um CD de blues rock da Rival Sons.

CASO ACIOLI 
A Associação dos Magistrados da Europa (Medel) e a Lawyer’s Rights Watch Canada (LRWC), entidades internacionais de defesa dos Direitos Humanos, enviaram cartas à Dilma pedindo empenho nas investigações do assassinato da juíza Patrícia Acioli.

DEBATE CONTAMINADO 
No Palácio do Planalto, a avaliação é que o debate sobre regulação da mídia proposto pelo PT ficou contaminado por um fato específico: a matéria da Veja que aponta José Dirceu como o “poderoso chefão”. Na avaliação de um auxiliar direto da presidente Dilma, se o PT queria de fato colocar o tema em pauta, agora, perdeu a oportunidade. Com esse clima bélico, será impossível o governo reabrir esse debate.

FERNANDO DE BARROS E SILVA - Toninho do PT, 10 anos


Toninho do PT, 10 anos
FERNANDO DE BARROS E SILVA
FOLHA DE SP - 10:09:11 

SÃO PAULO - Na manhã de 11 de setembro de 2001, o principal assunto da reunião de pauta na Redação da Folha era o assassinato do prefeito de Campinas, Toninho do PT, ocorrido horas antes, na noite do dia 10.
Em 17 minutos, entre 8h46 e 9h03, quando as Torres Gêmeas foram atingidas, a morte de Toninho passou de destaque do dia a uma nota de rodapé esquecida. Não foi, porém, apenas o 11 de Setembro que ofuscou esse crime. Dez anos depois, o assassinato do prefeito da maior cidade do interior do Estado ainda não foi esclarecido. Quem o matou -e a mando de quem?
O caso Toninho é tão intrigante e mal explicado quanto o assassinato de Celso Daniel, prefeito petista de Santo André, ocorrido pouco meses depois, em janeiro de 2002. Nos dois episódios, a versão oficial -de que foi crime comum, sem motivação política ou envolvimento de gente graúda com interesses ameaçados- é no mínimo insatisfatória.
As investigações da morte de Toninho foram reabertas em novembro do ano passado. Antes disso, a Justiça havia rejeitado a denúncia contra o sequestrador e traficante Andinho por considerar as provas do Ministério Público "frágeis, inseguras, contraditórias".
A família do ex-prefeito aponta uma sucessão de lambanças durante o inquérito (participação de policiais envolvidos na CPI do Narcotráfico, desaparecimento de provas, ausência de perícia em objetos, a chacina de quatro suspeitos por membros da própria polícia de Campinas, ocorrida no litoral).
Apesar disso tudo, e da sua insistência, a viúva de Toninho nunca conseguiu que a PF entrasse na investigação -pedido que dorme há três anos na gaveta da Procuradoria-Geral da República.
A mágoa dela com a omissão do PT e o corpo mole do governo petista é imensa. Basta ver o que diz no site quemmatoutoninho.org. Não sabemos ainda a resposta. Mas sabemos quem matou a honestidade quando chegou no poder em Campinas, em Santo André, no país.

RUY CASTRO - Estatueta oca

Estatueta oca
RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 10/09/11 

RIO DE JANEIRO - Recebi um alegre convite pelo e-mail: "Olá! O Falcão Maltês está convidando você a participar do Facebook!". Seguem-se frases prometendo que, se me juntar ao Facebook do Falcão Maltês, conquistarei amigos e influenciarei pessoas. A mensagem se despede: "Atenciosamente, o Falcão Maltês!". Para que não reste dúvida, vê-se a imagem de Humphrey Bogart segurando a estatueta do falcão, tirada do filme do mesmo nome, de 1941.
Quer dizer que agora é assim? Até personagem de ficção -"O Falcão Maltês" é um romance de Da- shiell Hammett, de 1930- já tem Facebook? Mas a pessoa por trás desse convite não deve ter visto o filme -porque parece achar que o detetive vivido por Bogart é o Falcão Maltês, um nome assim como o Falcão Negro dos velhos gibis. Ninguém lhe terá dito que o Falcão Maltês não é um homem, nem um pássaro, mas uma estatueta negra, em cujo oco haveria os ricos saques dos piratas da ilha de Malta?
Supondo que o Falcão Maltês fosse alguém de cujo Facebook se poderia participar, com quem nele você trocaria figurinhas? Com a maior concentração de bandidos e malandros por centímetro de página. O mais visível é o gordo Kasper Gutman (no filme, interpretado por Sydney Greenstreet), um aventureiro internacional que há anos persegue o falcão e, para obtê-lo, entregaria até a mãe.
Outro é Joel Cairo (no filme, Peter Lorre), malicioso, covarde, repulsivo. E ainda outro é o jovem Wilmer (no filme, Elisha Cook Jr.), tão violento quanto ingênuo. E por fim, mas não por último, Brigid O'Shau- ghnessy (no filme, Mary Astor), a definitiva mulher "noir", cujos beijos podem ser letais.
Por último, sim, Sam Spade (no filme, Bogart), o mais malandro de todos. Mas não a ponto de me convencer a participar desse suspeito Facebook do Falcão Maltês e, de algum jeito, acabar levando a breca.

DRAUZIO VARELLA - O fim da poliomielite

O fim da poliomielite
DRAUZIO VARELLA 
FOLHA DE SP - 10/09/11

De cada 3,2 milhões de crianças que recebem a vacina Sabin, uma pode apresentar complicação


Uma criança de Minas apresentou paralisia nas pernas depois de tomar a vacina contra a poliomielite, noticiou a Folha. Segundo o Ministério da Saúde, fica difícil confirmar o diagnóstico porque o período transcorrido desde a imunização é longo demais.
De qualquer forma, de cada 3,2 milhões de crianças que recebem a gotinha da vacina Sabin, uma pode apresentar essa complicação. Tal número, aceitável do ponto de vista estatístico, significa uma tragédia para a família da criança atingida.
O caso ilustra a complexidade das intervenções em saúde pública.
Existem duas vacinas contra a pólio: a Salk, que emprega vírus mortos administrados por via injetável; e a Sabin, preparada com vírus vivos atenuados, passíveis de administração oral. Por conter apenas vírus mortos, a Salk não pode provocar paralisias.
Introduzida em 1962, a vacina Sabin mostrou-se mais eficaz para a vacinação em massa, pela comodidade da via oral e pelo fato de o vírus atenuado nela contido ser excretado nas fezes, podendo conferir imunidade aos não vacinados que entrarem em contato com ele nas regiões sem saneamento.
Em 1988, ano em que ocorreram 350 mil casos da doença no mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tomou a decisão de erradicar esse flagelo de uma vez por todas.
A pretensão era ousada, mas razoável: se em 1977 tínhamos acabado com a varíola, por que não conseguiríamos o mesmo com uma doença para a qual existe vacina e que é transmitida de uma pessoa para outra sem a intermediação de hospedeiros, que tantas vezes funcionam como reservatórios naturais impossíveis de eliminar?
O tempo mostrou que acabar com a varíola foi mais fácil. Primeiro, porque seus portadores são facilmente identificáveis a partir das lesões na pele, enquanto a maioria das infecções pelo vírus da pólio são inaparentes. Apenas 1 em cada 100 a 200 infectados desenvolve a forma paralítica da doença, mas todos eliminam o vírus nas fezes. Segundo, porque enquanto uma única dose da vacina antivariólica confere imunidade em 95% a 98% das vacinações, a da paralisia infantil exige três, quatro e às vezes seis doses de reforço.
Apesar dessas dificuldades, o número de casos e o de países que os relataram caiu rapidamente.
No Brasil, o último diagnóstico foi feito em 1990. A OMS declarou a doença definitivamente erradicada das Américas em 1994, e da Europa em 1999.
Os vírus da poliomielite não são todos iguais, eles pertencem a três sorotipos: 1, 2 e 3. O último caso provocado pelo sorotipo 2 foi detectado em 1999, enquanto aqueles atribuídos aos sorotipos 1 e 3 diminuíram 99% entre 1988 e 2005.
No final de 2009 foi obtida uma nova vacina oral bivalente contra esses sorotipos 1 e 3. Sua administração para crianças negligenciadas nas campanhas anteriores provocou queda de 95% das ocorrências nos dois maiores reservatórios naturais: norte da Índia e norte da Nigéria.
O declínio da transmissão na Índia e na Nigéria é crucial para o combate, porque vírus procedentes dessas áreas têm causado surtos em outros países anteriormente livres.
Além de Índia e Nigéria, o vírus ainda sobrevive em outros dois reservatórios naturais: Paquistão e parte do Afeganistão. Nos outros oito países que ainda registram casos, ele foi reintroduzido após extinto.
Três deles (Angola, Chad e Congo) se tornaram reservatórios secundários, condição que a OMS considera caracterizada quando o vírus importado continua a circular no novo habitat por mais de 12 meses.
Os desafios logísticos para imunizar em massa mais de 90% das crianças que vivem nesses reservatórios secundários são semelhantes aos enfrentados para erradicar a doença em áreas endêmicas nas quais miséria, insegurança e guerras dificultam as operações.
Embora não seja fácil eliminar o vírus que ainda resiste em seus reservatórios naturais ou secundários, a OMS defende que a poliomielite está perto do final e os especialistas já discutem como prevenir surtos na era pós-erradicação.
Nessa fase deveríamos adotar a vacina Salk, injetável, para evitar as rarísmas complicações da Sabin?
Seria melhor interromper os esquemas de vacinação ou mais prudente mantê-los, apesar dos custos e riscos?

GOSTOSA


LÚCIA GUIMARÃES - Seriedade em plena era da bobagem



Seriedade em plena era da bobagem
LÚCIA GUIMARÃES
O ESTADÃO - 10/09/11


O polêmico Lee Siegel discute Are You Serious? (Você Fala Sério?), um ensaio que usa a força da expressão idiomática do título para explorar a cultura contemporânea, que 'perdeu o norte'


NOVA YORK

Quando nos aproximamos da adorável casa amarela no alto de um terreno, na pequena cidade de New Jersey, o esforço para estacionar na vaga apertada compete com o esforço para conciliar a prosa devastadora do morador e a placidez do lugar onde ele se exilou de Nova York. Mas há um precedente: o terreno do fundo é ocupado pelo igualmente mordaz comediante Stephen Colbert.

O escritor e polemista Lee Siegel nos recebe numa tarde escorchante. Seu novo livro Are You Serious? How To Be True and Get Real in The Age of Silly (Harper Collins, U$ 24,99) - Você Fala Sério? Como Ser Verdadeiro e Cair na Real na Idade da Bobagem - usa a evolução da expressão idiomática do título para explorar a cultura que perdeu o norte usado para distinguir entre a seriedade, bobeira e o niilismo sarcástico.

Siegel denuncia a insustentável leveza do diálogo cultural americano. Um momento em que o comediante seu vizinho é confundido com uma autoridade do comentário político, enquanto o âncora do telejornal serve de escada para um quadro no programa do dito comediante. Afinal, quem está falando sério? E por que a distinção é relevante? Engana-se quem vê em Siegel um casmurro azedo. Ou, como disse Mac Margolis, colunista deste jornal, a respeito de certo aspirante a Paulo Francis: "Uma atitude em busca de oportunidade."

Siegel escreveu Against The Machine: Being Human in the Age of the Electronic Mob, Spiegel and Grau, 2008 (Contra a Máquina: Ser Humano na Idade da Turba Eletrônica), um libelo contra a apatia que saudou a era digital, com seus maus modos e exaltações à superficialidade. É também autor do elogiado Falling Upwards, Essays in Defense of the Imagination, Basic Books, 2006 (Caindo para Cima, Ensaios em Defesa da Imaginação), livros cujos títulos revelam sua convicção de que "as coisas não precisam continuar como estão".

No começo de Are You Serious?, ele leva o leitor de volta à Londres vitoriana, onde o poeta e crítico Matthew Arnold inspirou gerações a buscar a seriedade através do refinamento cultural, um substituto para a religião. Logo no segundo capítulo, Siegel nos dá um tour de sua infância asmática, repleta de literatura e com exclamações que Woody Allen teria facilmente incluído em seus roteiros da década de 70. O livro toma o pulso da seriedade na política, na cultura e até recomenda, como quem tem uma simples receita para combater a gripe, de que maneira se pode ser sério. Sem prejuízo do senso de humor.

As pessoas não desconfiam logo do título do livro?

Alguns vão pensar que estou dizendo que eu sou sério e os outros são bobos. Que bobagem, eu sou bobo também. Este livro não é um sermão, não estou dizendo que a nossa era é mais boba do que outra passada. Apenas digo que a tecnologia da bobagem ficou mais sofisticada. E que as pessoas podem continuar a ser sérias quando precisam. O que me surpreende e que destaco no livro é o fosso entre a seriedade que existe na nossa vida privada e a bobagem que toleramos na vida pública.

Você cunha um neologismo, o "whateverism" que podemos traduzir por "qualquercoisismo". "Qualquer coisa" é a expressão niilista típica do adolescente americano.

É como um movimento social! As estruturas que dominam a sua vida são tão sufocantes, são impossíveis de derrotar e implacáveis que você, impotente, suspira: whatever. O que quer dizer, ao mesmo tempo, "nada pode ser feito" e também, "vamos tratar do que é de curto prazo". Eu acho que whateverism substituiu o cristianismo como o etos dominante da cultura americana.

O livro recomenda os três pilares da seriedade.

É simples: atenção, propósito e continuidade. Atenção: Você não está distraída com o Blackberry quando alguém lhe dirige a palavra. Propósito: Você sabe por que está num lugar ou numa situação e sabe o que espera dali. E, se tem senso de continuidade, sabe como chegou ali e onde quer chegar. Um bom exemplo é o piloto Chesley Sullenberger, o capitão da US Airways. Aterrissou no gelo fino, com os motores do avião em pane, em janeiro de 2009. Foi chamado de herói. Para mim, é um homem sério. Ele é modesto, disse que estava cumprindo sua obrigação profissional. E estava mesmo.

Na sua opinião, o escritor John Updike, morto naquele mesmo janeiro de 2009, exemplifica o clima antisseriedade na cultura americana.

O que se passou com Updike me parece um bom exemplo. Nós desconfiamos de autoridades neste país. Buscamos a autoridade e, quando ela é estabelecida, temos que destruí-la. O Updike era o artista sério que queríamos ter. Mas, quando ele se tornou importante e começou a exercer sua autoridade, falar de questões como o caráter da liberdade americana, muitos se voltaram contra ele. "Ele escrevia demais", diziam. A linguagem luxuosa de Updike, uma beleza da prosa americana, se tornou suspeita. Acho também que o desprezo por ele era uma irritação deslocada com o fato de que o romance contemporâneo não tem mais poder sobre a nossa vida, tanto quanto o filme ou a música. Eu escrevi sobre isto no ano passado e quase fui linchado. A palavra escrita perdeu o poder que tinha na sociedade. Note que alguns dos mais sérios autores contemporâneos, como V.S. Naipaul, Philip Roth e Geoff Dyer proclamaram o fim da relevância do romance.

No livro, você registra o momento em que a seriedade se tornou sinônimo de conservadorismo.

Foi depois da emergência da esquerda radical. Grupos violentos como o Weathermen, apareceram como resposta à violência da Guerra do Vietnã. Isto coincidiu com a chegada do movimento neoconservador. E a palavra seriedade virou o grito de guerra da direita. Você tinha que ser sério. Você tinha que falar de primeiras e últimas coisas. Você tinha que ser intelectual. Você tinha que se engajar em questões, veja, que esta é basicamente uma mentalidade da Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, ao contrário do que acontece hoje com ser Democrata ou Republicano, para ser um comunista, você tinha que ter lido ao menos uns livros. E para lutar contra o comunismo você tinha que ler os mesmos livros! Você tinha que mergulhar na história europeia. O que é interessante é que os conservadores, por causa da Guerra Fria, associavam seriedade a profundidade intelectual. Por outro lado, eles associavam o liberalismo elitista a abstrações. Acho que quando eles usavam a palavra "sério" não estavam definindo um intelectual e sim um americano patriota, com conotações de decência e da centralidade dos Estados Unidos naquele momento da história mundial.

E, a partir daí, você compara a seriedade com um unguento...

Para os conservadores, era mesmo. Para mim, qualquer pessoa pode ser séria. Nós compreendemos o que é ser sério na nossa vida, como amigos, pais, profissionais. Mas, para os conservadores, a seriedade era algo diferente. Você tinha que já começar sério. Era como uma pomada que ia passar. Algo que você levaria no bolso o tempo todo. Ou, quem sabe, seria sinalizada por uma gravata borboleta.

O poema América, do Allen Ginsberg, é celebrado no livro como a contrasseriedade, uma contracultura do que é ser sério.

No fim do poema quando ele diz, "América, estou encostando meu delicado ombro à roda", está brincando com a gravidade da velha expressão "Encoste seu ombro à roda". Para mim, isto representa um desdobramento da seriedade, a seriedade antisséria. Ele conjura outro tipo de seriedade. Há a seriedade do estadista, do clérigo, do financista. E há a seriedade do palhaço sábio, como o Ginsberg. No tempo dele, o sério era um homem branco e hétero. Seu poema é libertador. Ele substitui nos versos a seriedade rígida por uma seriedade traquinas, profundamente séria. E incorpora tantos excluídos. Por isso, adoro o poema.

Você diz que o modelo americano de seriedade é marcado pela busca de autoaperfeiçoamento.

Foi um fenômeno que se tornou mais acentuado depois da Segunda Guerra, com a GI Bill, que mandou milhões de veteranos para a universidade. Ter cultura era importante para competir com os russos. Vimos a emergência da seriedade "middle brow". Adquirir conhecimento se tornou autoaperfeiçoamento. Os grandes livros eram até numerados em coleções, você lia até o número 50 e poucos e aí se graduava como o homem sério. O que mostra que até o desejo pela cultura foi cooptado pelo materialismo americano.

O livro identifica personagens populares que circulam dentro e fora do território da seriedade. Por que a Oprah Winfrey é um híbrido?

Ele foi muito séria, por exemplo, ao endossar o Obama para presidente. Mas é um híbrido de seriedade e bobagem. Ela justapõe questões sérias como a fome na África com bobagens e faz isto com uma velocidade aterradora. De repente, lá está o Tom Cruise pulando no sofá. Ela criou esta síntese como um Picasso, um quadro cubista das qualidades da vida americana.

O que acha do cinismo que tem dominado o clima cultural americano na era Obama, o presidente que vendia esperança?

Acho que o desespero trazido por Bush criou essa exultação em relação a Obama, mas nenhuma pessoa pode satisfazer tantas expectativas. Digo isto com tristeza, eu apoiei Obama. Mas, no fim, ele se revelou medíocre. Ele não é um político. Ele se elegeu numa plataforma de se colocar acima da política. E todo esse papo de ele vir de Chicago, uma cidade de durões na política, é uma sandice. O que provocou a onda a favor dele foi sua raça e, de várias maneiras, o que inspirou esse ódio incrível dele é o racismo - o que é uma triste admissão a se fazer sobre os Estados Unidos. A raça ainda é um fator importante neste país e há um grande número de americanos que se sentem deslocados e marginalizados. Não aguentam a ideia de um negro na Casa Branca. E os liberais de esquerda queriam projetar toda sua esperança no país e seu senso de decência em Obama e isso os cegou para a realidade da vida americana. Eu acho que ele é um professor de direito, um cara muito abstrato. Às vezes, chego a desconfiar se ele não combate uma depressão, porque tende a se ausentar quando as coisas esquentam. Não acho que ele seja a figura certa para os desafios que os americanos enfrentam.


ARE YOU SERIOUS?
HOW TO BE TRUE AND GET REAL IN THE AGE OF SILLY
Autor: Lee Siegel
Editora: Harper Collins
(Importado, 272 págs., R$ 55,80)

MERVAL PEREIRA - Voto distrital

 Voto distrital
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 10/09/11

O movimento contra a corrupção, que vai ganhando corpo em todo o país através da convocação de manifestações pelas redes sociais, está tendo um efeito colateral imediato: o fortalecimento da campanha pela adoção do voto distrital, que também está sendo feita através da internet.

Os organizadores do movimento #votodistrital experimentaram um crescimento considerável da adesão ao manifesto, que está no site http://www.euvotodistrital.org.br, a partir das manifestações ocorridas no Dia da Independência.

Enquanto escrevia esta coluna, já eram mais de 55 mil pessoas aderindo ao manifesto a favor do voto distrital na internet.

O Centro de Liderança Política (CLP), dirigido por Luiz Felipe D"Ávila, é que está coordenando o movimento e a arrecadação de doações. O site da campanha foi feito e é mantido por voluntários, e diversas pessoas vão procurando o movimento e oferecendo ajuda à medida que ele se torna conhecido.

Tudo indica que a sociedade está fazendo a ligação entre a corrupção e as faltas de fiscalização, de responsabilização e de representatividade, dando esperanças aos organizadores da campanha de que ela se torne um movimento no mesmo feitio da proposta popular que criou a Lei da Ficha Limpa.

A iniciativa popular é um instrumento previsto na Constituição que permite que um projeto de lei seja apresentado ao Congresso desde que, entre outras condições, apresente as assinaturas de 1% de todos os eleitores do Brasil, isto é, cerca de 1,3 milhão de pessoas.

A alteração do sistema eleitoral só pode ser feita pelo menos um ano antes da realização de eleições, e como a ideia dos coordenadores do movimento é testar o voto distrital nas eleições municipais de 2012 nas cidades com mais de 200 mil habitantes, essa proposta teria que chegar ao Congresso no final de setembro, o que é inviável.

No entanto, a movimentação pelo voto distrital continuará para que o assunto entre na pauta do Congresso e possa se transformar em realidade o mais breve possível.

No manifesto, o voto distrital aparece como o oposto ao voto em lista fechada, que está na proposta de reforma política do deputado Henrique Fontana, do PT.

Diz o manifesto: "Acreditamos que o eleitor tem de manter vivo na memória o seu voto, o que certamente acontecerá quando um parlamentar representar o seu "distrito". A base da proposta é aproximar o eleitor de seu candidato e dar a ele a capacidade de fiscalizar e cobrar sua atuação.

"Esse voto, condicionado também pela geografia, traz o benefício adicional de evitar que a Câmara dos Deputados se limite a uma Casa de representação de lobbies.

"O Congresso não pode ser uma reunião de meras corporações a serviço de interesses setoriais. Justamente porque queremos um eleitor mais próximo do eleito de seu distrito, repudiamos ainda o chamado "voto em lista fechada", proposta que fortaleceria unicamente as burocracias partidárias, permitindo a eleição de parlamentares sem rosto.

"O voto distrital, ao dar poder ao eleitor para fiscalizar e cobrar o desempenho de seus representantes, contribuirá para melhorar o Poder Legislativo, o que elevará a qualidade da nossa democracia."

O que dificulta a aprovação de sistemas eleitorais que adotem a divisão dos estados em distritos é alegadamente o desequilíbrio na representação popular, que faria com que o eleitor dos grandes centros fique em desvantagem. Tendo em vista o pluripartidarismo brasileiro, há também o risco de a definição da vontade das maiorias ser uma tarefa complexa e polêmica. Com 21 partidos disputando a eleição em um distrito para uma vaga, como o eleito representará a maioria?

Por isso a proposta de voto distrital puro é a preferida, com dois turnos, se preciso, para garantir que o vencedor tenha a maioria.

Também o especialista em pesquisas de opinião pública Örjan Olsén foi contratado para determinar se seria possível dividir o Brasil em distritos com número de eleitores próximo aos quocientes para eleição de um deputado federal ou estadual e para vereadores.

O objetivo era alcançar um desenho inicial de distritos que formassem uma unidade geográfica contínua. Para tanto, foram usados dados censitários, puramente geográficos, sem influência de critérios de histórico de voto, respeitando ao máximo os limites municipais nos distritos para deputado e os limites de distritos ou bairros nos distritos para vereador.

Foram utilizados os mesmo critérios do IBGE, como mesorregiões ou microrregiões.

A primeira é uma subdivisão dos estados brasileiros que congrega diversos municípios de uma área geográfica com similaridades econômicas e sociais.

As microrregiões foram criadas pela Constituição de 1988 e são um agrupamento de municípios limítrofes.

Sua finalidade é integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, definidas por lei complementar estadual.

Como são raras as microrregiões formalizadas, o termo é muito mais conhecido em função de seu uso prático pelo IBGE, que, para fins estatísticos e com base em similaridades econômicas e sociais, divide os diversos estados da Federação brasileira em microrregiões.

Foi respeitado o número de cadeiras existentes para cada estado na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e na Câmara de Vereadores, e criados tantos distritos quantas cadeiras estarão sendo disputadas.

Curitiba, por exemplo, seria dividida em cinco distritos na eleição para deputado federal, cada qual elegendo um candidato.

São Paulo teria 55 distritos para a eleição de vereadores, e, por exemplo, bairros como Bela Vista, Consolação, Liberdade e República seriam unidos em um distrito, de acordo com critérios técnicos.

Cada distrito teria cerca de 150 mil eleitores para a eleição de vereador. (Continua amanhã)

CACÁ DIEGUES - O estado da corrupção


O estado da corrupção
CACÁ DIEGUES
O GLOBO - 10/09/11

É preciso combater a corrupção com fervor, persistência e rigor. Ela existe e, em nosso país, talvez seja uma das mais perversas do mundo. Segundo levantamentos feitos pelo CGU e pelo TCU, publicados pela "Folha de S.Paulo", o montante de recursos públicos desviados, entre 2002 e 2008, foi de R$40 bilhões. Dava para resolver muitos de nossos problemas crônicos.
A corrupção é hoje uma causa nacional que independe de conflitos sociais ou políticos. Mas não entremos em pânico. A imoralidade pública pode grassar, mas a exposição cotidiana dos crimes cometidos é uma demonstração de que existe um projeto da sociedade para combatê-la e eliminá-la. Se ainda convivemos com escândalos quase diários, é porque temos conhecimento dos malfeitos e não estamos de acordo com eles.
Sabemos os nomes dos criminosos, mesmo que muitas vezes não consigamos pô-los na cadeia. Seus crimes só se tornam escândalos públicos que se multiplicam diariamente porque não são mais hábitos secretos de uma elite que tinha poder para, além de cometê-los, escondê-los de nós. Pelo menos agora eles perderam o direito à ocultação de cadáver.
Talvez a sociedade brasileira esteja querendo dizer que quer, de uma vez por todas, separar o estado dos interesses privados, como já fez no passado com a religião.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha se tornou o primeiro documento político de nossa história. Nela, além da narração de viagem e da descrição das riquezas encontradas na terra descoberta, Caminha não perde a oportunidade de pedir ao rei emprego para um parente seu em Lisboa. Era o primeiro tráfico de influência de nossa história.
Basta ler as pregações de Antonio Vieira e as sátiras de Gregório de Matos, cheias de referências à corrupção colonial, para compreender que a coisa só foi piorando. Mas culpar exclusivamente Portugal e nossa origem portuguesa pelos nossos maus costumes, como temos o hábito de fazer, é um pouco exagerado. Daqui a onze anos, estaremos completando dois séculos de independência nacional, já teria dado tempo de nos corrigirmos da má influência.
Logo de saída, o Império, durante quase todo o século 19, fez do estado brasileiro um patrimônio de privilegiados, pouco havendo distinção entre a riqueza do país e a riqueza dos donos da terra. Coisa que não sofre mudança com a República Velha e quase nenhuma a partir da Revolução de 1930 e da subsequente ditadura Vargas.
Quando Getulio Vargas, agora presidente eleito, dá um tiro no peito, em 1954, o faz sufocado pelas ondas do "mar de lama", como era chamada a corrupção que, segundo a oposição, grassava em seu governo. Talvez o suicídio de Vargas tenha evitado um regime de força como aquele que cairia sobre nossas cabeças dez anos depois. Mas certamente absolvia com ele os supostos larápios da República pois, tirando o preto semianalfabeto que lhe servia de guarda-costas, ninguém foi condenado pelo "mar de lama".
Mesmo o hoje festejado presidente Juscelino Kubitschek, consagrado como o modernizador responsável pelo desenvolvimento do país com democracia, estaria, segundo seus críticos na época, fazendo da criação de Brasília uma fonte de receita indevida, para ele e seus amigos. E finalmente, em 1964, o pretexto que os militares usam para a tomada do poder pela violência é exatamante o da luta contra a subversão (o fantasma do comunismo na Guerra Fria) e a corrupção (a devassa dos cofres públicos pelos populistas do presidente João Goulart).
Durante aqueles 21 anos de ditadura militar, em que o totalitarismo não permitia a divulgação de notícia que não fosse de seu interesse, conheci muito esquerdista preso, torturado e morto. Posso estar enganado, mas nunca soube de nenhum corrupto que tivesse sido posto na cadeia.
Apesar de privatarias e de mensalões, vivemos, desde o governo Itamar Franco, uma época de ouro em nossa história, certamente os melhores 20 anos dela. Em termos de consolidação da democracia, desenvolvimento econômico, estabilidade financeira, melhor distribuição de renda etc. Mesmo numa área em que estamos ainda tão atrasados, como a da educação, 90% de nossa população em idade escolar se encontra hoje nas escolas, apesar da carência na qualidade do ensino. Nos "anos dourados" da década de 1960, 35% dessa população estavam fora da escola, por falta de vagas.
Isso não quer dizer que vivemos no país de meus sonhos, ainda falta muito para isso. E sonhos não foram feitos para serem realizados; eles existem para que saibamos que sempre pode ser melhor. Mas só posso considerar alvissareiro que a presidente da República deseje fazer uma faxina ou seja lá o que for (parece que ela destituiu essa palavra de qualquer autoridade oficial). No mínimo, pela primeira vez, não se trata mais de um argumento moralista ou oportunista da oposição do momento, mas uma iniciativa da própria chefe de estado e de governo, representante eleita de toda a população disposta a eliminar a corrupção da vida desse país.
Essa eliminação não deve visar somente ao modesto comissionado, o intermediário que rouba dois tostões. Mas atingir também os corruptores, os grandes favorecidos pelas exceções que o estado cria para facilitar a vida de seus parceiros.Não se trata apenas de prender o ladrão, mas de inaugurar uma nova prática republicana - o estado não é patrimônio de uns poucos, seja em que formato for. Pelo contrário, ele existe para realizar os projetos da maioria e proteger deles a minoria.

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GILBERTO VELHO - Crime e corrupção no Rio

Crime e corrupção no Rio
GILBERTO VELHO
O GLOBO - 10/09/11

Não foram muitas as pessoas que acreditaram que a implantação das UPPs, por si só, fosse resolver ou, mesmo, controlar a criminalidade na região metropolitana do Rio de Janeiro. Isso não significa que não houvesse o reconhecimento da importância e dos méritos da iniciativa. Pode-se dizer que em várias áreas pobres da cidade melhorou a segurança da população. No entanto, o que se evidencia, de modo inescapável, é que a violência tem profundas raízes na nossa sociedade e contamina os mais diferentes setores de atividades. A corrupção está entranhada na vida social, minando iniciativas, ações e tentativas de melhorar a qualidade de vida dos habitantes do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades. Há várias questões importantes a serem discutidas em torno das UPPs, sem ignorar os benefícios por elas trazidos. Até que ponto a presença das tropas pacificadoras, policiais e/ou das Forças Armadas, susta a violência? Certamente contém as suas manifestações mais evidentes, mas não tem condições de ir mais fundo, no enfrentamento de suas raízes. Só um projeto contínuo envolvendo, sobretudo, educação e trabalho, teria um potencial de, a longo prazo, superar a atração da criminalidade. Pois esta, não nos iludamos, é um modo de vida associado a aspirações, desejos e ambições, que correspondem a novos perfis e trajetórias sociais.

Não se trata, também, só de focalizar aqueles que são diretamente envolvidos com os crimes, pois suas ações repercutem, de várias maneiras, sobre as suas redes de relações, parentes, vizinhos e conhecidos, etc. Se, de um lado, constituem uma ameaça, por outro abrem possibilidades de um tipo de ascensão social baseado no acesso a bens de consumo e a símbolos de prestígio. É importante, assim, não esquecer do que já foi apontado por diversos autores, a carga simbólica associada ao acesso e uso de armas. O tráfico destas, não custa insistir, está indissoluvelmente vinculado ao de drogas. Outro ponto fundamental, ligado à implantação das UPPs, são os efeitos causados no aumento inegável de assaltos, roubos, sequestros e agressões em geral às classes médias, em vários pontos da cidade. Criou-se um clima de que o protesto dessas classes médias não deve ser levado muito a sério, porque afinal de contas "tem uma situação muito melhor do que a dos pobres". Ora, estamos falando não só de perda de bens, mas, como tem ocorrido recentemente, de vidas humanas. Pois esta é uma mudança assustadora nos costumes e hábitos brasileiros. Sabemos que, historicamente, as vidas de pessoas humildes pouco valor tinham, em contextos de exploração e dominação. Mas, hoje, assistimos a uma desvalorização generalizada, fazendo com que homens, mulheres, jovens, crianças e idosos, de todas as classes, estejam sujeitos às formas mais bárbaras de violência. Infelizmente, não podemos ignorar que, em diversas situações, esses crimes são praticados por pessoas das agências de segurança pública, especialmente a polícia.

Assim, quando a presidente da República fala das prioridades de saúde, educação e segurança, é preciso que se compreenda esta última como uma área que mal foi tocada nos últimos anos. As medidas tomadas até agora podem aplacar alguns sintomas e indícios, mas estão longe de chegar perto do âmago das questões que as produzem.

GILBERTO VELHO é antropólogo.

MARCELO HENRIQUE PEREIRA - Tribunais loteados

Tribunais loteados
MARCELO HENRIQUE PEREIRA
O GLOBO - 10/09/11

Os Tribunais de Contas precisam mudar. Ajustar-se, orgânica e institucionalmente, aos novos tempos e oxigenar suas composições. É imprescindível que novas regras sejam implantadas para permitir a aferição da competência e das habilidades técnico-profissionais.
A Federação Nacional das Entidades de Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc) tem proposto ao Congresso projetos para o aperfeiçoamento das regras de investidura para premiar os critérios de habilitação e competência, reduzindo as indicações políticas.
Em paralelo, uma representação foi formulada ao procurador-geral da República, solicitando "arguição de descumprimento de preceito fundamental" sobre as escolhas de ministros-conselheiros para as Cortes de Contas, sobretudo pela existência de lesões ao princípio republicano da prestação de contas e à separação dos poderes.
Referido vício está centrado no fato de que a classe política, em geral, considera-se donatária das vagas existentes - sejam as que, constitucionalmente, pertencem à indicação parlamentar, quanto à chefia do executivo em, respectivamente, dois e um terço. Apenas parte das vagas deste último segmento (duas de três) tem escolha "vinculada", direcionada a membros do corpo de julgadores substitutos e ao ministério público especial. As demais têm sido objeto de disputas meramente político-partidárias, com ascendência de partidos e blocos que "loteiam" entre si os cargos.
Estamos diante de vício de desvio de finalidade, posto que a aceitação de candidato (depois nomeado para ministro ou conselheiro) sem o cumprimento dos requisitos constitucionais é vício de pleno direito, ou de nulidade absoluta, a ser decretado imediatamente.
Este lamentável quadro depõe contra os fundamentos do sistema de controle externo. Como exigir eficiência, especialidade, capacidade técnica de indivíduos que, às vésperas de sua indicação e posse nos Tribunais de Contas, foram "soldados" dos partidos políticos e executores de ações (no Legislativo ou no Executivo) sujeitas à própria fiscalização daquelas Cortes?
MARCELO HENRIQUE PEREIRA é presidente da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil.

ILIMAR FRANCO - O sucessor


O sucessor 
ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 10/09/11

Um novo ingrediente tornou tortuosa a definição da candidatura petista para a prefeitura de São Paulo. A avaliação predominante no Planalto é que há uma disputa paralela, mas para substituir o ministro Fernando Haddad na Educação. Haddad é o nome do ex-presidente Lula na capital paulista. Manter candidaturas é uma forma de se cacifar para o Ministério. Há dois nomes participando da corrida para o MEC: a senadora Marta Suplicy (PT-SP) e o deputado Gabriel Chalita (PMDB-SP).

Redes sociais: expectativa e desafio
Os líderes partidários acompanham a evolução do movimento desencadeado pelas redes sociais contra a corrupção. Eles estão de olho nas manifestações marcadas para 20 de setembro. Querem verificar se a mobilização tem fôlego, chegando às camadas populares. Ou se ficará limitado a uma ação desorganizada promovida por setores de classe média. Avaliam que as 25 mil pessoas que foram às ruas no Sete de Setembro, em Brasília, não são parâmetro. Sustentam que o protesto se beneficiou dos que foram assistir ao desfile oficial. E que
havia um catalisador local: a não cassação da deputada Jaqueline Roriz (PMN-DF).

"O Código de Processo Penal permite todo tipo de ação, desde que seja para beneficiar o acusado” — Fausto de Sanctis, desembargador doTribunal Regional Federal da 3a- Região, no Le Monde Diplomatique

CABRAL DOBRA O PT. Depois de cinco horas de tenso e acalorado debate, o PT do Rio mudou de posição. Ontem, o diretório regional
decidiu que o partido vai votar a favor do projeto do governador Sérgio Cabral que abre a gestão da Saúde para as Organizações Sociais. O PT ficou contra os sindicatos dos trabalhadores da Saúde. Defendida pelo secretário Carlos Minc (Meio Ambiente), a posição de Cabral venceu por 34 a 20.

Exclusão

Os senadores do movimento pela faxina vão criar uma subcomissão contra a corrupção e a impunidade na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Eles não querem trabalhar com o presidente da CCJ, Eunício Oliveira (PMDB-CE).

Agora vai

O presidente Hugo Chávez mandou uma carta para a presidente Dilma. Combinaram que ela vai a Caracas em novembro. Chávez garantiu que, ainda neste ano, a PDVSA vai pingar seu dim-dim na obra da Refinaria Abreu e Lima (PE).

As propostas da bancada da motosserra 
O Instituto Chico Mendes elaborou uma lista de 18 projetos que foram apresentados ao Congresso e que devem ser acompanhados por sua “periculosidade”. Se todos eles forem aprovados, pelo menos 6,5 milhões de hectares seriam reduzidos nas áreas protegidas na Amazônia e no Cerrado. Alguns deles são da legislatura anterior, mas estão na lista de alerta verde porque podem ser desarquivados a qualquer momento.

Porteira fechada
O agronegócio quer derrubar parecer da AGU, de 2010, que limita a propriedade de estrangeiros no campo. O senador Waldemir Moka (PMDBMS) diz que esses investidores são “aliados na redução do protecionismo lá fora”.

Novos tempos
 O Ministério da Justiça quer pressa na votação do projeto de lei sobre organizações criminosas. Ele chegou terça-feira na Câmara. A proposta regulamenta a polêmica infiltração policial, a ação controlada e a delação premiada.

INVESTIMENTO DE RISCO. O deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP) protocolou na Mesa da Câmara pedido de informação ao Ministério da Fazenda sobre eventuais perdas do Fundo Soberano Brasileiro, criado em 2008.
NA VIAGEM aos Estados Unidos, a presidente Dilma irá à Universidade de Columbia (em 22 de setembro) participar de reunião do World Leaders Forum. 
OS AMBIENTALISTAS estão demonizando o senador Luiz
Henrique (PMDB-SC). Em seu relatório sobre o Código Florestal, na CCJ, ele amplia a possibilidade de supressão de floresta nativa em APPs, criando a figura jurídica do “baixo impacto ambiental”.

NEI LOPES - O samba e sua economia


O samba e sua economia
NEI LOPES
 O Estado de S.Paulo - 10/09/11

Semanas atrás, por ocasião de três eventos que se realizavam simultaneamente - a inauguração do Centro Cultural Wilson Moreira, o show comemorativo do aniversário do portelense Monarco e o início de uma série de rodas de partido-alto (samba em versos de improviso) lideradas pelo autor destas linhas - um jornal carioca assim iniciava matéria a respeito: "Faltam seis meses para o carnaval, mas o samba já está nas ruas..."

Essa abordagem, reincidente em certa imprensa, retrata ou desinformação ou tendência deliberada a limitar o samba e sua cultura ao universo das escolas e ao período carnavalesco. E isso é incômodo, já que o alcance mercadológico do samba e as possibilidades de sua economia, como já dissemos neste espaço, são muito mais amplos.

Imaginemos, por exemplo, um investimento econômico-financeiro que interligasse, numa cadeia, todos os itens que compõem o fazer do samba, desde criação de obras intelectuais (músicas, espetáculos, documentários), a produção industrial e comercialização dos respectivos suportes, tais como CDs, DVDs, etc., além de veiculação no espaço virtual. Como outros itens dessa economia, incluamos espetáculos ao vivo (recitais, montagens de musicais, shows de variedades); publicação de jornais, revistas, livros e partituras; desfiles, festivais gastronômicos; moda; exposições artísticas, etc. Não temos dúvida de que, bem e profissionalmente feito, o investimento teria excelente retorno; pois o samba, como produto, dispõe, sim, de importante público consumidor.

Agora, projetemos para o investimento imaginado uma estrutura compartimentada em setores: música, teatro, cinema, artes visuais, etc. Nela, teríamos salas de espetáculo e exposição, estúdios de gravação, biblioteca, videoteca, etc. Como núcleo da estrutura, teríamos um centro de memória, com o objetivo imediato de resgatar, recompor e preservar para a posteridade todo o acervo identificador da expressão cultural denominada "samba", compreendendo criação artística, técnicas de trabalho, conhecimentos, linguagem, lendas, mitos, histórias de vida, rituais, festas, folguedos, jogos e, primordialmente, a música e a dança. Para tanto, constituir-se-ia, além de um arquivo de som e imagem, um museu de objetos representativos da cultura material do samba, tais como fotografias, símbolos, instrumentos, trajes, adereços, etc.

Pretensão demais, não?

Então, deixemos um pouco de lado a economia e caiamos na batucada "à vera"; para lembrar que, até ali por meados dos anos 60, o mundo do samba tinha hábitos de lazer e socialização muito peculiares. E que essa alegre e exuberante sociabilidade era expressa em visitas, congraçamentos de toda espécie e, sobretudo, muita festa.

Os locais dessas festas eram gafieiras e clubes sociais de classe média que funcionavam como salões de festas do samba (samba "de salão", com par enlaçado). E o formato das festividades se estendia do baile até os piqueniques praianos, diversificando-se em carreatas, "passeios marítimos" na Baía de Guanabara, festas juninas à caipira, torneios de partido-alto, batismos de "alas"; e até ecléticas programações que mesclavam futebol, brincadeiras infantis, concursos de beleza e farta comezaina.

No samba, sempre se comeu bem, com cardápios tão "suculentos" quanto variados, a cargo das famosas "tias" (num tempo em que cozinheira usava mesmo era pano na cabeça e não dólmã militar), herdeiras da velha tradição. E em quase todo baile, havia sempre o peru assado que, geralmente à meia-noite, era oferecido como prêmio à mesa que melhor "se destacasse no bufê", ou seja, que consumisse mais cervejas, refrigerantes e salgadinhos.

O núcleo irradiador dessa efervescência cultural eram as escolas de samba, que hoje, salvo raras exceções, vivem exclusivamente para a competição carnavalesca. E essa opção foi que gerou a percepção, expressa no texto comentado: "samba é carnaval, e pronto, acabou!"

Mas não é bem assim: carnaval são só três dias de folia; e samba é música, dança teatro, filme, livro, comida, bebida, consumo, etc., o ano inteiro. Quem é do samba sabe.


NEI LOPES É COMPOSITOR E ESCRITOR

EDITORIAL O ESTADÃO - Paciência tem limite


Paciência tem limite
EDITORIAL
O Estado de S.Paulo - 10/09/11

O brasileiro está começando a perder a paciência com a corrupção. As comemorações do 7 de Setembro ensejaram manifestações populares convocadas pelas redes sociais em várias capitais estaduais e no Distrito Federal, onde 25 mil pessoas desfilaram pacificamente pela Esplanada dos Ministérios proclamando palavras de ordem contra a corrupção e os corruptos. Em São Paulo, centenas de manifestantes ocuparam pela manhã a Avenida Paulista, com o mesmo propósito. A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) lançou na véspera e publicou na imprensa carioca, na quarta-feira, em página dupla, o Manifesto do empresariado brasileiro em favor da ética na política, em que afirma que o combate à corrupção "é uma bandeira coletiva, que representa a aspiração de todo um país".

Na história recente do País, foi assim que começaram os grandes movimentos populares que, por exemplo, se transformaram, em 1984, na Campanha das Diretas e, em 1992, na mobilização dos jovens caras-pintadas, que fez eco ao clamor popular contra as maracutaias do governo do "caçador de marajás" e forçou o impeachment do presidente Fernando Collor. Agora, é perceptível a revolta latente da população contra os desmandos na administração pública, em todos os níveis. As manifestações do 7 de Setembro podem ser um indício de que esse sentimento começa a se generalizar e a se potencializar, ou seja, a procurar formas mais ativas e concretas de expressão.

As razões por detrás dessa fermentação são óbvias e vão se acumulando: a indecorosa decisão dos deputados federais de absolver uma colega, Jaqueline Roriz, que tinha a cassação de mandato recomendada pela Comissão de Ética da Câmara por ter sido flagrada recebendo propina, dinheiro vivo, quando era candidata a deputada distrital em Brasília; a impressionante sucessão de denúncias na mídia e as investigações policiais sobre bandalheiras em órgãos da administração federal, que resultaram na demissão de pelo menos três ministros em curto prazo, graças à "faxina" da presidente Dilma Rousseff; mais recentemente, o movimento de governistas e do PT & companhia para minimizar a importância e a abrangência dessa mesma "faxina", forte a ponto de constranger a própria chefe do governo a declarar que não é movida pela intenção de fazer uma devassa nos Ministérios, mas apenas pela obrigação de investigar e punir eventuais irregularidades.

Essa tática diversionista, aparentemente motivada pelo receio de que a tal "faxina" acabe sendo debitada na conta do chefão Lula - afinal, os três ministros demitidos foram herdados de seu governo -, pode afrontar ainda mais a opinião pública, já indignada.

Da mesma forma que as pesquisas de opinião demonstraram grande apoio à ação saneadora da presidente nos episódios das demissões dos ministros, poderão vir a revelar exatamente o oposto se em algum momento as pessoas começarem a achar que o Palácio do Planalto se tornou condescendente com a bandalheira.

Por enquanto, aqueles que acham que deve continuar prevalecendo a cínica ideia de que não há nada de errado - ao contrário, são males necessários, e por isso toleráveis - num superfaturamento aqui, num desvio de verba ali ou num nepotismo acolá podem contar com o fato de que, embora despontem os primeiros indícios de protestos, não existe ainda uma efetiva mobilização nacional contra a corrupção.

As entidades representativas dos trabalhadores, sindicatos e centrais, por exemplo, bem como instituições como a UNE, decisiva na mobilização dos caras-pintadas de 1992, até o momento não parecem sensibilizadas com a questão. Algumas delas promoveram manifestações no 7 de Setembro, mas exclusivamente para enfatizar reivindicações corporativas.

Ao tentar negar a evidência de que a corrupção é endêmica na administração federal e colocar panos quentes no combate à corrupção, os governistas podem estar dando um tiro no pé. A indignação popular, quando se agrava, geralmente se transforma numa bola de neve e fica incontrolável. Paciência tem limite.

GOSTOSA


ALEXANDRE BARROS - Militares, civis e ordem pública


Militares, civis e ordem pública
ALEXANDRE BARROS
O Estado de S.Paulo - 10/09/11

Quando a crise de segurança pública andou séria nos EUA, os políticos cogitaram de usar as Forças Armadas para manter a ordem. Democraticamente, como convém, o chefe do Estado-Maior Conjunto foi convocado ao Congresso para discutir o assunto. Em resumo, disse ele aos congressistas: nosso pessoal é treinado para matar, não para ler os direitos das pessoas presas; se é isso que os senhores querem, e nós vivemos numa democracia, assumiremos a segurança pública, mas os senhores foram avisados das consequências.

No Brasil, não democraticamente, como estamos acostumados, a crise de segurança pública que afeta várias cidades foi encaminhada da maneira que acharam mais fácil, sem pensar nas consequências: ocuparam favelas militarmente, com soldados, não com policiais. Veículos blindados fizeram parte do show. O governo do Rio de Janeiro comemorou o restabelecimento da ordem nas favelas do Complexo do Alemão.

Mas gato escaldado tem medo de água fria. E fiquei esperando as más notícias, que chegaram nesta Semana da Pátria: militares dispararam em civis da favela. Pouco importa se eram traficantes, moradores ou tinham duplo status. Antes de tudo, eram cidadãos com direitos constitucionais que tinham de ser respeitados.

Há uma anomalia no Brasil: policiais militares policiam populações civis. Historicamente, são herança das guardas nacionais estaduais, que eram exércitos de cada um dos Estados antes da ditadura Vargas (1937-1945). E uma das primeiras características de militares, sejam policiais ou não, é que são aquartelados. Vivem num mundo à parte, que, anedoticamente, entre os próprios militares, é regido pela máxima: se fica parado, pinte de branco; se se mexe, bata continência. O fato concreto é que é muito difícil, se não impossível, fazer civis, favelados ou não, pobres ou não, viverem num regime de quartel. Em algum momento uma centelha provoca uma explosão. Foi o que aconteceu no Rio.

A vida em quartéis é regida pelo ethos do que Michel Foucault chama de instituições totais. Elas cuidam das necessidades e regulam integralmente a vida de seus membros. Caem nessa categoria quartéis, asilos de "loucos" e prisões. Acontece que os cidadãos de uma sociedade democrática não estão interessados, nem preparados para isso, em viver numa instituição desse tipo, salvo se violarem a lei e forem declarados culpados por um tribunal, se legalmente insanos ou obrigados a fazê-lo, ainda que por pouco tempo - por mais autoritário que isso seja -, ao servir nas Forças Armadas, forçados que são pela legalidade do serviço militar obrigatório.

A vida numa comunidade - não importa se coesa ou não -, numa sociedade democrática, é regida por normas democráticas, que conflitam com o ethos militar. As pessoas podem beber (ainda que se espere que não bebam demais), cantar, dançar, falar alto, discutir e discordar, direitos que não fazem parte da vida de presos, alienados ou soldados.

E o resultado não custou a aparecer: tiroteio com morte de civis no Complexo do Alemão. Infelizmente, ficou mais fácil digerir o assunto porque os envolvidos na frente das armas eram pobres e favelados. Fossem de classe média, o escândalo em nossas mãos seria muito maior. Mas, infelizmente, a parte que cabe aos pobres nesse latifúndio é sempre a mais seca e agressiva.

O que não podemos, de fato, é continuar a conviver com a ideia de controlar comunidades civis manu militari.

Temos ainda um longo caminho a percorrer. O primeiro passo é aprender a não demonizar pessoas que têm comportamentos antissociais. Eles demandam punições legais, não repressão militar. Segundo, precisamos todos, civis e militares, aceitar a ideia de que numa sociedade civil democrática militares seguem ordens civis, e não o contrário. Nossos políticos, desde a criação do Ministério da Defesa, parecem não ter entendido isso, entregando seu comando a diversos políticos desprestigiados e/ou ineficazes. Tivemos uma má experiência com o último titular da pasta, que achava que um ministro "civil" da Defesa devia fantasiar-se de militar. Felizmente, parece que esses tempos se foram.

Militares são regidos por hierarquia e antiguidade. Celso Amorim, o atual ministro da Defesa, tem ambas. Os anos que acumulou como diplomata profissional lhe dão, no barato, 45 anos de serviço e 60 e muitos de idade. Preenche, portanto, os requisitos tão caros aos militares. Espero que se lembre também, e sobretudo, de que é um ministro civil.

Em diversas ocasiões protocolares na minha vida vi o secretário de Defesa norte-americano (que é civil) em solenidades militares, mas jamais de farda. No Chile, a ex-presidente Michelle Bachelet, que havia sido ministra da Defesa, não teve dúvidas quando um capitão - por acaso ou não, neto de Augusto Pinochet -, na Semana da Pátria chilena, fez um discurso pró-ditadura. Foi tratado como mandam as leis e os regulamentos. Na tarde do mesmo dia já havia sido transferido para a reserva.

Todas essas são noções que temos de aprender, civis e militares, para que tenhamos um convivência civil, democrática e igualitária (evito o termo republicana porque, de uns anos para cá, ele passou a ser utilizado para se referir a algo que ninguém sabe o que é, e, como tudo o que ninguém sabe o que é, pode querer dizer tudo, mas acaba não querendo dizer nada).

É urgente que uma convivência pacífica seja estabelecida entre cidadãos, bairros e favelas por meio de instituições civis e democráticas, caso contrário teremos repetições - e muitas - do que ocorreu estes dias no Complexo do Alemão. E esse não é, definitivamente, o caminho para reduzir a criminalidade nem para respeitar a cidadania.



CIENTISTA POLÍTICO (PH.D. PELA UNIVERSITY OF CHICAGO), É CONSULTOR EM ANÁLISE DE RISCO POLÍTICO (BRASÍLIA)