sábado, setembro 10, 2011

MANOEL CARLOS - Colecionando sonhos


Colecionando sonhos
MANOEL CARLOS
REVISTA VEJA - RIO




A crônica “Sonhos”, que escrevi para este espaço há quinze dias, suscitou alguns comentários de amigos que fui encontrando no correr da semana. O assunto é de grande magnitude e não há quem não se debruce sobre ele, sendo que no mundo moderno, digamos assim, Freud e Jung foram os grandes responsáveis pelo interesse despertado. E aí os gregos, sempre eles, voltaram, com seus deuses, à convivência com a humanidade mortal. Virou moda. Ouvi gente, que mal sabia distinguir entre duas vogais, falar em complexo de Édipo, de Hécuba, de Electra… e dando significado aos sonhos.

Melhor assim, quando entra na moda algo que nos remete à antiga Grécia, berço da civilização europeia.
A razão de muitas vezes falar e escrever sobre o tema é que sou um guardador de sonhos. Colecionador, se preferirem. Sonhos meus e dos outros: amigos que me contam, desconhecidos que me abordam, narrativas sonhadas que leio nos livros e nas entrevistas. Vou passando esse material para um caderno, e minha coleção está se avolumando. Nem todos me interessam, claro, mas posso garantir a vocês que, entre os que merecem a minha atenção e passam a ter lugar na minha coleção, há sonhos ricos, verdadeiras obras-primas da criatividade do sonhador. Estou pensando em reunir esses relatos num livro, o Livro dos Sonhos, com o subtítulo: Para Todos, Até Mesmo para Psicanalistas. Quem sabe não coloco esse livro entre os meus planos para 2012?

Já tenho escrito aqui sobre um dos meus autores preferidos: o argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), amigo e parceiro de Jorge Luis Borges (1899-1986), condição honrosa para ambos, mas que acabou por ofuscar um pouco o seu nome, em favor do outro. Bem, dirão alguns, Borges é maior, é melhor etc., mas todo juízo de valor é subjetivo. E relativo. Borges é um admirável poeta, o que Bioy não é, pelo menos não no que existe publicado até agora de sua poesia. Mas é um mestre das narrativas breves, ao lado de Borges. Como memorialista com senso de humor e sem autopiedade, ele é mais abrangente do que o autor de Ficções, precisamente por ser o narrador de pequenas lembranças, fatos corriqueiros e banais. Ele engrandece o que é pouco e menor, iluminando as áreas escuras da memória, não com uma lâmpada de 1 000 volts, mas com uma pequena vela, trêmula, hesitante. Sim, concordo, Bioy não é tão abrangente e universal como Borges. Não é um gênio, enfim, como seu melhor amigo, mas um ourives do pensamento que se transforma em palavras.

De seu livro De Jardines Ajenos, que foi motivo de uma crônica aqui publicada em 2006, transcrevi uma coleção de pequenas e precisas observações que ele faz sobre a condição humana. São como parábolas. Agora, diante de mais uma de suas obras, Descanso de Caminantes, que pertence aos seus diários íntimos, encontro, em suas 500 páginas, dezenas de sonhos que ele teve (ou terá inventado?), transcritos admiravelmente. Bioy Casares é um grande narrador de sonhos.

Quanto a mim, não me considero um bom sonhador das horas dormidas. Quando acordo, eu me lembro pouco do que vivi no mundo dos sonhos. Em menos de dois ou três minutos, já me esqueci totalmente de tudo. Às vezes são sonhos interessantes, originais, que gostaria de lembrar para contar à minha mulher, que tem sonhos claros, compactos, de fácil transmissão, mas os meus vão se diluindo na memória, até desaparecer totalmente. Uma pena.

Para encerrar a crônica, já que acabou o meu espaço, deixo um dos sonhos de Bioy Casares, na parca tradução que ouso fazer:
“Sonho que nos amamos. Subitamente, acordo, e lhe digo:

— Que vergonha. Dormi.
— Eu também — ela me diz.
— Vamos recomeçar então?
— Vamos, claro — ela me responde.
E, ao recomeçar, desperto realmente e me encontro em meu quarto, na minha cama. Sozinho”.
Boa semana, leitores.
Voltaremos a Bioy Casares.

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