Ter fé em Deus é bom para a Pátria?
DOM ODILO P. SCHERER
O Estado de S.Paulo - 10/09/11
A comemoração do Dia da Pátria, no aniversário da independência do Brasil, sugere uma reflexão sobre a relação entre Pátria e fé em Deus. A questão pode parecer inócua, mas não é, sobretudo quando pensamos em "partidos religiosos", ou em ideologias político-religiosas, que promovem violência em nome de Deus e se impõem, como totalitarismo asfixiante, sobre toda uma nação. É inegável que existem várias lamentáveis instrumentalizações da religião para fins não próprios dela. Proponho minha reflexão a partir da posição da Igreja Católica Apostólica Romana.
Tomemos a noção de "fé em Deus" não como algo genérico ou subjetivo, mas relacionada com um corpo de doutrinas, elaborado e professado oficialmente por determinada religião; afirmações e interpretações pessoais não podem ser atribuídas ao grupo religioso como um todo. A fé em Deus professada pela Igreja Católica está definida e explicada oficialmente no Catecismo da Igreja Católica; outros textos do Magistério eclesiástico explicitam ainda mais determinados aspectos da sua fé.
A comunidade política e a comunidade religiosa, embora se exprimam por estruturas visíveis, por vezes semelhantes, são de natureza bem diversa, quer pela sua configuração, quer, sobretudo, pela sua finalidade. São independentes e autônomas. A Igreja organiza-se com formas aptas a satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis e não pretende substituir-se ao Estado, ou à comunidade política; reconhece e respeita a competência desta para gerar relações e instituições para o serviço do bem comum temporal.
Portanto, a laicidade do Estado, entendida como separação de Poderes, autonomia e respeito pelas competências próprias de Estado e Igreja, fica plenamente preservada. Isso é bom, contanto que essa laicidade não seja usada como álibi para a imposição, aos cidadãos, da não religião como postura oficial, para cercear a liberdade religiosa, ou para discriminar cidadãos em função de suas convicções de fé. Compete ao Estado assegurar a todos os seus membros a liberdade de crer, ou não crer, e de expressar a sua fé, se forem religiosos.
Tenho plena convicção de que fé em Deus e amor à Pátria não se excluem, muito pelo contrário! Um bom cristão deve ser também um bom cidadão. Um mau cidadão, certamente, não é um bom cristão. Como pessoas de fé, estamos conscientes de que "não temos neste mundo pátria definitiva, mas estamos a caminho da que há de vir" (cf. Hb 13,14); mas também temos clara consciência de sermos membros de uma Pátria neste mundo; somos parte de um povo, com o qual nos identificamos e com cujo bem estamos - e devemos estar - inteiramente comprometidos.
Nossa convicção de fé, como cristãos e católicos, não pode ser desvinculada da edificação da comunidade humana, da qual fazemos parte. O ensino social da Igreja oferece as diretrizes para traduzir as luzes e os valores do Evangelho do Reino de Deus para o viver e agir quotidiano. Karl Marx - e outros com ele - interpretou de maneira equivocada o potencial da fé religiosa para a vida de um povo, ao qualificar, de modo simplista, a religião como ópio do povo...
Além de cumprirem os seus deveres cívicos, como os demais cidadãos, as pessoas de fé têm uma contribuição própria a dar para o bem da Pátria. A fé em Deus, bem entendida e manifestada publicamente, com suas convicções traduzidas em antropologia, moral e cultura, pode representar uma contribuição fundamental para o bem comum. Da fé em Deus decorre uma valiosa compreensão da pessoa e sua existência, do mundo e do convívio social, da economia e de todas as atividades humanas. Decorre também um alto conceito de dignidade da pessoa e de seus direitos inalienáveis, bem como um embasamento sólido para práticas de respeito, justiça e honestidade, tão necessárias ao convívio humano e às relações sociais.
A fé em Deus também é capaz de despertar e sustentar belas ações de caridade, compaixão e solidariedade; dificilmente nossas organizações religiosas deixam de estar ligadas a iniciativas de beneficência, de grande importância social, como obras sociais, escolas, hospitais e lugares de acolhida e cuidado de pessoas esquecidas ou rejeitadas pela sociedade. A fé em Deus, quando verdadeira, leva a uma aproximação sempre maior do Mistério Sublime e ao enlevo ante sua beleza - nasceram daí, e continuam a nascer, tantas expressões artísticas! E a esperança, decorrente da fé em Deus, longe de alienar das realidades presentes, é fonte de energias para enfrentar os desafios e as tarefas desta vida.
Na antropologia cristã, além disso, está presente aquilo que a globalização vai trazendo sempre mais à luz: nossa pertença a uma única família humana, à qual estamos ligados de maneira solidária. Cremos num único Deus e Pai de toda a humanidade; ele quer o bem de todos os filhos e que vivam como irmãos e em paz. Um povo não pode ser indiferente aos outros, nem deixar de se interessar pela sorte sempre mais compartilhada por todos os membros da comunidade humana. Limites territoriais, tradições culturais, diferenças raciais, heranças históricas e interesses econômicos, em vez de contrapostos, deveriam ser cada vez mais conjugados e harmonizados.
Quando se dá espaço para Deus, também o homem ganha importância; sua dignidade, seus direitos, a liberdade e o sentido de sua vida neste mundo não são diminuídos, mas iluminados e potencializados. A fé em Deus oferece bases sólidas para valores e virtudes que devem nortear o vida humana nas esferas privada e pública.
Ter fé em Deus e manifestá-la abertamente, indo às suas consequências éticas e culturais, é bom e faz bem à Pátria.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
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