sexta-feira, maio 03, 2019

‘Game of Thrones’ pode ser a maior propaganda que o capitalismo já teve - BARRY BROWNSTEIN

GAZETA DO POVO PR/FEE (Foundation for Economic Education) 03/05


Considere estes números: a temporada final de Game of Thrones custou cerca de US$ 100 milhões para ser filmada. No ano de 1300, o PIB da Inglaterra medieval inteira era de apenas 40 milhões de libras.

Game of Thrones não esconde a pobreza extrema de pessoas comuns vivendo em uma versão fantasiosa do período medieval. Nós vemos governantes indiferentes à sujeira, à doença e à fome sofridas pelo indivíduo médio. Os cidadãos são tratados como objetos colocados na Terra para melhorar a vida de seus governantes.

Game of Thrones poderia ser a maior propaganda do capitalismo já escrita. Se você ficou curioso, uma pergunta óbvia relacionada a isso é: como nós progredimos da pobreza de Westeros até a sociedade moderna?

Redistribuição de riqueza


Game of Thrones apresenta algumas respostas a essa pergunta. A temática da série gira em torno da conquista e da redistribuição de riqueza, e não da criação de riqueza. Infelizmente, isso é o que a política atual se tornou. Políticos brigam para roubar legalmente de um grupo em benefício do governo e daqueles que o governo favorece.

A pobreza opressiva não acabou quando uma versão medieval de Bernie Sanders redistribuiu a riqueza dos ricos para os pobres. Como, então, a vida de bilhões de pessoas progrediu desde o período medieval? Aqueles que aguardam ansiosos o final dessa série épica acreditam que a mera passagem do tempo foi a responsável por trazer prosperidade?

“Entre 1270 e 1700, o crescimento da renda per capita inglesa foi no geral de 0,2% ao ano”, afirma uma pesquisa dos professores de Economia britânicos Stephen Broadberry, Bruce Campbell, Alexander Klein, Mark Overton e Bas van Leeuwen. No entanto, esse crescimento irrisório foi ocasional: “O crescimento da renda per capita antes da Revolução Industrial parece estar relacionado a períodos de queda na população”, dizem os pesquisadores.

O milagre da transformação


Existe uma quantidade surpreendente de dados sobre a pobreza no período medieval. Sob o comando de Guilherme I (Guilherme, o conquistador), cerca de 10 mil pessoas participaram “da coleta e registro de dados para o Domesday Book”, escreve Lawrence Officer, professor de Economia, em What Was the UK GDP Then?

O Domesday Book “foi o registro de um levantamento demográfico e econômico feito na Inglaterra entre 1085 e 1086”.

E a economia mundial? O economista Brad Delong pesquisou estimativas do PIB em épocas passadas. No ano 1 d.C., o PIB mundial era de US$ 18 bilhões (em valores de 1990). No ano 1000 d.C., o PIB aumentou para apenas US$ 35 bilhões. Trezentos anos depois, em 1300, o valor caiu para US$ 32 bilhões. Quatrocentos anos mais tarde, em 1700, houve um aumento, mas para apenas cerca de US$ 100 bilhões.

Foi então que houve um acontecimento miraculoso. De 1700 até 1800, o PIB praticamente dobrou. Em 1900, o PIB atingiu US$ 1 trilhão pela primeira vez. Na virada do milênio, o PIB mundial era de mais de US$ 40 trilhões, e bilhões de pessoas foram tiradas da pobreza.

A natureza da vida


Em seu clássico, The Discovery of Freedom, Rose Wilder Lane, grande escritora libertária, sublinha verdades simples sobre a energia humana. Lane escreve: “Nada, a não ser o seu desejo, a sua vontade, pode gerar e controlar sua energia. Somente você é responsável por cada ação que fizer; ninguém mais será”. Lane observa que, por conta própria, perecemos:

Uma pessoa não gera energia suficiente. O homem solitário neste planeta dificilmente iria sobreviver. Seus inimigos são numerosos e fortes; sua energia é pouca. Para salvar sua existência, ele deve ter aliados de sua própria espécie.

Em Game of Thrones, existem aliados, mas eles não são confiáveis por causa da crueldade e das traições de seus governantes. Lane teria dito àqueles que estavam empenhados em matar uns aos outros: “Acorde, você está desperdiçando sua energia. Você não entende a sua verdadeira natureza”. Ela escreve:

A fraternidade humana não é apenas uma frase bonita ou um belo ideal; é um fato. É uma das realidades cruas da vida humana neste planeta inumano. Todos os homens são irmãos, do mesmo sangue, da mesma raça humana. Eles são irmãos no mesmo desejo imperativo de sobreviver e na mesma necessidade desesperada de unir suas energias para sobreviver. Qualquer homem que machuque um semelhante está machucando a si mesmo, porque o bem-estar humano é necessário para a sua própria existência.


Não importa o quanto cooperemos, não importa quanta riqueza geremos através do reconhecimento da realidade da fraternidade humana, o mundo não é perfectível. Haverá novas doenças; haverá sofrimento humano a partir do infortúnio de cada um; haverá os relativamente pobres. No entanto, nós podemos aliviar o sofrimento através de ações de empreendedorismo. Em As viagens de Gulliver, Jonathan Swift escreveu:

Aquele que fizer duas espigas de milho, ou duas folhas de grama, crescerem em um pedaço de terra onde apenas uma tinha conseguido crescer merece o melhor da humanidade e faz um serviço mais importante a este país do que toda a classe política.


Empreendedores, não governantes, são necessários para o progresso


A ação humana depende do descontentamento com o estado atual das coisas. Em sua obra-prima Human Action, Ludwig von Mises escreve:


O homem de ação está ávido para substituir o estado mais satisfatório das coisas para um menos satisfatório. Sua mente imagina condições que lhe sirvam melhor, e sua energia está direcionada para trazer o estado que deseja. O impulso que faz um homem agir é sempre de uma certa inquietação.

A inquietação, porém, não basta – e isso é importante. Mises explica:

Para fazer um homem agir, a inquietação e a imagem de um estado mais satisfatório não são suficientes por si mesmas. Uma terceira condição é necessária: a expectativa de que a ação intencional tenha capacidade de resolver, ou ao menos aliviar, a inquietação.

Em Game of Thrones, governantes covardes não prestam contas imediatamente; eles são livres para agir de forma arbitrária, ao menos em curto prazo. A atividade humana pacífica é restringida, e então o progresso humano é impedido.

Atualmente, apesar de serem beneficiários do progresso, muitas pessoas acreditam que empresários e capitalistas são tão poderosos quanto os políticos. Mises argumenta que a realidade é muito diferente:

A posição que empreendedores e capitalistas ocupam no mercado econômico é outra. Um “rei do chocolate” não tem controle sobre seus consumidores e seus patrocinadores. Ele fornece chocolate com a melhor qualidade possível e com o preço mais baixo. Ele não controla os consumidores – ele os serve. Os consumidores não estão presos a ele. São livres para não frequentar suas lojas. Ele perde o seu “reino” se os consumidores preferirem gastar dinheiro em outro lugar.

Mises explica que o empreendedor lida com a incerteza, assim como nós. Ele tem especificamente o papel de utilizar “os fatores de produção” da melhor forma. A “lei do mercado” reina suprema:

Assim como todo homem de ação, o empreendedor é sempre um especulador, lidando com as condições incertas do futuro. Seu fracasso ou sucesso depende do quão corretamente consegue antecipar um evento incerto. Se falhar na sua previsão, está perdido. A única fonte para o lucro do empresário é a sua habilidade em prever, melhor do que qualquer pessoa, a demanda futura dos consumidores.


Estagnação ou progresso


Quando a ação humana é impedida, Mises escreve, “o homem deve render-se ao inevitável, submeter-se ao destino”.

De qualquer forma, o desejo de criar sentido para sua vida está sempre presente. Em uma coletânea de seus discursos, A vontade de sentido, o grande psiquiatra Viktor Frankl escreve: “A luta pela existência é a luta ‘por’ algo; é uma luta com propósito, e só assim tem sentido e pode trazer sentido à vida”.

Frankl afirma: “Nunca devemos estar satisfeitos com o que já foi alcançado. A vida nunca para de nos colocar novas questões, nunca nos permite descansar”. Em seu livro Aerztliche Seelsorge (“O cuidado espiritual pelo médico”, em tradução livre), ele complementa:

Aquele que não está em movimento é ultrapassado; o homem que está satisfeito perde-se. Nem na criação ou na experiência podemos nos contentar com as conquistas. Todos os dias, todas as horas, novas ações são necessárias e novas experiências são possíveis.

Ao assistirmos Game of Thrones, podemos torcer para o heroísmo de Jon Snow e Daenerys Targaryen. Entretanto, podemos também agradecer ao capitalismo e aos empresários pelo progresso econômico e transformacional estimulado pelos feitos heroicos de indivíduos comuns que, insatisfeitos com o status quo e livres das amarras de seus governantes autocráticos, optaram por agir.

Tradução de André Luiz Costa.
© FEE. Publicado com permissão. Original em inglês."

Autonomia amputada - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 03/05

Ou o sujeito tem o direito de tomar decisões sobre seu tratamento ou não tem


Entrou em vigor o novo Código de Ética Médica. Haveria vários aspectos a comentar, mas, dadas as limitações espaciais desta coluna, fixo-me na autonomia do paciente. Aqui, infelizmente, nada mudou. O órgão regulador dos médicos segue sem reconhecer que o indivíduo maior e capaz é soberano no que diz respeito às decisões sobre sua própria saúde.

Em redação idêntica à do diploma anterior, de 2009, o artigo 31 veda ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Não é preciso mais do que lógica elementar para perceber que a inclusão do “salvo em caso de risco iminente de morte” anula o que vem antes.

Ou o sujeito tem o direito de tomar decisões sobre seu tratamento, independentemente das consequências, ou não tem. É ridículo tentar limitar a autonomia à retirada de verrugas e outras situações que não ameacem a vida.

O caso paradigmático é o das testemunhas de Jeová, que, por razões religiosas, se recusam a receber transfusões de sangue. O que torna a situação desse grupo interessante para a bioética é que estamos falando tipicamente de situações agudas, nas quais a transfusão poderia salvar o doente, que depois seguiria com vida normal, e não de pacientes terminais, para os quais a medicina tem pouco a oferecer. Aqui, nossos instintos praticamente gritam por uma intervenção.

O problema é que não dá para ir contra a vontade do paciente sem passar por cima de suas crenças. E não me parece que possamos julgar o veto às transfusões como essencialmente menos razoável do que a proibição da masturbação ou da carne de porco. Como não dá para estabelecer uma hierarquia das loucuras, religiosas ou seculares, a única coisa sensata é deixar que cada indivíduo exerça sua autonomia, independentemente do desfecho.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…"

Tamanho do atraso exige reformar mais que a Previdência - PEDRO LUIZ PASSOS

FOLHA DE SP - 03/05

É preciso também olhar com muita atenção o dia a dia da economia e de toda a gestão pública


A aprovação da reforma da Previdência com uma contenção do gasto público em dez anos estimada pelo Ministério da Economia em R$ 1,2 trilhão poderá ter impacto favorável equivalente ao da mudança monetária de 1994, levando o país a avançar várias casas no tabuleiro de ajuste das contas fiscais, ainda que com atraso lamentável e imprudente.

A introdução do Real, acompanhada nos anos seguintes de metas anuais para a inflação e de flutuação da taxa cambial, limitou o recurso ao financiamento do gasto público pela emissão de dinheiro, o meio rápido de corroer o poder de compra da moeda pelo chamado “imposto inflacionário”.

É o que ocorre na Venezuela, repete-se com frequência na Argentina e ocorria aqui até 1994.

Mas o ajuste das finanças públicas ficou incompleto tanto pelo lado tributário, cuja arrecadação se assemelha a uma peneira devido às desonerações, quanto pelo da despesa, agravada pelos programas criados sem provisão de fundos nem compensação de gastos, além de engessada por rubricas de execução obrigatória —tenha ou não o governo caixa para cumprir o que o Congresso votou.

A reforma da Previdência é o primeiro grande passo para reinserir o gasto público, da ordem de 40% do PIB entre impostos e o déficit total (que inclui juros), dentro da conta que a sociedade está disposta a pagar, mas também de acordo com a fatura fiscal semelhante a países com renda per capita equivalente à do Brasil. Nesse ranking, somos campeões em falta de competitividade.

O governo sinalizou uma agenda de reformas profundas, começando pela Previdência, depois a tributária, e, entre elas, uma série de medidas de envergadura ligadas à eficiência das empresas e ao bem-estar coletivo, como desburocratização, remoção do entulho de proteção setorial com tarifas onerosas sobre importações e reserva de mercado, aumento da competição bancária etc.

Algumas estão avançando, outras parecem estagnadas, como a política comercial externa, que é imprescindível e urgente para a modernização da economia.

É de tudo isso junto e misturado, encaminhado de uma vez, que o país precisa, e não de reformas isoladas, por maior a importância de algumas delas, em especial a previdenciária, cujo déficit em 12 meses até março já acumula um rombo de R$ 294,2 bilhões, sendo uma das causas de o país há cinco anos não ter superávit primário e investir muito pouco.

A expectativa de realização de parte dessa agenda animou o empresariado e elevou as projeções de crescimento em 2019, feitas no início do ano para algo como 2,5%.

Hoje, tendem ao resultado dos últimos dois anos, 1,1%. Se confirmado, será um desempenho muito ruim, já que o calendário de 2019 tem três dias úteis a mais que em 2018.

O que frustrou? Em primeiro lugar, a falta de convicção do presidente Jair Bolsonaro com o programa liberalizante do ministro Paulo Guedes. Em segundo, sua inaptidão ao lidar com o Congresso, sem o qual nada acontece.

Como as expectativas são formadas a cada dia, a soma das crises criadas sem nexo pelo governo vem minando seu capital de confiança, que já não era alto. Nem tudo está perdido, como atesta o empenho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em aprovar a nova Previdência.

Ela foi alçada à condição de prova dos nove do saneamento das contas públicas e, sobretudo, da capacidade do governo de governar. Esse é o risco, que será crescente quanto mais lenta for a recuperação do crescimento.

Com as redes sociais como caldeirão dos ânimos sociais, qualquer descuido pode virar um estrondo.

Pedro Luiz Passos
Empresário, conselheiro da Natura.

Cúmplices de Maduro - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 03/05

Ambição do Brasil é se descolar do fracasso da operação amadora de Guaidó


Além do próprio Juan Guaidó, os grandes derrotados com a operação estabanada da oposição na Venezuela foram os serviços de inteligência dos EUA. Guaidó agiu e o governo Trump avalizou tudo com base na informação errada de que haveria uma deserção em massa da cúpula das Forças Armadas. Como tristemente se viu, não foi o que ocorreu. Pelo contrário.

Guaidó se aquartelou na Base Aérea, o presidente oficial Nicolás Maduro trocou o Palácio de Miraflores pelo Forte Tiuna, sede do Ministério da Defesa. Assim, a guerra virou

uma disputa pelos militares. Guaidó perdeu, Maduro ganhou. Pelo menos por ora, porque a situação política, econômica e social é insustentável.

Nenhum dos milhares de generais declarou apoio à oposição, enquanto Maduro exibiu fotos marchando com militares e manifestações de comandantes e das ruas. Manteve apoio militar e mostrou força popular. A Casa Branca está tonta, o Planalto está pessimista e tudo é incerto.

O chanceler Ernesto Araújo estava em Washington na véspera do blefe de Guaidó, conversando com o secretário de Estado, Mike Pompeo, e com o conselheiro de Segurança, John Bolton. Vêm a ser, exatamente, os dois representantes do governo dos EUA mais diretamente envolvidos com a Venezuela e a derrubada de Maduro.

Os generais brasileiros, porém, não dependem só de informações da Secretaria de Estado e do Pentágono (que, aliás, não se entendem), pois têm contato direto, apesar de informal, com militares venezuelanos. Na terça-feira, enquanto todos se perguntavam onde Maduro havia se metido, o vice-presidente Hamilton Mourão já sabia que ele estava em Tiuna. O problema, para eles, é que os militares venezuelanos são “cúmplices” e não vão ceder só com promessa de anistia. Sabem que, se Maduro cair, lá se vai a promessa.

O regime Chávez-Maduro segue cegamente Cuba, onde não existem duas palavras: negociação e recuo. Logo, tudo é no “vai ou racha”. E, além de não arredar pé, Maduro usou o blefe da oposição a seu favor: Guaidó sai mais fraco do que entrou; Maduro ganhou sobrevida e tende a aumentar a repressão.

O mais preocupante é que Guaidó parece ter perdido gás, fôlego, jogando dúvidas sobre o futuro da oposição venezuelana, que já entrou em campo com Henrique Capriles, depois com Leopoldo López e tenta desesperadamente viabilizar Juan Guaidó, sem sucesso. Um atrás do outro, eles vão perdendo as condições para liderar uma saída para o país, pobre país.

Nos EUA, fala-se que “todas as alternativas estão sobre a mesa” e admite-se uma intervenção militar “como último recurso”. No Brasil, o tom é mais cauteloso, mas uma coisa é certa: os militares agem diplomaticamente e recusam qualquer aventura armada contra Maduro, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e os tais olavistas sempre dão um jeito de deixar essa solução no ar.

Até mesmo quando Bolsonaro abriu o território nacional para os EUA enviarem ajuda humanitária à Venezuela – o que Maduro chamou de “cavalo de Troia” –, os militares já reagiram mal: “Entramos numa fria”, dizia uma alta patente.

Agora, enquanto Bolsonaro nega que Guaidó tenha sido derrotado, um general atrás do outro diz o que todo mundo sabe: a operação desta semana foi um fracasso, Guaidó foi o grande fracassado e o cenário é totalmente incerto. A oposição age no escuro, a inteligência americana falhou, não há informações confiáveis e Maduro vai ficando. A esta altura, o Brasil só tem uma ambição: descolar-se do desastre e do amadorismo da terça-feira.

Medalha
. Grau máximo da Ordem do Rio Branco para quem chama o vice de “idiota” e trata os generais aos palavrões?! Eu, hein!

Força de Mourão vem dos erros de Bolsonaro - FERNANDO ABRUCIO

Valor Econômico - 03/05

A oposição que me perdoe, mas, no curto prazo, o maior inimigo do governo federal é o próprio governo. A ausência de um projeto oposicionista de reforma do Estado e a crise atual do petismo constituem parte da explicação desse fenômeno. Só que existe outro lado mais importante neste processo: o eleitorado e os apoiadores de Jair Bolsonaro são muito mais amplos e heterogêneos do que o discurso mais sectário adotado regularmente pelo presidente. É disso que decorre o surgimento do vice-presidente, Antônio Hamilton Mourão, como sombra, contraponto e, numa hipótese mais extrema, alternativa real de poder.

Evidentemente que essas circunstâncias não são novidade no país. O presidencialismo brasileiro, pelo menos desde a Constituição de 1945, é marcado pelo possível conflito entre o titular e seu vice. Naquela época, a possibilidade de eleger uma dupla com políticos vindos de chapas diferentes, como foi o caso de Jânio Quadros e João Goulart, potencializava a crise. Mas mesmo durante o período autoritário houve embates fortes, como no caso de João Figueiredo e Aureliano Chaves. A falta de um papel institucional mais claro para a vice-presidência explica parte desse problema, contudo, no mais das vezes, são os erros do presidente que dão asas ao seu par.

O tipo de presidencialismo derivado da Constituição de 1988 tornou mais importante e complexa a montagem da coalizão de governo, por meio da combinação de multipartidarismo, federalismo e divisão de Poderes. O sistema não é ingovernável, como mostraram Fernando Henrique e Lula, no entanto, nenhum presidente ou partido consegue governar sozinho o país, de modo que é necessário angariar apoios políticos e sociais amplos e heterogêneos. Quando Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff perderam a capacidade de atrair os atores para além de seu grupo político mais restrito, abriram as portas não só para o próprio impeachment, mas também para a ascensão de seus vices.

É essa realidade mais geral que o presidente Bolsonaro precisa compreender. Embora a eleição dele tenha sido marcada pela crise do sistema político montado na Nova República e consolidado a partir do Plano Real, dois fatores continuam contribuindo para a necessidade de se governar por coalizão e levar em conta um espectro mais amplo de apoios. O primeiro é que sua vitória eleitoral não adveio do bolsonarismo raiz. O tamanho deste talvez esteja próximo dos dados da última pesquisa do Datafolha feita antes da trágica facada, enquete realizada nos dias 20 e 21 de agosto e que marcava 22% de preferências pelo então candidato Bolsonaro.

O episódio da facada e a incapacidade de outros candidatos de centro subirem nas pesquisas favoreceram a migração de um grande contingente de eleitores antipetistas ainda no primeiro turno para Bolsonaro, processo que se completou no segundo turno com a aquisição de votos de outro grupo considerável de cidadãos que não queriam o PT no poder. No computo final, o presidente eleito teve 55% dos votos válidos, mas deve-se ressaltar que, além dos que votaram em Fernando Haddad e daqueles que se abstiveram ou votaram branco e nulo, muitos dos que elegeram o novo governante, quiça a metade destes, não se identificavam com o bolsonarismo raiz.

Diante disso, o discurso do presidente precisa ser mais amplo e plural do que o conteúdo de seus tweets. Ao falar basicamente ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro abre o flanco para o descontentamento de grande parte dos que votaram nele, para não falar dos oposicionistas e dos que não votaram em nenhum dos candidatos. Sei que seus estrategistas, principalmente seus filhos, têm uma opinião diferente. Eles preferem seguir a máxima de Trump, de apostar na manutenção do apoio dos mais fiéis. Só que há uma enorme diferença entre os Estados Unidos bipartidário e o Brasil multipartidário: aqui, sempre é possível ter mais opções políticas do que a luta entre um governo e uma oposição bem definidos.

Hoje, Mourão é a voz da moderação em comparação a Bolsonaro, atraindo a simpatia dos que votaram no presidente, mas não são bolsonaristas, e até dos que votaram no candidato da oposição. Esse poder de atração, entretanto, é um fator mais forte na esfera política e junto aos grupos de interesse mais influentes, como as instituições financeiras, a mídia, parte do empresariado, universidades e outros setores da sociedade civil organizada. É neste âmbito que há mais gente comparando o desempenho do presidente com o do vice.

A estratégia política de Bolsonaro, de discursar basicamente para os seus eleitores mais fiéis, principalmente usando as redes sociais, é a maior alavanca para o crescimento do poder de Mourão. Quando ele usa o argumento da "nova política versus a velha política" e emperra o processo político no Congresso Nacional, aqueles que querem a aceleração das reformas de Estado ficam mais descrentes do bolsonarismo e, como viúvas de seu próprio voto, procuram alguém para se consolar dentro do condomínio do governismo - se não for o vice, pode ser o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Ao atacar como inimigos da pátria grupos como a mídia, os ambientalistas, os ativistas sociais, as universidades, os professores, as minorias éticas ou de gênero e todos aqueles que não cabem no perfil bolsonarista raiz, Bolsonaro não atinge apenas a oposição. Seus atos e palavras desagradam mais gente e muitos dos seus eventuais eleitores de 2018, que não queriam o PT, mas que estão longe de um sectarismo conservador. O uso constante e radical dessa linguagem política contrasta com a comunicação feita agora por Mourão, que se orienta pela parcimônia no discurso e pela conversa com todos os atores sociais.

O contraste entre presidente e vice também é percebida no plano das relações internacionais. Se Bolsonaro radicaliza o discurso sobre a Venezuela, Mourão adota uma postura mais cuidadosa e realista. Se o bolsonarismo propõe que a embaixada em Israel vá para Jerusalém, o vice conversa com os representantes dos países árabes. E toda vez que o discurso da Presidência da República for contra o multilateralismo (ou globalismo, como diriam os olavistas) e agendas internacionais mais consolidadas, como a questão ambiental, parte dos atores internacionais vai procurar o morador do Palácio do Jaburu.

Mas o maior tiro no pé da estratégia política bolsonarista é tensionar a relação com os militares. O discurso olavista, vindo do próprio ou dos filhos do presidente, começou batendo em Mourão e, pouco a pouco, migrou suas insatisfações para as Forças Armadas. Imagine se Olavo de Carvalho fosse apoiador de Lula ou Fernando Henrique e tivesse dito o que falou dos militares e de alguns de seus líderes específicos. Nem é possível imaginar.

Talvez a razão que levou setores do bolsonarismo a criticar o comportamento dos militares esteja no fato de que as lideranças das Forças Armadas, no mais das vezes, entenderam o sentido político do governo atual: para ter uma governabilidade efetiva, é preciso ampliar o diálogo e mesmo a negociação para além dos circuitos mais fechados do PSL e dos apoiadores de primeira hora do presidente Bolsonaro. E, neste sentido, comportam-se do mesmo modo que Mourão - e de maneira inversa à lógica dos tweets do presidente e seus filhos.

Claro que muitos atores políticos e analistas podem, com razão, pedir maior discrição no comportamento de Mourão. Porém, não se trata somente de uma situação individual. Do mesmo modo que o presidencialismo de coalizão responde a questões estruturais do sistema político e da sociedade brasileira, é possível dizer que quando o presidente não consegue manter um amplo apoio dos partidos e de diversos setores sociais quase que naturalmente surge um "vice-presidencialismo de conspiração". Isso já aconteceu antes, como nos casos de Collor e Dilma no período mais recente.

Pode-se acusar os vices de conspiradores, todavia, a maior causa desse processo está na inabilidade dos presidentes. Sempre se fala bem de Marco Maciel e José Alencar, pela sua lealdade em relação ao companheiro de chapa presidencial. Isso é verdade. Só que o comportamento deles esteve muito vinculado à qualidade da liderança e dos governos de Fernando Henrique e Lula, que conseguiram manter, por um longo tempo, um apoio político e social que era maior do que os seus partidos. Do outro lado do fenômeno, Itamar e Temer foram vistos como alternativa de poder quando a possibilidade de impeachment surgiu, mas vale lembrar que não eram vistos com bons olhos antes. A instabilidade e a mudança política derivaram mais dos erros dos respectivos presidentes do que pela grande capacidade conspiratória dos vices.

O presidente Bolsonaro e parte dos seus apoiadores precisam aprender com a história recente do país. Mais ainda agora, num momento em que o Brasil, mesmo se fizer reformas certas, vai demorar pelo menos dois anos para sair da crise econômica e social. Em vez de brigar com Mourão, deveriam tê-lo como ponte junto aos atores que não são bolsonaristas de raiz. Sem esse elo, a travessia será mais difícil e pode nos levar não ao Éden, mas a uma nova instabilidade política do presidencialismo de coalizão, antessala do "vice-presidencialismo de conspiração".

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

Um governo sem dinheiro e sem razão - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 03/05

Extremistas agravam conflito em país tenso pela crise e pela penúria do Estado


A primeira grande ofensiva do governo contra as universidades foi contida por alguma reação social, embora tímida. Reitores, professores, alguns parlamentares e a OAB não tiveram muita companhia na resistência à arbitrariedade.

A intimidação por meio de ameaça de asfixia financeira foi sustada até segunda ordem. Mas outras ordens virão e, menos discutido, a falta de dinheiro nua e crua de qualquer ideologia vai continuar por ainda muito tempo e afetar muito mais do que o ensino superior.

A gente razoável restante na administração federal contribuiu também para sustar a ameaça obscurantista, antes de mais nada discriminação inconstitucional, assim como tem agido para atenuar outros atropelamentos das leis e da mínima razão.

Por exemplo, houve panos quentes nos casos da Petrobras, do Banco do Brasil ou do desatino belicista em relação à Venezuela, para ficar em escândalos maiores.

Mas “a luta continua” para o bolsonarismo de inspiração revolucionária, motivo de convulsão e conflito permanentes, o que irrita até o Clube Militar.

Em nota publicada no site dessa associação de militares fora da ativa, o coronel Sérgio Paulo Muniz Costa reagiu com profunda revolta aos ataques da ala antiestablishment do governo às Forças Armadas, ao “assalto de aventureiros ignorantes mancomunados em uma nova internacional extremista”.

“É inadmissível que expoentes dessa linha exótica de pensamento, independentemente de onde estejam, continuem a exibir suas preferências ideológicas sem serem reprovados pela sociedade brasileira, usando saudações fascistas na conclusão de seus discursos...”, escreveu o coronel Muniz.

A impaciência se espalha por outros setores, mesmo entre empresários. No entanto, esperam calados o arrefecimento da baderna, em nome da aprovação de alguma “reforma” que tire o país da depressão.

Mesmo entre executivos do mercado financeiro, que na maioria colaboraram com a ascensão de Jair Bolsonaro, o prestígio presidencial despencou mais que entre o povo mais pobre.

Um governo pragmático procuraria evitar conflitos nesta situação em que o reparo da ruína econômica será muito difícil e em que a penúria terminal do governo vai provocar cortes letais de despesa, com efeitos políticos e econômicos relevantes.

Talvez gente do governo se divirta com a ideia de trucidar as universidades ou a ciência, projeto facilitado pela falta de dinheiro, situação que, de um fato da vida, se torna pretexto para pervertidos e ressentidos no poder. Mesmo nesse caso, haverá milhões de prejudicados na classe média-alta e na elite do país. Pode ser pior.

A falta de recursos para o Minha Casa Minha Vida afeta um programa que possibilita o lançamento de quase 80% dos imóveis residenciais. A miséria degrada ainda mais as estradas. Os recursos para investimentos (obras, equipamentos) do governo devem cair a um terço do que era gasto entre 2010 e 2014.

Técnicos do Ministério da Economia dizem que, se a arrecadação não melhorar, vai faltar verba para o pagamento de serviços essenciais para o funcionamento do governo.

São afetados os interesses de empresários, prefeitos, de quem quer que utilize algum serviço público, de rodovias a escolas, talvez hospitais, quase todo o mundo.

O sofrimento com a estagnação econômica tende a ser agravado pelo esgotamento orçamentário. O risco de difusão de conflitos aumenta, agravado pelas falanges extremistas do governismo.


Os generais e seus labirintos - NELSON MOTTA

O GLOBO - 03/05

Mourão não é uma ameaça a Bolsonoro, um conspirador, um golpista, como o veem os filhos do Mito e os devotos

Para um paisano chegar a general tem que estudar muito, fazer muitos cursos e especializações, aqui e no exterior, ter sólida formação profissional e comportamento exemplar no respeito à disciplina, à hierarquia e ao cumprimento do dever. O Estado investe uma fortuna na sua formação, e como o Brasil não tem preocupações sérias de defesa territorial, os aspectos militares de combate e o armamento precário são secundários, sobra-lhes tempo para estudar. E, como se aposentam com 60 anos, ainda podem prestar bons serviços ao país.

Em tese. Porque o general João Figueiredo foi sempre o melhor aluno de sua turma, mas fez um péssimo governo. Era general da Cavalaria, mas se comportava como um cavalariço com pinta de cana do SNI e principalmente detestava governar e conviver com políticos detestáveis. Gostava mesmo era de cavalgar, metáfora de sua personalidade.

Não é o caso do general Hamilton Mourão, da Artilharia, inteligente e preparado, que parece ter gosto de exercer o poder, dar opiniões e assumir posições com independência, educação e até algum humor. Não é uma ameaça a Bolsonoro, um conspirador, um golpista, como o veem os filhos do Mito, os minimitos, e os devotos. Quando aceitou ser candidato a vice, todos sabiam que não seria “vice decorativo” como Temer choramingou para Dilma. Era homem de comando, mas de respeito à hierarquia. Bolsonaro elegeria até um poste, ou um príncipe, como vice, mas seu capital eleitoral equivalia ao prestígio de Mourão com os generais e a tropa.

Já o capitão Bolsonaro estava completamente despreparado para a presidência, foi formado pela convivência por trinta anos com a elite e a escória da política brasileira na Câmara. E engana-se quando atribui à atuação do filho nas redes sociais a sua vitória: o horror ao PT e à corrupção foi seu maior eleitor.

Mas, aos militares que estão em cargos de poder no lugar de políticos profissionais, não bastam formação e idoneidade, é preciso eficiência. A incompetência dá mais prejuízo que a corrupção.

Quando Olavo de Carvalho se encontra com Daenerys Targaryen - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 03/05

Poderosos da hora extraem lições de política de seriados e de extremistas na internet


Com menos de um mês na ribalta, ninguém desempenha tão bem o papel de "clown" dessa comédia sinistra que é o governo Bolsonaro como esse tal Abraham Weintraub, o ministro da Educação que resolveu combater "a balbúrdia" de esquerda nas universidades federais aplicando-lhes cortes punitivos de verba, entre outros improvisos. Sua retórica reacionária e beligerante mal esconde a falta de projeto, de perspectiva, de preparo técnico. Observem que o bolsonarismo nunca comparece ao debate com dados e estudos a justificar essa ou aquela medida. Tudo se resolve na base do improviso, ao qual se aplica o "viés ideológico". Personagens que só deixariam o legado do seu ressentimento incompetente vivem seus dias de fama.

Se há um aspecto positivo neste governo, ele está em marcar, na prática, a diferença entre liberais e arruaceiros populistas de extrema direita. Observem que escrevi ali a expressão "na prática". É importante porque eu a emprego como a outra face da experiência, que é a teoria. Como resta evidente a cada dia, inexiste aporte teórico "nisso daí". As coisas vão sendo feitas à matroca. Exceção à reforma da Previdência, que se aproveitou de um estoque razoável de estudos para chegar à proposta que está no Congresso —a despeito de erros políticos brutais, incluindo os de Paulo Guedes—, nada mais existe.

O que se tem é uma noção tão imprecisa como agressiva de que o país estava sendo sufocado por "eles", os esquerdistas, os comunistas, os "red walkers". Não por acaso, um certo Filipe Martins, assessor especial de Bolsonaro, recorreu ao Twitter dia desses para evidenciar seus referenciais teóricos. Escreveu o mestre: "Como (quase) todo mundo, estou na expectativa pela volta de 'Game of Thrones', série formidável que aborda, dentre muitos outros, um dos meus temas favoritos: o perigo de apostar todas as fichas no pseudorrealismo maquiavélico e na falsa esperteza pragmática".

Já tivemos poderosos que citavam Max Weber, como FHC, ou partidas de futebol, como Lula. Não estou fazendo um contraste. Com adequação, pode haver pertinência numa coisa e noutra. Ocorre que o sociólogo não fazia de conta que Weber era um zagueiro, e o ex-operário não fingia que um zagueiro era Weber. As coisas mudaram. Os poderosos da hora extraem lições de política e de moral de seriados de TV e de extremistas de direita que se dedicam à autoajuda na internet. Esses são os mais sofisticados. O presidente prefere simular pistolas com a mão e as quer circulando aos montes, com a chancela de Sergio Moro, a grande referência moral, jurídica e gramatical "disso daí".

Martins deve ser da turma que acredita que Maquiavel realmente pregou que "os fins justificam os meios". É pouco provável que tenha ido à fonte. Pergunto a propósito: o "pseudorrealismo maquiavélico" implica a existência de um "verdadeiro realismo maquiavélico", ou o maquiavelismo, vulgarmente tomado como sinônimo de amoralidade e conspiração, é, por si, um falso realismo? Também não está claro se a "falsa esperteza pragmática" é uma sinonímia desdobrada do "falso realismo" ou a sua contraface, ambos igualmente desprezíveis.

Em qualquer caso, o pensador tem uma recomendação a seu assessorado: "Propósitos superiores e transcendentais são imprescindíveis para uma perspectiva real de poder e que, sem honra e senso de dever, nenhuma ação pode estender-se para além da vida do agente que a colocou em curso". Parece ser uma mistura de Olavo de Carvalho com Daenerys Targaryen, a senhora dos dragões. Ou por outra: não tendo o que dizer, use a língua como lança-chamas.

Esse palavrório nem sentido faz. Serve apenas de abrigo retórico para a idiossincrasia e a incompetência. A "transcendência" é só mais uma rima pobre para a truculência verbal ineficiente, descolada da realidade, a justificar os métodos de ocupação do Estado que bolsonaristas e olavetes acusavam o PT de promover e praticar. Carvalho, note-se, resumiu assim o leninismo, numa frase que ele atribui a Lênin, sem a citação de fonte, como é hábito no autoproclamado filósofo e professor: "Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz". Aboletados no Estado, muitos experimentando o seu primeiro emprego já depois dos 30, engalfinhando-se por nacos de poder, esses valentes, não obstante, continuam a acusar as esquerdas de aparelhar o Estado. Xingue-os do que você é. Acuse-os do que você faz. Nota final: Weintraub tem de conviver mais com gente pelada. Vai descobrir que não é uma categoria de pensamento.


Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Jair e Carlos - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

O GLOBO/ESTADÃO - 03/05

Não há esperança de que os filhos de Bolsonaro parem de se imiscuir no governo


Sobressaltado com a forma inusitada com que os filhos do presidente têm interferido no governo, o país acalenta a esperança de que, mais dia, menos dia, Jair Bolsonaro consiga pôr fim a tais interferências. Mas, quando se tem em mente a real natureza da complexa relação do presidente com os filhos, sobram razões para temer que tal esperança seja infundada.

Em artigo aqui publicado em 2/11 do ano passado, logo após o segundo turno, chamei atenção para quão insólito fora o desfecho da disputa presidencial. “Levará algum tempo até que o país possa ter um entendimento mais claro e completo da eleição de Jair Bolsonaro. Entre muitos aspectos notáveis, chama a atenção que, numa democracia tão grande e complexa, meia dúzia de pessoas — sem financiamento, com poucos segundos de acesso à propaganda eleitoral na televisão, sem apoio da mídia e em confronto aberto com o establishment político do país — tenham logrado levar à frente, com tamanho sucesso, um projeto de conquista da presidência da República.”

Na verdade, nem o próprio Bolsonaro, ao se lançar informalmente candidato, anos antes, esperava que o projeto fosse coroado de tanto sucesso. Mas, hoje, ao largo de toda a complexidade dos fatores que contribuíram para sua vitória, o presidente está convicto de que seu sucesso teve uma explicação muito simples: o uso extremamente eficaz das redes sociais, concebido e posto em prática por seu filho Carlos.

Não vem ao caso se concordamos ou não com essa explicação tão simples para um fenômeno tão complexo. Para efeito do argumento que aqui se desenvolve, o que importa é que o presidente parece não ter sombra de dúvida quanto a isso. Ainda na semana passada, em entrevista coletiva no Planalto, voltou a ressaltar sua convicção aos jornalistas presentes: “... não foram vocês que me colocaram aqui, foi ele” (O GLOBO, 26/4).

Convencido de que quem conseguiu catapultá-lo do baixo clero da Câmara ao Palácio do Planalto foi seu segundo filho, Bolsonaro se enxerga na presidência como uma criatura de Carlos. E, de seu lado, claro, Carlos está mais do que convencido de que foi ele, de fato, o criador. Graças a ele, o pai viu-se transformado em presidente.

É natural, que numa relação entre pai e filho, estejamos propensos a enxergar o pai como criador. Nesse caso tão peculiar, contudo, por mais esdrúxulo que possa parecer, é fundamental perceber que não é bem assim. Da perspectiva do projeto de conquista da Presidência da República levado adiante com tanto sucesso pela família Bolsonaro, o filho é o criador. E o pai, a criatura. Pelo menos é assim que pai e filho claramente se enxergam.

Percebido este dado crucial de realidade — que, uma vez notado, salta aos olhos —, as peças se encaixam, e o quadro fica muito mais claro. É o que basta para entender quão infundada é a esperança de que, mais dia, menos dia, os filhos de Bolsonaro deixarão de se imiscuir no governo.

Convicto de que o pai lhe deve a conquista da presidência, Carlos continuará pronto a reapresentar essa conta a Jair sempre que necessário. É o poderoso trunfo com que contará para continuar a interferir, a seu bel-prazer, nas decisões do governo. Muitas vezes, com apoio tácito do pai.

Coadjuvado por seus irmãos, por Olavo de Carvalho e amplo séquito de prepostos, Carlos continuará a exercer cerrado patrulhamento do governo, com vigilância de cada ato, para que não haja violação dos cânones apregoados na campanha eleitoral e para proteger o presidente contra a deslealdade de seus supostos aliados.

Para os que vêm tentando imprimir racionalidade ao governo, em meio ao grave quadro econômico e social que atravessa o país, é uma perspectiva desalentadora. Deixa entrever, até onde a vista alcança, persistência de cizânia, dissipação de energia, perda de foco e dificuldades redobradas para formar e manter uma coalizão eficaz de apoio ao Planalto no Congresso.

As simples armadilhas - FERNANDO GABEIRA

O Estado de S. Paulo - 03/05
A grande tarefa dos intelectuais é convencer quem desconfia de sua atividade sobre seu valor



O Brasil é dirigido por um bando de loucos, afirmou Lula. Ainda bem que não são cachaceiros, respondeu Bolsonaro. Os dois homens com mais apelo popular no Brasil falam uma linguagem rude e franca. Sabem que se comunicam com a maioria e desprezam as nuances sofisticadas para combaterem um ao outro.

Essa polaridade é um sinal dos tempos. Na verdade, Bolsonaro é um recém-chegado. Ele explodiu a outra polaridade, entre PSDB e PT, assim como em muitos lugares da Europa também foi para o espaço a alternância centro-direita e centroesquerda.

Bolsonaro procura expressar o que acha ser a aspiração do homem comum. É disso que se trata: apresentar soluções simples e deixar que a complexidade fique para intelectuais e especialistas – os suspeitos de estarem enrolando e mantendo o status quo com suas avaliações mais profundas.

Creio que é dentro desse contexto que é preciso analisar a disposição de Bolsonaro de reduzir o apoio aos cursos de sociologia e filosofia. Ele quer se dedicar aos que dão retorno, como os de agricultura, medicina, administração.

Bolsonaro já foi contestado de muitas formas. Ficou claro que há uma previsão constitucional amparando esses cursos. A contestação que deve ter pegado mais fundo é a de natureza econômica: o avanço da robótica, da inteligência artificial, reacendeu a importância das ciências humanas. Asfixiá-las seria um lamentável atraso.

O próprio Japão, usado como argumento, já percebeu que os desdobramentos científicos tornaram um erro a ideia de subestimar as ciências humanas.

Não sei como essas coisas vão ser elaboradas na cabeça de Bolsonaro. Sinto que ele exprime uma espécie de senso comum talvez originado na suposição de que apenas o que se produz materialmente tem valor – outro equívoco bastante difundido entre as pessoas que buscam líderes simples e diretos para resolver os problemas do País.

Outra fonte de mal-entendidos é supor que sociologia e filosofia sejam matérias de esquerda, isto é, conduzam os que se dedicam a elas inevitavelmente a uma posição contestadora.

Se a direita que apoia Bolsonaro pensa assim e quer suprimir cursos, ela está, na verdade, capitulando intelectualmente, abandonando um campo por achar que a partida ali jamais será ganha ou, no mínimo, empatada.

No livro O Povo Contra a Democracia, Yasha Mounk, acho eu, acerta ao afirmar que esses líderes expressam posições populares e não adianta vê-los com olhar superior ou classificar seus seguidores como idiotas. Essa é uma tese que defendo, em termos semelhantes, desde o período eleitoral. O segredo, para ficarmos numa expressão popular, é mostrar às pessoas como o buraco é mais embaixo, nem todas as ideias simples são exequíveis.

Bolsonaro vetou um anúncio do Banco do Brasil (BB). Havia gays, tatuados e negros. Na sua visão estreita, a propaganda do banco é um instrumento da guerra cultural. O povo não pagará por ideias que confrontam a família.

A deputada Janaina Paschoal chegou a perguntar por que estatais fazem propaganda. No caso, o Banco do Brasil é apenas um ator num cenário competitivo em que estão também os bancos privados. A propaganda é uma forma de competir e assegurar uma fatia do mercado.

Mesmo aqueles que defendem a privatização do BB – talvez não seja o caso de Bolsonaro – deveriam estar interessados em que o banco não perca uma fatia de mercado. Se isso acontecer, sai mais barato, o País receberia menos por ele.

Tudo isso, na verdade, é apenas uma reflexão sobre a tática, a possibilidade de progressivamente levar às pessoas uma ideia de que as coisas são mais complexas, sem que com isso se considerem ludibriadas por um misterioso e onipresente sistema.

Bolsonaro tem dito que a propriedade privada é sagrada. Hoje usa esse argumento para refletir sobre a resistência dos fazendeiros às invasões de terras.

No entanto, há várias situações em que a tese da sacralidade tem de ser relativizada. Às vezes, um rio que passa na sua sagrada propriedade privada é o mesmo que passará em outras sagradas propriedades, ou terá de abastecer os que não têm nenhuma propriedade. É possível, em nome do seu pedaço de terra, arruinar um patrimônio comum?

Os políticos que propõem soluções simples para os problemas complexos vencem de goleada no Brasil de hoje. E, diria, em muitos pontos do globo, na atual conjuntura. O problema com eles é que o tempo vai passando e as pessoas que esperam soluções simples e rápidas se desapontam com facilidade. E o capital político escapa pelos dedos.

Os movimentos de Bolsonaro são uma espécie de contraponto à reforma da Previdência. No momento, é o tema que pode trazer algum alívio à economia, sem necessariamente despertar entusiasmo popular.

Ele parece atento a esse jogo. Tanto que descartou a ideia de mais um imposto que atingiria também as igrejas, sobretudo as evangélicas. E se concentra na guerra cultural, um campo em que as coisas não só se mexem com muita lentidão, como dependem do confronto de ideias e se realizam com armas próprias, dentro da diversidade.

A grande tarefa dos intelectuais é convencer as pessoas que desconfiam da sua atividade e mostrar pacientemente o seu valor. É importante não perder o vínculo com as pessoas que acreditam, como Bolsonaro, que ciências humanas não têm retorno.

A convergência das ciências humanas com a inteligência artificial, que vai revolucionar nossos cotidianos, é um bom argumento. Mostra que está em jogo o futuro de todos nós. E nos anima a argumentar que a desconfiança mútua é um fator de atraso.

Intimidar intelectualmente os simpatizantes do populismo não me parece o caminho adequado. O melhor é mostrar de forma amigável o que às vezes fazemos com arrogância: que as coisas são mais complicadas do que parecem.

 JORNALISTA

Concepções de política - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/05

O cotidiano do exercício do poder parece afinal ter ensinado a Bolsonaro que, numa democracia, a atividade política não é algo opcional, é essencial


O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro por ocasião do Dia do Trabalhador foi positivo porque ele reconheceu as “dificuldades iniciais” e que “o caminho é longo”. É um discurso muito diferente do tom triunfalista que marcou seus primeiros meses de gestão, quando Bolsonaro parecia julgar que sua vontade seria suficiente para implementar sua agenda de governo. O cotidiano do exercício do poder parece afinal ter ensinado ao presidente que, numa democracia, a atividade política não é algo opcional – é essencial e incontornável.

O problema é o que Bolsonaro entende por política. No mesmo pronunciamento, o presidente disse que as “dificuldades iniciais” do governo derivam de concepções políticas “antagônicas”. O presidente não detalhou o que quis dizer com isso, mas é improvável que estivesse se referindo à oposição de esquerda, pois esta, no Congresso, é numericamente pouco relevante. Além disso, mesmo com o governo envolvido em uma série de crises e polêmicas, essa oposição mal conseguiu mostrar alguma força, já que nunca conseguiu superar as profundas divergências que separam seus diversos partidos. E, para completar, o PT, que ambicionava ser hegemônico, hoje é apenas uma sombra do que já foi, pois sua atuação está cada vez mais atrelada ao destino do ex-presidente Lula da Silva, preso por corrupção.

Então, o mais provável é que Bolsonaro estivesse se referindo a um antagonismo entre a sua concepção de política e a concepção dos partidos e políticos que em tese estão ou podem vir a estar alinhados ao governo. Mais uma vez, o presidente parece contrariado com o fato de que é preciso negociar com parlamentares para assegurar apoio na votação de matérias de interesse do Palácio do Planalto.

O presidente tem razão quando se recusa a aderir à relação fisiológica que marcou de maneira tão pesada a política nacional nos últimos tempos, e que foi rechaçada firmemente pelos eleitores nas urnas. A política deve finalmente voltar a ser vista como meio legítimo de alcançar no mínimo consenso para a superação dos graves problemas nacionais, e não como um território habitado basicamente por espertalhões.

Esse imperativo fica mais evidente quando um deputado como Paulinho da Força (SD-SP) – supostamente governista – vem a público para dizer que os partidos do centrão precisam “desidratar” o projeto de reforma da Previdência porque, se aprovado e se der os resultados positivos que dele se esperam para as contas públicas, Bolsonaro terá grandes chances de se reeleger. Textualmente: “Tenho atuado muito junto com os partidos de centro para que a gente possa ganhar a opinião daquele povo. Se fizermos uma reforma que dê R$ 1 trilhão em dez anos, significa que daríamos em três anos ao Bolsonaro R$ 330 bilhões. Ou seja, isso garante a reeleição dele. Esse é o discurso com muitos partidos que não têm interesse na eleição do Bolsonaro. É possível trazer esses partidos para uma posição de desidratar a reforma”.

O espantoso, nessa declaração, foi a sinceridade, mas não o conteúdo: é muito provável que vários colegas de Paulinho da Força pensem exatamente da mesma maneira, pautando-se não pelo bem do País, mas exclusivamente por seus interesses paroquiais. Casos como esse amesquinham a política, rebaixando-a a um simples jogo de soma zero – para um ganhar, o outro necessariamente tem de perder.

É certo que o presidente Bolsonaro tem contribuído para criar boa parte do antagonismo de que ele próprio se queixa, especialmente quando adota uma atitude imperial, julgando-se com poder e apoio para impor sua vontade em temas variados – desde os juros do Banco do Brasil e os preços da Petrobrás até o financiamento de universidades públicas que permitem “balbúrdia” e “gente pelada”.

No entanto, a ninguém, a não ser aos irresponsáveis de sempre, deveria interessar o fracasso do governo Bolsonaro, pois o resultado quase certamente seria o caos – ambiente em que só prosperam os apologistas do populismo. Isso não significa dispensar a oposição ou concordar em princípio com tudo o que o governo propõe, e sim ter em conta que, num cenário com mais de 13 milhões de desempregados, crescimento pífio e perspectivas sombrias, é preciso pensar, antes, no País.

Gás para crescer - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/05

É meritório o objetivo de romper o monopólio da Petrobras nesse mercado


É oportuna a tentativa do governo de repensar o funcionamento do mercado de gás natural com o propósito de reduzir de modo significativo o preço para o consumidor.

Por qualquer critério razoável, não faz sentido o combustível custar no Brasil mais de duas vezes as cifras observadas, por exemplo, nos EUA e na Europa. Que há algo de errado no modelo de monopólio da Petrobras, não resta dúvida.

As alterações em estudo pelos ministérios da Economia e das Minas e Energia, em cooperação com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e outros órgãos do governo, visam reduzir o poder de mercado da Petrobras.

A estatal federal detém 75% da produção de gás e é praticamente monopolista na infraestrutura de gasodutos e terminais de importação do produto por navios.

Por não contarem com os meios de tratamento e escoamento, as empresas privadas que produzem a parcela restante de 25% optam por vendê-la para a Petrobras.

Conforme noticiou esta Folha, o passo essencial será uma ação do Cade para exigir mudanças na conduta da Petrobras —onde há resistências à abertura do mercado.

Seriam determinados prazos para a venda de participações em gasodutos e distribuidoras, entre outros desinvestimentos capazes de reduzir a parcela da Petrobras a 50% da venda de gás. Também há que enfrentar os monopólios estaduais na distribuição.

Segundo estudo considerado pelo governo, a medida poderia destravar até R$ 240 bilhões em áreas como siderurgia, alumínio, petroquímica, fertilizantes, papel e celulose, entre outras. Existem, como se vê, vastos interesses privados envolvidos no projeto, o que exigirá um cuidado redobrado de isenção por parte das autoridades.

No momento em que se aproxima o leilão referente à chamada cessão onerosa, que levará a mercado os barris de petróleo excedentes da área do pré-sal, cumpre revisar a legislação para favorecer novos investimentos em gasodutos, assegurar o direito de passagem nos existentes e forçar maior concorrência na distribuição.

Trata-se sem dúvida de um plano complexo, que deverá envolver também mudanças tributárias. Se bem realizada, a abertura desse mercado pode até propiciar uma chance de renascimento para os segmentos industriais intensivos em energia que se tornaram inviáveis nas últimas décadas.

Para tanto será preciso atuar em todos os elos da cadeia na qual se forma o preço do produto. Estimativas do setor apontam que o gás em si representa apenas 46% do valor final, com o restante distribuído em impostos, margens de distribuição e transportes.

Permanecem dúvidas consideráveis acerca do apoio de Jair Bolsonaro (PSL) à agenda liberal de seu ministro da Economia. A capacidade do governo de levar adiante as metas ambiciosas de desestatização ainda está por ser testada.