terça-feira, abril 10, 2018

Piores momentos - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

A prisão de Lula acabou sendo um episódio de pequenez

Tudo em que Lula encosta a mão, já há muito tempo, fica estragado na hora. Neste seu momento de desgraça, quando não podia mais evitar a prisão e sua única saída era tentar manter a cabeça erguida, fez o contrário – baixou a cabeça e acabou entrando na cadeia como um homem pequeno. Teve a oportunidade plena de fazer alguma coisa mais decente. Foi ajudado pela gentileza extrema da Polícia Federal e demais autoridades encarregadas de cumprir a ordem judicial, que lhe deram todo o tempo do mundo para preparar uma apresentação às autoridades que tivesse um pouco mais de compostura. Foi tratado com uma paciência que não está à disposição de nenhum outro brasileiro. Teve o privilégio de uma “negociação” sem pé nem cabeça para se entregar, como se o cumprimento da ordem dependesse da sua concordância. Mas acabou, apenas, estragando tudo. Conseguiu tornar a sua biografia, que já está para lá de ruim, ainda pior – este capítulo da sua ida para o xadrez, condenado a doze anos por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, concorre, certamente, para ser um dos piores da sua triste passagem pela política brasileira.

O PT, a esquerda em geral e o próprio Lula imaginavam, talvez, uma despedida com mais cara de cinema, ou pelo menos de novela de televisão. O problema, como sempre acontece, é que esses planos bonitos exigem coragem para ser colocados em prática. E onde encontrar coragem, na hora de enfrentar a dureza? Nada de Salvador Allende e de sua heroica resistência até a morte, no Palácio de La Moneda em Santiago do Chile, onde enfrentou à bala a tropa do exército chileno que veio prendê-lo. Allende? Imaginem. O que o brasileiro viu pela televisão, durante as vinte e tantas horas de tumulto que se seguiram ao prazo concedido para o ex-presidente se apresentar à prisão, foi um homem confuso, vacilante, amedrontado, tentando pequenas espertezas – nada que lembrasse um líder em modo de “resistência”. Uma hora parecia querer uma coisa. Dali dez minutos estava querendo o contrário. Sua “trincheira” durante as horas que antecederam a prisão, o prédio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, não era uma trincheira de verdade. Entravam engradados de cerveja, sacos de carvão e carne para churrasco. E que trincheira é esta, que só resiste porque a tropa do outro lado não aparece? Lula, mais uma vez, ficou fingindo que queria briga – mas amarelou, como sempre, na hora em que teria mesmo de ir para o pau.

O único gesto do ex-presidente e o seu entorno foi aproveitar a moleza da polícia encarregada de prendê-lo para dar a impressão de que ele se “recusava” a ser preso. Não se recusava coisa nenhuma – só ficou entocado dentro do prédio porque a Polícia Federal não foi buscá-lo. Que valentia existe nisso? O que houve de verdade, na vida real, foi o arrasta-pé de um político assustado, sem ação e obcecado com a própria pele, escondendo-se atrás da moita para ver se a confusão passa e ele pode sair ao céu aberto. As últimas horas que Lula passou em seu esconderijo, antes de tomar o avião que enfim o levou já preso para Curitiba, deixaram claro, também, que nem ele e nem toda a estrutura do seu partido tinham a menor noção do que estavam fazendo. Não tinham um plano, A, B ou C. Não tinham uma única ideia a respeito do que fazer. Não tinham nada. Até a última hora, na verdade, não imaginavam que fosse expedida, realmente, uma ordem de prisão contra ele; não conseguiam acreditar, simplesmente, no que estava acontecendo. Lula e o PT contavam, isto sim, com os escritórios de advocacia milionários que iriam salvá-lo no STF. Contavam com um Marco Aurélio, Lewandovski ou Gilmar Mendes para dar um golpe de última hora no tapetão. Contavam com qualquer coisa – menos a ordem de prisão que acabou por levá-lo ao xadrez da Laja Jato. Na hora que a realidade teve de ser encarada, entraram em parafuso.

O final desta comédia foi uma tristeza. Durante um dia inteiro, e a maior parte do dia seguinte, um bolinho de gente ficou em volta do sindicato — era o apoio popular que foi possível juntar. Às vezes, nas imagens aéreas da televisão, parecia uma concentração mais encorpada. Mas assim que o helicóptero se afastava um pouco ficava claro que a mobilização do povo brasileiro para defender Lula era só aquele bolinho mesmo – em Mauá, por exemplo, a quinze minutos dali, não havia um único manifestante à vista. Nem em Santo André, ou São Caetano, ou no resto do Brasil. A população estava trabalhando. No carro de som, falando para si próprios, sucediam-se dinossauros velhos e novos, de Luisa Erundina a Manoela D’Ávila, gritando coisas desconexas. Ninguém, ali, tinha qualquer relação com o mundo do trabalho. Nem na plateia, formada por sindicalistas, desocupados ou professores que faltaram ao serviço, com a coragem de quem não pode ser demitido do emprego. Dentro do prédio Lula limitou-se a não resolver nada, cercado por um cardume de puxa-sacos e mediocridades. Não havia, na hora máxima, ninguém de valor, mérito ou boa reputação em torno dele – só os serviçais de sempre, gente que sabe gritar, sacudir bandeira vermelha e atrapalhar o trânsito, mas não é capaz de ter uma única ideia ou fazer uma sugestão que preste. Como o nosso grande líder de massas pode acabar cercado, numa hora dessas, por figuras como Gleisi Hoffman e Eduardo Suplicy? Muita coisa, positivamente, deu muito errado.

O heroísmo da “resistência” de Lula acabou limitado à agressão de um infeliz que despertou a ira dos “militantes” e foi surrado até acabar no hospital com traumatismo craniano. Ou à depredação no prédio da ministra Carmen Lucia em Belo Horizonte, mais pichações aqui e ali. Quanto ao próprio Lula, o que deu para verificar é que a soma total de suas ações no momento de ir para a cadeia resumiu-se a empurrar as coisas com a barriga até a hora de entregar os pontos — depois de fingir que “não estava conseguindo” se render por causa de um tumulto barato encenado pela turma que cercava o sindicato. Esperou escurecer para não ser preso à noite, no dia seguinte inventou uma espécie de missa, um discurso que não acabava mais, um almoço “com parentes” e, por fim, armou a farsa do tal bloqueio dos portões de saída por parte dos seus “apoiadores”, o que o “impediria” de se entregar. Chegou ao limite extremo da irresponsabilidade, mais uma vez – e só quando não deu para continuar fazendo a polícia de idiota, como fez durante dois dias seguidos, embarcou no camburão da PF, e depois, no avião rumo à Curitiba. No tal discurso, com frases mal copiadas de Martin Luther King, chegou a dizer que é a favor – isso mesmo, a favor – da Lava Jato, depois de passar os últimos dois anos fazendo os ataques mais enfurecidos contra a operação anticorrupção. Agora, na hora de ir para a cadeia, diz que é contra a roubalheira, e que só está preso por causa “da imprensa” – o que, além de falso, é mais uma demonstração de que está cuspindo no prato no qual tem comido há anos. Afirmou, enfim, que estava indo para a “prisão deles”. Mentira. Não é prisão deles. É do Brasil inteiro e do sistema legal que ainda existe por aqui.

A história está cheia de políticos que crescem com a própria prisão. Não foi o caso de Lula.

Pessimismo ou prudência - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 10/04
Tudo era matemática na Paixão de Lula, exatidão cinematográfica que as mais de 24 horas de ostensivo desrespeito público a uma decisão judicial permitiram

Era óbvio que sairia a pé; que caminharia — cercado de povo cenográfico — até se entregar. Já rezara; já falara aos fiéis; já ceara em família — tudo à revelia de uma ordem de prisão contra si. Era tal o coletivo de barbaridades que conduzira o Brasil àquele estado de suspensão moral, tal o volume de excepcionalidades que se concedia ao homem: que a ele era mesmo impossível negar a condição sobrenatural. E é necessário que se diga: já vencera, bem antes de andar abrindo o mar dos cabrestados de Stédile e Boulos. Aquela batalha: ele ganhara.

E então saía — por livre e espontânea vontade: ia. As gentes não queriam que fosse, tentaram trancar o prédio com os próprios corpos, todas dispostas ao sacrifício da vida (dos jornalistas); mas por elas, para evitar derramamento de sangue, ele, num gesto de responsabilidade (não foi isso?), desistira de resistir. Havia quem chorasse, entre gleisis e sinceros. E porque esses últimos também votam: decerto não havia por que achar graça. Havia também os que nada entendiam — mas também as dilmas votam.

Tudo ali era oração aos convertidos.

Serei excessivamente banal se lembrar que 20% bastarão a que se garanta lugar no segundo turno da eleição? E que o candidato do PT, seja ou não Lula, Lula será? Serei pessimista se lembrar que não se pode desconsiderar o componente plebiscitário dessa disputa? Que parcela do eleitorado votará em desagravo ao ex-presidente?

E era então, em sua via, entre os seus, como se pisasse o chão de fábrica, 40 anos depois. Havia um documentário sendo filmado ali. Havia texto. Tudo era matemática naquela Paixão de Lula, exatidão cinematográfica que as mais de 24 horas de ostensivo desrespeito público a uma decisão judicial permitiram — período de anomia avalizado por Sergio Moro e Polícia Federal.

Não é de hoje que escrevo: Lula nunca se importou com sua defesa jurídica. A estratégia que calculou para si consiste na politização absoluta do processo judicial; no confronto que faz derivar da condição autoatribuída de perseguido, de modo que todos, sobretudo os juízes, convertam-se em adversários, e tudo se torne palanque.

Lidar com Lula sem considerar essa metodologia é estupidez. Lidar com Lula sem considerar essa metodologia e ainda julgar poder lhe dar um nó tático, aí é também prepotência e irresponsabilidade.

Voltemos ao espetáculo de afronta institucional encenado em São Bernardo e avaliemos se aquilo, com aquela dimensão, teria sido possível sem o modelo excepcional de ordem de prisão, com hora marcada, concebido por Moro e estendido pela PF; conjunto de frouxidões que fomentou as condições a que se erguesse um inimaginável Lula senhor da própria prisão.

Há quem diga que também da parte de Moro/PF houve ardil em deixar o ex-presidente escolher quando seria preso; mas fico sem entender que modalidade de plano seria o que permite ao sujeito — microfone em punho — aprofundar-se como vítima e atacar a Justiça como se com ela disputasse votos, um dos discursos que o alçou a líder nas pesquisas.

A quem quisesse evitar (ou minimizar) a calamidade e/ou o circo, só havia duas possibilidades para a prisão de Lula: ou imediata, assim que negado o habeas corpus preventivo pelo STF, no máximo no dia seguinte bem cedo, como padrão nas operações da PF, ou ao fim dos últimos recursos em segunda instância, exauridos os tais embargos dos embargos — aquilo que Moro chamou de “patologia protelatória”.

Se a ideia do juiz era surpreender, se era evitar brechas a chicanas de defesa, se era jogar no contrapé do STF e sua jurisprudência precária virtualmente revista, se era se antecipar à agenda anunciada pelo próprio presidente do TRF-4, que tivesse articulado, repito, a pronta detenção de Lula, tão logo informado de que o poderia fazer.

A solução intermediária escolhida, porém, foi erro dramático, por meio do qual Moro expôs tibieza. Antes tivesse sido apenas isso. Porque compreendida como movimento de natureza política, ainda que, na verdade, esvaziada da mais mínima cultura política, a forma da prisão fez o jogo de Lula — e enredou o juiz, pela primeira vez, na narrativa do ex-presidente.

Faltou humildade a Moro, uma vez que mesmo os mais brilhantes heróis sempre têm o que aprender com a experiência. Convém recordar: não foi o primeiro equívoco do doutor em atos referentes a Lula. Ou já nos teremos esquecido daquela desastrada condução coercitiva, que resultou no salão presidencial de Congonhas invadido e no palanque perfeito para o injustiçado, aquele em que falou que a jararaca estava viva?

É alarmante que se compreenda a prisão de Lula como final de alguma coisa; como se já fosse rei fora do tabuleiro; como se não fosse um dos jogadores; não uma das peças, mas um dos que as movem. É alarmante que ainda se subestime Lula neste país de soluções-puxadinho — e com a jurisprudência sobre prisão após condenação em segunda instância a ser mudada no STF.

Esse filme ainda vai aberto — e prevê o ex-presidente deixando a cadeia, com missa e show, no alto do trio-elétrico. Antes da eleição.

Carlos Andreazza é editor de livros