A escolha é nossa
O GLOBO - 18/04/09
A América Latina gosta de perder décadas e oportunidades. Aceita caudilhos, tiranos e tiranetes com razoável regularidade. Tolera que seus governantes confirmem as caricaturas feitas sobre a região. Usa, para se dividir, o que seria fator de união: a Amazônia, os rios comuns, a energia. A América Latina gosta de terceirizar suas culpas, achando que suas mazelas são imposições externas.
Em 2005, a Cúpula das Américas, em Mar del Plata, foi um fiasco. Não se discutiu nada sério e o esporte favorito era atacar George Bush, o detestável. O anfitrião culpou-o numa reunião bilateral por todas as misérias latino-americanas. O excêntrico Hugo Chávez comandou uma passeata contra o governo americano, organizada com o apoio implícito do governo argentino.
Uma nova liderança americana com todas as virtudes de Barack Obama abre a chance de uma relação amadurecida no hemisfério. A declaração de ontem da secretária de Estado, Hillary Clinton, é animadora. Um passo pequeno, mas um reconhecimento de que a política americana sobre Cuba fracassou. A resposta de Raúl Castro, de que está disposto a conversar sobre tudo, é outro sinal interessante. O diálogo isola ainda mais a patética Alba, que se reuniu para dar um suposto apoio a Raúl Castro, que, pelo visto, é mais esperto que todos eles. Na tal reunião, o presidente da Bolívia, Evo Morales, pediu para ser expulso da OEA, e se definiu como membro da inexistente corrente “marxista-leninista-comunista-socialista”, e Chávez avisou que não assinaria o comunicado conjunto negociado pelos governos. Nada sério.
A América Latina tem muitas mazelas: pobreza, desigualdade, exclusão, racismo. O problema é que, ao lutar contra elas, os líderes preferem culpar alguém ou algo externo. Dependendo da época, muda o culpado. Pode ser o colonizador, os Estados Unidos, o imperialismo, as multinacionais, a CIA, a dívida externa, a trilateral, o capitalismo, o FMI, o neoliberalismo. O inferno são os outros, e nunca as escolhas da região, os governantes eleitos ou tolerados, a indulgência com os erros, a corrupção.
Os Estados Unidos, por sua vez, ficaram prisioneiros de uma armadilha enferrujada. É espantoso que, 20 anos depois da queda do muro de Berlim, a potência americana ainda veja algum sentido no embargo a Cuba. O passo de Barack Obama, permitindo viagens, colaboração nas telecomunicações e remessas ao país, é insuficiente. Obama teve uma atitude madura e moderna em relação ao mundo muçulmano, mas ainda não encontrou o jeito de revogar essa velharia da Guerra Fria. O embargo foi decretado para sufocar o regime, sustentado pela União Soviética, que já acabou há quase duas décadas. Pelo menos, agora o governo americano já reconhece que fracassou.
O teste de resistência derrotou os EUA. Mas o tempo os derrotou a todos. Fidel Castro lembra o personagem literário do Outono do Patriarca, com aparições em que parece o fantasma de si mesmo. A ilha revolucionária, que incendiou a esperança dos jovens latinos nos anos 60 e 70, virou apenas uma capitania hereditária.
Cuba, com seu território menor que a Pensilvânia, não pode permanecer eternamente ditando o tom da relação entre os países do continente. Donna Hrinak, ex-embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, resumiu esse sentimento. “Trabalhei 30 anos no hemisfério. Nós perdemos tempo, dinheiro e energia demais discutindo Cuba. Morei na Polônia comunista, e nós a inundamos de informação, visitantes e intercâmbio cultural, e isso mudou o regime.”
Cuba é apenas uma ilha com um governo autoritário, que lembra as ditaduras longevas da região, como foram as de Stroessner ou de Trujillo, e que tem um indiscutível mérito: atingiu conquistas sociais inéditas. Evidentemente, ao contrário do que pensam os defensores do esclerosado regime castrista, isso não o absolve dos crimes contra a vida e a liberdade. O embargo isolou e sacrificou seu povo. É inaceitável.
Mas é apenas um detalhe. O relevante é o atraso da região, que tem muitas oportunidades de construir um futuro mais sólido e as despreza. Veja o que aconteceu com a Bolívia. Nos últimos anos, o preço do gás e a demanda pelo produto boliviano estavam em alta. Em vez de aproveitar e atrair investimentos, Evo Morales demoliu a confiança do consumidor brasileiro de que ele poderia ser um fornecedor confiável. Chávez desperdiçou o boom do petróleo com populismos e má administração. É um governante eleito construindo uma tirania. Na semana passada, Morales fez uma exótica greve de fome, para pressionar o Congresso. A Argentina, país que tem alto nível educacional, aceita a anomalia de ter uma presidente exercendo funções protocolares e um ex-presidente governando de fato o país. O Brasil é atacado por Bolívia, Equador e Paraguai, como se fosse um sub-Estados Unidos, cada vez que os governantes desses países estão disputando alguma eleição ou plebiscito. Depois, voltam a ser “muy” amigos.
Será boa para todos uma nova era de relacionamento maduro, moderno e pragmático, mas a salvação não virá de Washington, como nunca veio de Madri, Lisboa ou Londres. A região está por sua própria conta e vive das suas escolhas.