Aposentados
Manoel Carlos
REVISTA VEJA - RIO
Diante de uma taça de vinho, o assunto que prevaleceu foi o da aposentadoria. Afinal, eu e meus amigos mais próximos somos candidatos naturais a esse evento que só atinge os teimosos sobreviventes desta grande aventura de viver.
— Tudo bem, me aposento, penduro as chuteiras, mas jogar dominó... ah, isso nunca!
Com essa veemência, brindamos com Francisco a chegada dos seus 70 anos no nosso cenário preferido: o Café Severino da Livraria Argumento.
Chicão, como é conhecido, não está caindo pelas tabelas, mas enxerga mal, vacila ao andar, sofre de artrite etc. etc. Esses et ceteras se traduzem por bronquite, excesso de peso e glicose acima da média. E, por conta disso, a família insiste para que ele pare de ir ao escritório de advocacia que mantém com os dois filhos também advogados. São eles que tocam o trabalho, mas Chicão vai lá diariamente, dá palpites e ocupa um espaço que os filhos estão querendo para acomodar mais dois colegas, novos sócios da empresa. Por isso, pedem tanto ao pai que se aposente, que vá pescar, caminhar no calçadão, jogar conversa fora com os amigos, visitar as irmãs no Recife ou simplesmente fique em casa, de papo pro ar.
— Querem me ver de chinelo e pijama, grudado à televisão, babando diante das bailarinas do Faustão, implicando com a empregada e resmungando pela casa, que assim morro logo de tédio. Sabe o que eu sinto? Desconfiança. O que será que estão tramando contra mim?
E acrescentou com um suspiro:
— É uma conspiração.
Meu amigo é injusto na sua indignação no que toca aos filhos, mas entendo sua resistência à aposentadoria, que para muitos homens significa uma meia morte, um lento desaparecer, um apagar progressivo. E, se considerarmos a sua viuvez — Madalena se foi há pouco mais de dois anos —, então fica ainda mais fácil compreender e aceitar sua rabugice, que se transforma quase sempre em lamento:
— Já perdi quase todos os meus amigos. Acordo no meio da noite e fico pensando: quando serei eu? Quem será entre nós, entre os poucos que restamos, o próximo a partir?
— Vira essa boca pra lá — cortou o Inácio, batendo três vezes na madeira.
— Só querem que você aproveite a vida — arriscou o Raul.
— Aproveitar com quem? Se a Madalena ainda estivesse aqui, ao meu lado, isso ainda seria possível, mas sozinho...?
— Quem sabe não encontra uma nova parceira e se casa? — sugeriu o Inácio, procurando desanuviar a conversa.
— E faz uma nova viagem de lua de mel? — completou o Marquito, tentando fazer graça.
— Agora quem bate na madeira sou eu!
E Chicão deu as batidinhas.
— Mas logo você vai ser avô outra vez — insisti, sabendo que a filha caçula do meu amigo, a Clarinha, ia lhe dar mais um neto.
— E daí?
— Daí que um neto, quando chega, sempre ilumina a vida da gente — enfatizei.
— Já me vejo mais uma vez na pracinha, empurrando o balanço e, mais uma vez, vagando, como uma alma penada pelas ruelas congestionadas da Disney, perseguindo o Mickey e a Minnie.
E nesse clima doce-amargo transcorreu o nosso primeiro encontro do novo ano.
***
Já pagávamos a conta e nos levantávamos para sair do café, quando Edu, um dos filhos do nosso amigo, apareceu à procura do pai.
— Eu sabia que ia encontrar você aqui.
— Estávamos brindando à minha aposentadoria — ironizou Chicão.
Edu atacou sem rodeios:
— Inaugure, numa boa, um novo estilo de vida, pai. Enjoy, como aconselham os americanos.
E já emendando:
— Estou indo para o escritório, mas vamos reunir a família logo mais para jantarmos todos juntos.
E estendendo um pequeno embrulho:
— Vá combinando um torneio aí com a sua turma.
E ficou olhando, esperando que o pai abrisse, diante dos nossos olhos, uma caixinha com as 28 peças brancas de um lindo dominó de marfim.
Todos nós estouramos numa boa e sonora risada. E nos sentimos, ao lado de Chicão, um grupo de aposentados, mas com a disposição de uma turma de formandos do curso ginasial.
O torneio de dominó não nos assusta. O que não admitimos é trocar a taça de vinho pela xícara de chá.