A decisão de Frauke Petry de assumir sua cadeira no Parlamento alemão como independente, e não como uma das principais líderes do AfD (Alternativa para a Alemanha, na sigla germânica), explicita o açodamento nas comparações entre o partido de direita ultranacionalista e o nazismo de Adolf Hitler.
O AfD hoje está mais para um grupamento de diversas correntes que em comum são xenófobas e rejeitam o pan-europeísmo do que para uma fileira cerrada de camisas marrons a marchar sobre Berlim.
Petry é um exemplo disso. Ela ascendeu na sigla após a eleição parlamentar de 2014, assumindo a co-liderança em 2015 e tornando o que era um partido de eurocéticos sem expressão numa potência em formação. O combustível: a repulsa de estratos significativos da sociedade alemã à política de portas abertas a refugiados patrocinada pela chanceler Angela Merkel, que obteve vitória algo magra na eleição deste domingo (24).
Essa guinada obviamente atraiu todo tipo de radical, como o notório Björn Höcke, líder regional que falou nada menos do que uma Alemanha de "mil anos" num discurso —ecoando o slogan do Terceiro Reich de Hitler. O mesmo político chamou o memorial do Holocausto em Berlim de "vergonha" e barbarismos afins.
A rejeição aos imigrantes tem tons patológicos na linha oficial do partido, e propostas de legislações anti-islâmicas lembraram as Leis de Nurembergue, que ditaram aos poucos o destino trágico dos judeus sob o nazismo alemão (1933-45).
Petry percebeu o risco e, já neste ano, buscou trazer a sigla para uma posição mais moderada, de forma não muito diferente do que Marine Le Pen fez com a Frente Nacional francesa após tomar o partido do controle de seu pai. Tudo é perspectiva de poder: a vitória poderia colocar o AfD como o líder da oposição no país caso os social-democratas mantenham uma coalizão com os democrata-cristãos de Merkel.
Foi barrada por alguns de seus co-líderes, que na verdade disputam o poder interno na sigla —que, nas palavras de Petry, virou "anárquica", ainda que pareça lhe faltar autocrítica sobre o estado das coisas.
Uma das figuras que levou Petry a deixar o AfD é Alice Weidel, outra estrela da sigla. Ela é tão moderada no espectro do AfD quanto Petry, talvez até mais por seu perfil heterodoxo numa agremiação que é acusada de ser nazista. Ela tem 38 anos, trabalha no banco de investimentos Goldman Sachs e é casada com outra mulher, com que tem dois filhos.
Já Petry, 42, faz um perfil mais conservador e alinhado à política de "repovoamento alemão" defendida pelo AfD: tem quatro filhos. Se é verdade que os nazistas defendiam a expansão da população como programas de incentivo à maternidade semelhantes ao da AfD, esse é uma questão europeia atual. A taxa de natalidade é maior nas comunidades imigrantes, e no caso particular da Alemanha o país já convive com ela há muito tempo —aproximadamente, porque não há estatística oficial para evitar discriminação, 5% dos 82 milhões de alemães têm origem turca.
Diversos membros do AfD já fizeram apologias homofóbicas na mídia, mas ainda assim Weidel segue como uma liderança do partido, o que demonstra a dificuldade de perceber uma ordem ideológica unida.
Naturalmente, isso não significa que possa haver uma coesão futura no AfD, talvez lhe dando até condições de ampliar seu apoio —o "status quo" encarnado por Merkel, o da ordem europeia pós-Guerra Fria, hoje é declinante.
Outro dado a analisar é a origem dos votos do AfD, bastante pulverizada. Análise da migração do eleitorado feito pela empresa Infratest dimap mostra que o AfD recebeu tantos votos vindos do CDU (partido de Merkel) quanto da soma dos social-democratas e da sigla A Esquerda.
O grosso de sua votação, quase o dobro do que cada um desses dois contingentes, veio da coluna "outros ou sem partido", o que exemplifica o apelo antiestablishment que já foi registrado no Ocidente antes com Donald Trump e o "brexit".
O nazismo, desde sua origem nos anos 1920, edificou-se sobre a figura monolítica de Adolf Hitler. Havia, obviamente, numerosas facções rivais, mas quem buscava proeminência por dissenso acabava eliminado politicamente ou morto, como o chefe das SA (Tropas de Assalto, os famosos camisas marrons), Ernst Röhm, na Noite das Longas Facas de 1934. A ideia do Führer, o líder, era central para o movimento.
Para o historiador italiano Giovanni Orsina, especialista na ascensão do populismo de direita de Silvio Berlusconi, nunca mais haverá algo tão brutal como o fascismo ou o nazismo. "O mundo é mais complexo hoje, o que não torna impossível que soluções de inspiração totalitária acabem ocorrendo, só que com mais sofisticação", disse à Folha no mês passado.
Numa entrevista ao jornal britânico "Telegraph" no ano passado, Petry disse que o AfD era "filho da política de Merkel, que não atendeu a vários tópicos da sociedade alemã". Entender isso talvez seja uma forma mais eficaz de dar combate ao partido do que colar rótulos que não o impediram de chegar ao Bundestag.