ESTADÃO - 31/10
A rigor, por causa disso acabamos por perder recursos e oportunidades
Na última década, fomos capazes de estreitar relações com Cuba, Iraque, Venezuela e Angola – dentre outras nações vanguardistas do cenário político e econômico mundial –, mas não com os Estados Unidos. No mais emblemático dos casos desse período envolvendo uma eventual parceria com os americanos, fizemos questão de desqualificar o melhor produto, que concorria com preço competitivo. Os caças F/A-18 Super Hornet, da Boeing, preferidos pelos nossos militares, únicos testados com sucesso em combate, foram, primeiro, preteridos por causa de uma exigência de transferência de tecnologia (depois atendida pela empresa) e posteriormente, na falta de outra desculpa, por um suposto mal-estar provocado pelo vazamento de práticas de espionagem do governo americano no caso WikiLeaks.
Se não é exatamente uma surpresa os governos do PT terem certa ojeriza dos ianques, é interessante perceber que nosso sentimento antiamericano vai além dos simpatizantes das ideias socialistas e afins. Embora não difundido por toda a população, esse sentimento extrapola a classe dos nossos políticos – quase todos autoproclamados de esquerda ou centro-esquerda – e se estende principalmente pelas camadas ditas mais esclarecidas, particularmente entre acadêmicos e “intelectuais” diversos.
Há 20 anos, Alvaro Vargas Llosa, Plinio Mendoza e Carlos Alberto Montaner lançaram o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, que trata com muita inteligência e ironia das crenças predominantes nesta região do mundo sobre as causas de nossa pobreza e nosso atraso. Nele retratam que nenhum preconceito, ressentimento ou desculpa pelos nossos fracassos é tão difundido quanto o antiamericanismo, dado que por estas bandas os americanos são considerados não apenas como a quintessência dos valores burgueses e do liberalismo, mas também do consumismo e da exploração imperialista dos fracos da Terra. Segundo eles, as origens dessa crença – dos Estados Unidos como fonte primal dos nossos males – se encontram na cultura hispano-católica, na visão econômica nacionalista ou marxista, na história de conflitos armados entre os EUA e os países ao sul e ainda em sentimentos antagônicos de inveja e admiração.
Em nosso caso, seria cabível desprezar o elemento bélico – seguramente nunca entramos num embate com os gringos; mas talvez acrescentar aquele fator de ordem acadêmica, dada a inclinação histórica de boa parte dos nossos professores e doutores – em especial nas universidades públicas – por autores europeus. Principalmente a França, a Alemanha, a Itália e mesmo a Inglaterra sempre foram olhadas – certamente com razão – como fontes inequívocas e legítimas de teorias, conceitos, estudos e análises, sem as reservas não raramente dirigidas aos americanos. Em minha prosaica, embora longa, passagem – de 1980 a 2005 – pela Universidade de São Paulo fui beneficiado pela frequente exposição às ideias e obras de europeus, porém desproporcionais reduzidas vezes aos acadêmicos e pensadores dos Estados Unidos. Ao menos em minha vivência, essa predileção pelos europeus se fazia presente nas aulas ligadas aos mais diversos temas. Para minha sorte e melhor formação, fui orientado por um excepcional professor que não sofre e nunca sofreu desse viés, ele mesmo estudou na californiana Stanford University durante seu doutorado.
Voltando aos dias de hoje, é verdade que a prática se tem imposto ao pensamento antiamericano com significativa força: são centenas de milhares de brasileiros que estudaram e estudam nos EUA, o número de turistas brasileiros por lá é da ordem de mais de 1 milhão/ano, são também cerca de 1 milhão os brasileiros que migraram para lá e a grande maioria dos 85% de conteúdo internacional das TVs por assinatura no País vem dos Estados Unidos, apenas para citar alguns números. Por outro lado, embora ainda uma das oito maiores economias do mundo, o Brasil é destino de apenas 2% das exportações dos EUA (11.ª posição) e apenas 1% da origem das importações americanas (17.ª posição).
A rigor, com nosso antiamericanismo acabamos por perder recursos e oportunidades. Perdemos recursos porque poderíamos intensificar e tornar mais vantajosas as trocas comerciais entre os dois países e também perdemos oportunidades de desenvolvimento de nossa sociedade por deixarmos de admitir que temos o que aprender com eles em inúmeras frentes, como educação, tecnologia, economia, infraestrutura, gestão pública e cidadania.
Ninguém precisa admirar a Associação Nacional do Rifle ou gostar de Donald Trump, mas ignorar a prioritodas as contribuições e os avanços americanos é um total nonsense. Seria importante que, ao menos a partir de agora, tivéssemos uma posição estruturada, institucional, constante e atuante a favor do estreitamento e fortalecimento da relação Brasil-Estados Unidos. Os primeiros sinais da nova fase do Ministério das Relações Exteriores parecem muito promissores. Que a tendência prossiga e independa deste ou daquele titular do Itamaraty.
Para finalizar, vale a pena resgatar uma história que novamente tem que ver com aviões: em 1943 e 1944, Casimiro Montenegro, militar e aviador, fez uma série de visitas ao Massachusetts Institute of Technology, o MIT, com a ideia de desenvolver a Aeronáutica no Brasil. Com a colaboração do chefe do Departamento de Engenharia Aeronáutica do MIT, Richard Habert Smith, concebeu o Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), que viria a ser fundado em 1950. Como consequência direta da existência do ITA, e tendo-o como condição sine qua non, surgiu em 1969 a Embraer, das mãos de um grupo de iteanos liderado por Ozires Silva. Passados quase 50 anos, a Embraer é hoje uma das quatro maiores empresas de aviação civil do planeta, na companhia da americana Boeing, do consórcio europeu Airbus e da canadense Bombardier.
*Engenheiro de produção, doutor em engenharia pela USP, diretor executivo e consultor de gestão, é professor de liderança e comportamento organizacional do MBA executivo do Insper
segunda-feira, outubro 31, 2016
Gente 'cult' tende a ser chata e afetada em suas opiniões - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 31/10
O mundo pós-moderno em que vivemos é um prato cheio para frescuras. A palavra "frescura" pode soar um pouco estranha para quem não possui um repertório um pouco mais sofisticado em filosofia. Se isso acontece com "frescura", quanto mais com a palavra "desconstruído", que tem em sua história gente chiquérrima, como o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004). Quanto a "pós-moderno", então, nem me fale. Nada é mais chique do que algo ser pós-moderno. Voltaremos já ao que seria "pós-moderno".
Vamos por partes. Dizer que algo é uma "frescura" implica dizer que ela tem um frescor que lhe é peculiar, um certo tom de "novo", "avantgardiste", diria alguém versado em teoria da arte moderna. Portanto, sua raiz está no âmbito da natureza e da arte, ao mesmo tempo! Talvez, lá atrás, encontremos algum fenômeno a ver com mudança de estação do ano. Tal conceito também afeta qualquer teoria da moda.
Um detalhe: "frescura" sempre carrega alguma nuance de afetação. Quando algo ou alguém é "fresco", quer dizer que ele ou ela é um tanto exagerado (afetado) nas suas ações. Os mais velhos diriam: uma nota acima do necessário.
Na sua evolução semântica ("evolução semântica" quer dizer mudança de significado de uma palavra ao longo do tempo), a palavra "frescura" acabou assumindo um sentido próximo a "wannabe". O que quer dizer isso? Simples: "(to) want to be", em inglês, significa "querer ser algo","wannabe" significa "querer ser algo chique que não se é de verdade". Tipo gente que queria ser culta e por isso frequenta lugares "cult" para todo mundo pensar que é culta. Sacou? Conhece alguém assim? Aposto que sim. Gente "cult" tende a ser chata e afetada em suas opiniões.
E "descontruída"? Essa tem a ver com nossa época pós-moderna. Filósofos franceses chiques do final do século 20 se puseram a dizer (Jean-François Lyotard entre eles) que nossa época havia se cansado de "grandes narrativas". Em língua dos mortais, isso quer dizer ficar de saco cheio de muita teoria complicada e que é preciso ler muito para entender e, por isso mesmo, gastar o cérebro demais. Para os pós-modernos tudo é relativo e Shakespeare é igual a alguém batendo tambor repetidas vezes em algum recanto perdido do mundo.
Os pós-modernos começam então a misturar coisas que normalmente não iriam juntas, como bolsa Prada com pijamas no Iguatemi, paletós caros com sandálias Havaianas no Copacabana Palace e, assim, desconstruir tudo o que foi tomado como evidência antes deles. Daí chegamos a "frescuras desconstruídas" de nossa conversa de hoje.
Uma coisa que se adora desconstruir hoje em dia é a comida. Quando todo mundo acha que pode fazer comida gourmet, é melhor você se ater à comida da sua avó. Vou dar um exemplo real que me foi contado por uma amiga, recentemente. Olha só que primor de frescura (comida fresca que quer parecer inteligente e chique).
Um restaurante "top" na França. Num dado momento, é servido a ela uma "espuminha" com uma coisa escura e dura no meio do prato, completamente indecifrável. Mulher educada e com trânsito no mundo sofisticado, fica perplexa diante da dificuldade de identificar tamanha "desconstrução" do que seria muito banal, como carne, peixe, salada ou algo semelhante. Na sua modéstia típica de quem é de fato elegante, pergunta para o inteligente chef o que viria a ser aquilo.
Surpresa! Você não imaginaria a resposta, assumindo que você não seja uma dessas pessoas frescas que acham que comida deve ser inteligente.
A revelação máxima: a coisa escura era uma pedra. Pedra com espuminha. A desconstrução máxima do que seria comida: uma pedra. Nenhum animal come pedra. Mas humanos desconstruídos, sim. Hoje em dia está na moda fazer espuminha de tudo na comida. De todas as cores: vermelho, amarelo, azul, verde, marrom...
A ideia dessa comida desconstruída é que você chupe a pedra molhando ela na espuminha até secar o prato e a pedra. Alguém poderia se perguntar qual o limite da desconstrução gourmet. Que tal baratas africanas com espuminha de fezes seca?
O mundo pós-moderno em que vivemos é um prato cheio para frescuras. A palavra "frescura" pode soar um pouco estranha para quem não possui um repertório um pouco mais sofisticado em filosofia. Se isso acontece com "frescura", quanto mais com a palavra "desconstruído", que tem em sua história gente chiquérrima, como o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004). Quanto a "pós-moderno", então, nem me fale. Nada é mais chique do que algo ser pós-moderno. Voltaremos já ao que seria "pós-moderno".
Vamos por partes. Dizer que algo é uma "frescura" implica dizer que ela tem um frescor que lhe é peculiar, um certo tom de "novo", "avantgardiste", diria alguém versado em teoria da arte moderna. Portanto, sua raiz está no âmbito da natureza e da arte, ao mesmo tempo! Talvez, lá atrás, encontremos algum fenômeno a ver com mudança de estação do ano. Tal conceito também afeta qualquer teoria da moda.
Um detalhe: "frescura" sempre carrega alguma nuance de afetação. Quando algo ou alguém é "fresco", quer dizer que ele ou ela é um tanto exagerado (afetado) nas suas ações. Os mais velhos diriam: uma nota acima do necessário.
Na sua evolução semântica ("evolução semântica" quer dizer mudança de significado de uma palavra ao longo do tempo), a palavra "frescura" acabou assumindo um sentido próximo a "wannabe". O que quer dizer isso? Simples: "(to) want to be", em inglês, significa "querer ser algo","wannabe" significa "querer ser algo chique que não se é de verdade". Tipo gente que queria ser culta e por isso frequenta lugares "cult" para todo mundo pensar que é culta. Sacou? Conhece alguém assim? Aposto que sim. Gente "cult" tende a ser chata e afetada em suas opiniões.
E "descontruída"? Essa tem a ver com nossa época pós-moderna. Filósofos franceses chiques do final do século 20 se puseram a dizer (Jean-François Lyotard entre eles) que nossa época havia se cansado de "grandes narrativas". Em língua dos mortais, isso quer dizer ficar de saco cheio de muita teoria complicada e que é preciso ler muito para entender e, por isso mesmo, gastar o cérebro demais. Para os pós-modernos tudo é relativo e Shakespeare é igual a alguém batendo tambor repetidas vezes em algum recanto perdido do mundo.
Os pós-modernos começam então a misturar coisas que normalmente não iriam juntas, como bolsa Prada com pijamas no Iguatemi, paletós caros com sandálias Havaianas no Copacabana Palace e, assim, desconstruir tudo o que foi tomado como evidência antes deles. Daí chegamos a "frescuras desconstruídas" de nossa conversa de hoje.
Uma coisa que se adora desconstruir hoje em dia é a comida. Quando todo mundo acha que pode fazer comida gourmet, é melhor você se ater à comida da sua avó. Vou dar um exemplo real que me foi contado por uma amiga, recentemente. Olha só que primor de frescura (comida fresca que quer parecer inteligente e chique).
Um restaurante "top" na França. Num dado momento, é servido a ela uma "espuminha" com uma coisa escura e dura no meio do prato, completamente indecifrável. Mulher educada e com trânsito no mundo sofisticado, fica perplexa diante da dificuldade de identificar tamanha "desconstrução" do que seria muito banal, como carne, peixe, salada ou algo semelhante. Na sua modéstia típica de quem é de fato elegante, pergunta para o inteligente chef o que viria a ser aquilo.
Surpresa! Você não imaginaria a resposta, assumindo que você não seja uma dessas pessoas frescas que acham que comida deve ser inteligente.
A revelação máxima: a coisa escura era uma pedra. Pedra com espuminha. A desconstrução máxima do que seria comida: uma pedra. Nenhum animal come pedra. Mas humanos desconstruídos, sim. Hoje em dia está na moda fazer espuminha de tudo na comida. De todas as cores: vermelho, amarelo, azul, verde, marrom...
A ideia dessa comida desconstruída é que você chupe a pedra molhando ela na espuminha até secar o prato e a pedra. Alguém poderia se perguntar qual o limite da desconstrução gourmet. Que tal baratas africanas com espuminha de fezes seca?
O direito de greve - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 31/10
O viés populista no trato de questões trabalhistas desde Getúlio Vargas não tem contribuído para o entendimento claro do significado de serviço público
O direito de greve definido pela Constituição de 1988 foi regulamentado no ano seguinte pela Lei 7.783, no que diz respeito ao setor privado, mas desde então o Poder Legislativo tem fugido à responsabilidade de regulamentar a greve também no setor público. Consequentemente, tem cabido ao Poder Judiciário, ao longo de quase três décadas, decidir sobre questões relativas ao direito de greve de funcionários do governo. Foi o que fez mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) ao estabelecer, em sessão plenária realizada na quinta-feira passada, por 6 a 4, que servidores públicos em greve deverão ter os dias parados descontados de seus salários. Fica aberta, porém, a possibilidade de pagamento dos dias não trabalhados, desde que haja acordo entre as partes ou que o motivo da greve tenha sido o não pagamento de salário.
Os congressistas, geralmente movidos por uma noção precária das responsabilidades implícitas em seus mandatos de representação popular, têm verdadeira aversão a se expor no debate público de questões controvertidas que possam contrariar seu eleitorado. Não é por outra razão que existe um sólido consenso sobre as “enormes dificuldades” que o governo terá que enfrentar para aprovar no Parlamento propostas essenciais, mas impopulares, como a reforma da Previdência. Os ditos representantes do povo preferem se omitir e, com a cabeça enterrada na areia e o resto da anatomia na clássica posição das emas, ainda se julgam no direito de reclamar de que o STF “usurpa” atribuições do Congresso Nacional.
A decisão dos ministros togados resolve uma questão pendente há 10 anos, quando foi apresentado recurso contra decisão do Tribunal de Justiça fluminense que impediu o desconto no pagamento dos dias parados de grevistas de uma fundação estatal. Só no ano passado o relator do processo no STF, ministro Dias Toffoli, apresentou seu relatório, favorável ao desconto e agora aprovado.
A decisão coloca em foco, além do direito ou não ao recebimento de pagamento durante greve, o conceito de serviço público. O viés populista no trato de questões trabalhistas desde Getúlio Vargas não tem contribuído para o entendimento claro do significado de serviço público. O servidor público, por definição explicitada no próprio título, se distingue do trabalhador no setor privado pela responsabilidade social inextricavelmente vinculada à sua condição. Essa responsabilidade é compensada por privilégios que o trabalhador comum não tem: estabilidade no emprego, que deriva do fato de ser conquistado por concurso público, e aposentadoria integral, esta questionada no âmbito da reforma geral da Previdência Social. Não tem sentido o servidor público reivindicar mais um privilégio, o de não ter descontados de seu salário os dias dedicados a fazer greve.
Servir ao público, o que significa servir ao País, implica também não permitir que interesses corporativos se sobreponham ao direito que o conjunto dos cidadãos tem de exigir que lhe sejam prestados os serviços pelos quais paga por meio de taxas e impostos. É por esse motivo que o direito de greve é negado aos servidores públicos na maior parte do mundo, por exemplo, na Inglaterra, Alemanha, Japão e Estados Unidos – neste com exceção de apenas 10 de seus 50 Estados federados. E cabe ainda observar que no Brasil o direito de greve é garantido apenas a servidores civis de categorias não envolvidas em atividades essenciais à segurança da população.
Como era de esperar, os sindicalistas manipulados pelo lulopetismo reagiram mal à decisão do STF. Entidade ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal manifestou-se em tom de bravata: “Nossa categoria não é de recuar com esse tipo de intimidação”. Entendem esses sindicalistas que a Suprema Corte faz parte da conspiração contra as manifestações antigovernistas que estão sendo planejadas como preparação para uma greve geral em novembro.
Como nota hilária desse episódio, em sintonia com o sentimento “popular” o ministro Lewandowski, voto vencido no STF, afirmou ter “muita resistência a estabelecer condições unilaterais para o exercício de um direito constitucional”. A julgar pelo que engendrou no último ato do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, não parece.
O viés populista no trato de questões trabalhistas desde Getúlio Vargas não tem contribuído para o entendimento claro do significado de serviço público
O direito de greve definido pela Constituição de 1988 foi regulamentado no ano seguinte pela Lei 7.783, no que diz respeito ao setor privado, mas desde então o Poder Legislativo tem fugido à responsabilidade de regulamentar a greve também no setor público. Consequentemente, tem cabido ao Poder Judiciário, ao longo de quase três décadas, decidir sobre questões relativas ao direito de greve de funcionários do governo. Foi o que fez mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) ao estabelecer, em sessão plenária realizada na quinta-feira passada, por 6 a 4, que servidores públicos em greve deverão ter os dias parados descontados de seus salários. Fica aberta, porém, a possibilidade de pagamento dos dias não trabalhados, desde que haja acordo entre as partes ou que o motivo da greve tenha sido o não pagamento de salário.
Os congressistas, geralmente movidos por uma noção precária das responsabilidades implícitas em seus mandatos de representação popular, têm verdadeira aversão a se expor no debate público de questões controvertidas que possam contrariar seu eleitorado. Não é por outra razão que existe um sólido consenso sobre as “enormes dificuldades” que o governo terá que enfrentar para aprovar no Parlamento propostas essenciais, mas impopulares, como a reforma da Previdência. Os ditos representantes do povo preferem se omitir e, com a cabeça enterrada na areia e o resto da anatomia na clássica posição das emas, ainda se julgam no direito de reclamar de que o STF “usurpa” atribuições do Congresso Nacional.
A decisão dos ministros togados resolve uma questão pendente há 10 anos, quando foi apresentado recurso contra decisão do Tribunal de Justiça fluminense que impediu o desconto no pagamento dos dias parados de grevistas de uma fundação estatal. Só no ano passado o relator do processo no STF, ministro Dias Toffoli, apresentou seu relatório, favorável ao desconto e agora aprovado.
A decisão coloca em foco, além do direito ou não ao recebimento de pagamento durante greve, o conceito de serviço público. O viés populista no trato de questões trabalhistas desde Getúlio Vargas não tem contribuído para o entendimento claro do significado de serviço público. O servidor público, por definição explicitada no próprio título, se distingue do trabalhador no setor privado pela responsabilidade social inextricavelmente vinculada à sua condição. Essa responsabilidade é compensada por privilégios que o trabalhador comum não tem: estabilidade no emprego, que deriva do fato de ser conquistado por concurso público, e aposentadoria integral, esta questionada no âmbito da reforma geral da Previdência Social. Não tem sentido o servidor público reivindicar mais um privilégio, o de não ter descontados de seu salário os dias dedicados a fazer greve.
Servir ao público, o que significa servir ao País, implica também não permitir que interesses corporativos se sobreponham ao direito que o conjunto dos cidadãos tem de exigir que lhe sejam prestados os serviços pelos quais paga por meio de taxas e impostos. É por esse motivo que o direito de greve é negado aos servidores públicos na maior parte do mundo, por exemplo, na Inglaterra, Alemanha, Japão e Estados Unidos – neste com exceção de apenas 10 de seus 50 Estados federados. E cabe ainda observar que no Brasil o direito de greve é garantido apenas a servidores civis de categorias não envolvidas em atividades essenciais à segurança da população.
Como era de esperar, os sindicalistas manipulados pelo lulopetismo reagiram mal à decisão do STF. Entidade ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal manifestou-se em tom de bravata: “Nossa categoria não é de recuar com esse tipo de intimidação”. Entendem esses sindicalistas que a Suprema Corte faz parte da conspiração contra as manifestações antigovernistas que estão sendo planejadas como preparação para uma greve geral em novembro.
Como nota hilária desse episódio, em sintonia com o sentimento “popular” o ministro Lewandowski, voto vencido no STF, afirmou ter “muita resistência a estabelecer condições unilaterais para o exercício de um direito constitucional”. A julgar pelo que engendrou no último ato do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, não parece.
Incra, nova fase - DENIS LERRER ROSENFIELD
ESTADÃO - 31/10
A realidade mudou completamente, abre-se o caminho para a pacificação nacional
O noticiário político está tão voltado para questões urgentes – como a aprovação da PEC 241, do teto do gastos públicos, e a reforma da Previdência – que iniciativas importantes terminam por ser relegadas a segundo plano. Nesse caso se encontram mudanças importantes no Plano Nacional de Reforma Agrária que estão sendo implementadas, mostrando outra face do governo Temer. A reforma fiscal tem, aqui, uma contraparte essencialmente social.
O presidente tem dado orientações explícitas a esse aspecto social de sua atuação, enfatizando todo um novo processo de aprimoramento dos instrumentos de obtenção de terras, de titulação dos assentamentos, de novo processo de seleção dos beneficiários e de regularização de terras cultivadas, sem a anuência do Incra. No dizer do presidente desse órgão estatal, Leonardo Góes, “o governo federal busca dar maior segurança jurídica àqueles que têm terra e produzem, além de promover o acesso à terra a quem quer produzir alimentos”.
Em pouco tempo será publicada uma medida provisória (MP) voltada para o equacionamento dessas questões. Ela se caracteriza por seu perfil eminentemente técnico, avesso a problemas de ordem ideológica. Só esse ponto já seria suficiente para definir a nova gestão do Incra.
Em vários momentos das administrações anteriores, com a ressalva da gestão Guedes, esse importante órgão deixou de ser propriamente um órgão de Estado para se tornar um instrumento dos movimentos sociais. Agora a orientação técnica é predominante com um sentido de Estado.
A questão da titulação é, certamente, uma das mais importantes em pauta. Uma particularidade dos assentamentos da reforma agrária, até aqui, consistia no fato de serem tutelados pelos movimentos sociais, que ali fincaram um dos pilares de sua militância e de recrutamento de membros para invasões.
Um assentado é, assim, não só tutelado pelo Estado, mas, principalmente, pelo MST. Não são produtores autônomos, mas objeto de uma política assistencialista, voltada para a criação de uma clientela política. Também não são propriamente agricultores familiares, por não deterem a propriedade de suas terras.
Com a titulação abre-se a possibilidade de se tornarem verdadeiramente agricultores familiares, com melhores condições de obtenção de crédito, de compra de maquinário e de assistência técnica. Um agricultor familiar entra numa relação de mercado, tem melhores condições de trabalho e de educação para seus filhos, vislumbrando-se um futuro melhor.
Contraste-se, por exemplo, a condição dos agricultores familiares no sistema integrado de produção no Sul do País, envolvendo as cadeias produtivas do tabaco (pioneira), de aves e de suínos e se estendendo a outros setores produtivos, com a dos assentados. Uns são prósperos, outros vivem em favelas rurais.
Muitos assentamentos têm agricultores produtivos, que almejam tornar-se familiares, mas se veem impedidos por não poderem adquirir terras de seus vizinhos que não produzem e vivem da assistência estatal. Pelos critérios atuais, ao cultivarem as terras desses seus vizinhos, que podem tê-las cedido mediante um contrato informal de arrendamento ou de compra e venda, eles se encontram em situação irregular. Aliás, ambos estão, por não serem proprietários de suas respectivas terras. São tutelados, não têm liberdade de escolha.
Pela nova MP, porém, poderão regularizar sua situação, aumentando a produção de alimentos, e a terra pode ser cultivada por quem quer realmente produzir. É urgente este novo reordenamento fundiário, corrigindo aquelas anomalias, ainda defendidas por movimentos sociais ideologicamente obtusos.
A nova seleção de beneficiários almeja ser técnica e transparente, deixando de ser um instrumento do MST, que tinha a função de escolher os beneficiários, aumentando assim a sua militância. Várias denúncias, aliás, têm aparecido envolvendo pessoas que já são proprietárias, funcionários públicos, militantes, etc.
Incra. Chegou a impedir novos assentamentos para que essas anomalias fossem devidamente corrigidas. O descalabro era enorme, produzido, principalmente, pelo viés ideológico e político-partidário que presidia o processo seletivo. Haverá, agora, um papel mais importante das prefeituras e, sobretudo, maior divulgação de todo esse processo.
Outro ponto diz respeito à obtenção de terras para a regularização fundiária, por exemplo, na Amazônia Legal, ou para os assentamentos da reforma agrária. Há a necessidade de acelerar os trâmites administrativos, para tudo se resolver o mais rapidamente possível.
Imagine-se a situação de um proprietário que tem a sua terra invadida enquanto decisões judiciais de reintegração de posse não são cumpridas. O Pará é um Estado que vive enorme crise, numa situação que poderíamos designar como terra sem lei.
Um tal mecanismo de obtenção de terras, a preços vigentes e com pagamento em dinheiro – e não necessariamente mediante Títulos da Dívida Agrária –, seria um instrumento que poderia facilitar o equacionamento de tais conflitos, além, evidentemente, de maior respeito à lei, não seguida em vários Estados do País. Seriam compras nas condições de uma economia de mercado.
O campo brasileiro foi, nos governos petistas, um terreno privilegiado de conflitos, como se tivéssemos aqui uma “luta de classes” que terminaria com a vitória “revolucionária” dos ditos “movimentos sociais”. O setor rural, a despeito dos ideólogos esquerdistas, foi, porém, objeto de uma verdadeira reforma, que tornou o Brasil um dos maiores produtores mundiais de alimentos.
A realidade mudou completamente nas últimas décadas. Cabe, agora, uma nova legislação e uma nova política que reflitam e deem conta desta nova situação. O caminho abre-se à pacificação nacional.
*Professor de filosofia na UFRGS; e-mail: denisrosenfield@terra.com.br
A realidade mudou completamente, abre-se o caminho para a pacificação nacional
O noticiário político está tão voltado para questões urgentes – como a aprovação da PEC 241, do teto do gastos públicos, e a reforma da Previdência – que iniciativas importantes terminam por ser relegadas a segundo plano. Nesse caso se encontram mudanças importantes no Plano Nacional de Reforma Agrária que estão sendo implementadas, mostrando outra face do governo Temer. A reforma fiscal tem, aqui, uma contraparte essencialmente social.
O presidente tem dado orientações explícitas a esse aspecto social de sua atuação, enfatizando todo um novo processo de aprimoramento dos instrumentos de obtenção de terras, de titulação dos assentamentos, de novo processo de seleção dos beneficiários e de regularização de terras cultivadas, sem a anuência do Incra. No dizer do presidente desse órgão estatal, Leonardo Góes, “o governo federal busca dar maior segurança jurídica àqueles que têm terra e produzem, além de promover o acesso à terra a quem quer produzir alimentos”.
Em pouco tempo será publicada uma medida provisória (MP) voltada para o equacionamento dessas questões. Ela se caracteriza por seu perfil eminentemente técnico, avesso a problemas de ordem ideológica. Só esse ponto já seria suficiente para definir a nova gestão do Incra.
Em vários momentos das administrações anteriores, com a ressalva da gestão Guedes, esse importante órgão deixou de ser propriamente um órgão de Estado para se tornar um instrumento dos movimentos sociais. Agora a orientação técnica é predominante com um sentido de Estado.
A questão da titulação é, certamente, uma das mais importantes em pauta. Uma particularidade dos assentamentos da reforma agrária, até aqui, consistia no fato de serem tutelados pelos movimentos sociais, que ali fincaram um dos pilares de sua militância e de recrutamento de membros para invasões.
Um assentado é, assim, não só tutelado pelo Estado, mas, principalmente, pelo MST. Não são produtores autônomos, mas objeto de uma política assistencialista, voltada para a criação de uma clientela política. Também não são propriamente agricultores familiares, por não deterem a propriedade de suas terras.
Com a titulação abre-se a possibilidade de se tornarem verdadeiramente agricultores familiares, com melhores condições de obtenção de crédito, de compra de maquinário e de assistência técnica. Um agricultor familiar entra numa relação de mercado, tem melhores condições de trabalho e de educação para seus filhos, vislumbrando-se um futuro melhor.
Contraste-se, por exemplo, a condição dos agricultores familiares no sistema integrado de produção no Sul do País, envolvendo as cadeias produtivas do tabaco (pioneira), de aves e de suínos e se estendendo a outros setores produtivos, com a dos assentados. Uns são prósperos, outros vivem em favelas rurais.
Muitos assentamentos têm agricultores produtivos, que almejam tornar-se familiares, mas se veem impedidos por não poderem adquirir terras de seus vizinhos que não produzem e vivem da assistência estatal. Pelos critérios atuais, ao cultivarem as terras desses seus vizinhos, que podem tê-las cedido mediante um contrato informal de arrendamento ou de compra e venda, eles se encontram em situação irregular. Aliás, ambos estão, por não serem proprietários de suas respectivas terras. São tutelados, não têm liberdade de escolha.
Pela nova MP, porém, poderão regularizar sua situação, aumentando a produção de alimentos, e a terra pode ser cultivada por quem quer realmente produzir. É urgente este novo reordenamento fundiário, corrigindo aquelas anomalias, ainda defendidas por movimentos sociais ideologicamente obtusos.
A nova seleção de beneficiários almeja ser técnica e transparente, deixando de ser um instrumento do MST, que tinha a função de escolher os beneficiários, aumentando assim a sua militância. Várias denúncias, aliás, têm aparecido envolvendo pessoas que já são proprietárias, funcionários públicos, militantes, etc.
Incra. Chegou a impedir novos assentamentos para que essas anomalias fossem devidamente corrigidas. O descalabro era enorme, produzido, principalmente, pelo viés ideológico e político-partidário que presidia o processo seletivo. Haverá, agora, um papel mais importante das prefeituras e, sobretudo, maior divulgação de todo esse processo.
Outro ponto diz respeito à obtenção de terras para a regularização fundiária, por exemplo, na Amazônia Legal, ou para os assentamentos da reforma agrária. Há a necessidade de acelerar os trâmites administrativos, para tudo se resolver o mais rapidamente possível.
Imagine-se a situação de um proprietário que tem a sua terra invadida enquanto decisões judiciais de reintegração de posse não são cumpridas. O Pará é um Estado que vive enorme crise, numa situação que poderíamos designar como terra sem lei.
Um tal mecanismo de obtenção de terras, a preços vigentes e com pagamento em dinheiro – e não necessariamente mediante Títulos da Dívida Agrária –, seria um instrumento que poderia facilitar o equacionamento de tais conflitos, além, evidentemente, de maior respeito à lei, não seguida em vários Estados do País. Seriam compras nas condições de uma economia de mercado.
O campo brasileiro foi, nos governos petistas, um terreno privilegiado de conflitos, como se tivéssemos aqui uma “luta de classes” que terminaria com a vitória “revolucionária” dos ditos “movimentos sociais”. O setor rural, a despeito dos ideólogos esquerdistas, foi, porém, objeto de uma verdadeira reforma, que tornou o Brasil um dos maiores produtores mundiais de alimentos.
A realidade mudou completamente nas últimas décadas. Cabe, agora, uma nova legislação e uma nova política que reflitam e deem conta desta nova situação. O caminho abre-se à pacificação nacional.
*Professor de filosofia na UFRGS; e-mail: denisrosenfield@terra.com.br
Resumo da ópera - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 31/10
RIO DE JANEIRO - Bob Dylan foi o 385º Nobel ganho pelos EUA desde a instituição do prêmio, em 1901. Os EUA são, disparados, o país que mais levou o Nobel, mais do que os conquistados pelos cinco países seguintes —Reino Unido, Alemanha, França, Suécia e Rússia— somados. Claro que, se até Bob Dylan já ganhou um Nobel, pode haver outros americanos duvidosos nas demais categorias. Mas é inútil. Eles são tantos, em física, química, medicina, literatura, economia e até no da paz, que, na maioria dos casos, o Nobel deve ter acertado.
E não é só no Nobel que os americanos exorbitam. Segundo um ranking respeitável, 13 das 15 melhores universidades do mundo estão hoje nos EUA - as outras duas, Oxford e Cambridge, na Inglaterra, são a sexta e a sétima. A primeira, Harvard, em Massachusetts, foi fundada em 1636, quando os EUA, ainda colônia, eram habitados quase que exclusivamente por búfalos.
Na área das invenções em qualquer departamento, é duro competir com eles. De 1830 para cá, metade do que se apresentou de importante no mundo saiu dos americanos —do alfinete de fralda às impressoras rotativas, a metralhadora, a calça jeans, a gilete, o arranha-céu, a reportagem, o e-mail, o mouse, o touch screen. Uma ideia levava à outra: o mesmo sujeito que inventou o chicletes, Thomas Adams, inventou a máquina para vendê-lo, bastando enfiar uma moeda. O inventor da cadeira elétrica foi um dentista, Alfred Southwick, que teve um cliente eletrocutado por acidente em sua cadeira no consultório. E por aí vai. O que eles não inventaram, como a lâmpada elétrica, o cinema e o avião, apoderaram-se.
Sem falar no que devemos a seus humanistas, juristas, médicos, atletas, músicos, filantropos.
O incrível é tudo isso ter acontecido para, de repente, a vida se resumir a Hillary Clinton vs. Donald Trump.
RIO DE JANEIRO - Bob Dylan foi o 385º Nobel ganho pelos EUA desde a instituição do prêmio, em 1901. Os EUA são, disparados, o país que mais levou o Nobel, mais do que os conquistados pelos cinco países seguintes —Reino Unido, Alemanha, França, Suécia e Rússia— somados. Claro que, se até Bob Dylan já ganhou um Nobel, pode haver outros americanos duvidosos nas demais categorias. Mas é inútil. Eles são tantos, em física, química, medicina, literatura, economia e até no da paz, que, na maioria dos casos, o Nobel deve ter acertado.
E não é só no Nobel que os americanos exorbitam. Segundo um ranking respeitável, 13 das 15 melhores universidades do mundo estão hoje nos EUA - as outras duas, Oxford e Cambridge, na Inglaterra, são a sexta e a sétima. A primeira, Harvard, em Massachusetts, foi fundada em 1636, quando os EUA, ainda colônia, eram habitados quase que exclusivamente por búfalos.
Na área das invenções em qualquer departamento, é duro competir com eles. De 1830 para cá, metade do que se apresentou de importante no mundo saiu dos americanos —do alfinete de fralda às impressoras rotativas, a metralhadora, a calça jeans, a gilete, o arranha-céu, a reportagem, o e-mail, o mouse, o touch screen. Uma ideia levava à outra: o mesmo sujeito que inventou o chicletes, Thomas Adams, inventou a máquina para vendê-lo, bastando enfiar uma moeda. O inventor da cadeira elétrica foi um dentista, Alfred Southwick, que teve um cliente eletrocutado por acidente em sua cadeira no consultório. E por aí vai. O que eles não inventaram, como a lâmpada elétrica, o cinema e o avião, apoderaram-se.
Sem falar no que devemos a seus humanistas, juristas, médicos, atletas, músicos, filantropos.
O incrível é tudo isso ter acontecido para, de repente, a vida se resumir a Hillary Clinton vs. Donald Trump.
Mau exemplo dos derrotados nas eleições - VALDO CRUZ
FOLHA DE SP - 31/10
BRASÍLIA - Talvez nada simbolize melhor a situação dos derrotados nesta eleição municipal de 2016 do que a decisão dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff de não votarem no segundo turno. O primeiro, pela idade, não precisava ir. A segunda justificou a ausência.
Numa eleição de elevada abstenção, uma forma de protesto e desencanto do eleitor com a política, os dois petistas deram um mau exemplo. Deles esperava-se o contrário, o de mostrar a importância de uma eleição. Decidiram desprestigiá-la.
Os dois têm lá seus motivos para não terem comparecido às suas seções eleitorais em São Bernardo do Campo e Porto Alegre. Seus candidatos ficaram de fora do segundo turno. Mas isso não seria, com certeza, o que eles defenderiam se ainda estivessem no comando do país.
Enquanto o PT de Lula e Dilma sai como o grande derrotado da eleição municipal, o PSDB, que perdeu a eleição presidencial para a petista, desponta com o principal vitorioso.
No ninho tucano, o segundo turno reforçou a posição de Geraldo Alckmin. Ele elegeu João Doria no primeiro turno em São Paulo e derrotou o PT no Grande ABC, berço político do Partido dos Trabalhadores.
Já seu principal opositor dentro do PSDB amargou nova derrota. Aécio Neves não elegeu seu candidato, João Leite, prefeito de Belo Horizonte. Para quem era considerado imbatível no seu Estado natal, o novo revés não ajuda nem um pouco.
Daí que, hoje, Alckmin ganha pontos na disputa interna para ser o candidato tucano a presidente em 2018. Em situação privilegiada. O PSDB seguirá na aliança de Temer, apoiando medidas até impopulares, mas poderá desembarcar lá na frente.
Já o presidente Temer não tem do que reclamar. Seus aliados ganharam a eleição. O que pode ajudar nas votações de suas medidas no Congresso. Se reverter a crise econômica, pode até ser o que diz que não será, candidato. Mas temos de esperar a Lava Jato, que tudo pode mudar.
BRASÍLIA - Talvez nada simbolize melhor a situação dos derrotados nesta eleição municipal de 2016 do que a decisão dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff de não votarem no segundo turno. O primeiro, pela idade, não precisava ir. A segunda justificou a ausência.
Numa eleição de elevada abstenção, uma forma de protesto e desencanto do eleitor com a política, os dois petistas deram um mau exemplo. Deles esperava-se o contrário, o de mostrar a importância de uma eleição. Decidiram desprestigiá-la.
Os dois têm lá seus motivos para não terem comparecido às suas seções eleitorais em São Bernardo do Campo e Porto Alegre. Seus candidatos ficaram de fora do segundo turno. Mas isso não seria, com certeza, o que eles defenderiam se ainda estivessem no comando do país.
Enquanto o PT de Lula e Dilma sai como o grande derrotado da eleição municipal, o PSDB, que perdeu a eleição presidencial para a petista, desponta com o principal vitorioso.
No ninho tucano, o segundo turno reforçou a posição de Geraldo Alckmin. Ele elegeu João Doria no primeiro turno em São Paulo e derrotou o PT no Grande ABC, berço político do Partido dos Trabalhadores.
Já seu principal opositor dentro do PSDB amargou nova derrota. Aécio Neves não elegeu seu candidato, João Leite, prefeito de Belo Horizonte. Para quem era considerado imbatível no seu Estado natal, o novo revés não ajuda nem um pouco.
Daí que, hoje, Alckmin ganha pontos na disputa interna para ser o candidato tucano a presidente em 2018. Em situação privilegiada. O PSDB seguirá na aliança de Temer, apoiando medidas até impopulares, mas poderá desembarcar lá na frente.
Já o presidente Temer não tem do que reclamar. Seus aliados ganharam a eleição. O que pode ajudar nas votações de suas medidas no Congresso. Se reverter a crise econômica, pode até ser o que diz que não será, candidato. Mas temos de esperar a Lava Jato, que tudo pode mudar.
A reforma trabalhista no STF - EDUARDO PASTORE E LUCIANA FREIRE
O Globo - 31/10
Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que as partes têm, sim, legitimidade e capacidade de decidir o que é melhor para ambas
Em agosto último, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso decidiu questão importante para o Direito do Trabalho. Estamos falando aqui da discussão sobre a prevalência do que é negociado sobre a lei e aquilo que, para o Direito do Trabalho, é sagrado: nada pode se sobrepor à lei, mesmo que as partes (sindicatos) negociem legitima e livremente seus interesses.
O caso analisado pelo ministro Luís Roberto Barroso diz respeito a um empregado que aderiu a um plano de demissão incentivada, negociado entre seu sindicato e o sindicato patronal. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) anulou o acordo, alegando que o empregado, ainda que representado por seu sindicato, não poderia ter dado quitação plena de direitos.
E como decidiu Barroso sobre o caso? Fundamentou seu argumento alegando que o princípio da autonomia coletiva dos sindicatos garante que o trabalhador não sofra qualquer lesão a seu direito, justamente porque seu sindicato o representa coletivamente, assegurando que não haverá pressão por parte da empresa para que faça o que não deseja fazer.
Com tais argumentos, Barroso ratificou a validade do termo de quitação plena do plano de demissão incentivada, privilegiando o princípio da lealdade negocial, o princípio da vontade coletiva, contrariando o entendimento do TST. Ou seja, elevou ao grau máximo o princípio da boa-fé da negociação coletiva, afirmando que as partes têm, sim, legitimidade e capacidade de decidir o que é melhor para ambas.
Outro caso, parecido com este, também merece reflexão. Trata-se do chamado princípio da ultratividade. De acordo com o TST, os direitos que os sindicatos negociam em nome de seus empregados, por meio de acordo ou convenção coletiva, incorporam-se automaticamente no contrato do trabalhador. A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino questionou junto ao STF esta premissa, alegando que o TST não poderia decidir dessa forma, uma vez que não há lei permitindo que assim agisse. Alegou ainda que o TST violou o princípio da separação dos poderes, uma vez que legislou. E como decidiu o ministro Gilmar Mendes no caso? Considerou que o TST praticou uma ilegalidade, que ainda invadiu a competência do Poder Legislativo e que nem a Constituição Federal permitiria que o TST decidisse de tal modo.
Em outro caso, o ministro Teori Zavascki (STF) decidiu que, através de negociação coletiva, a empresa pode compensar com outros benefícios o tempo que o empregado gasta para ir e voltar ao trabalho, em vez de pagá-lo em dinheiro, como entende e determina o Tribunal Superior do Trabalho.
Eis o Supremo Tribunal Federal mostrando como se faz a reforma trabalhista, com segurança jurídica, bom senso e valorizando o princípio da autonomia da vontade na negociação coletiva. Parabéns, STF! Os votos dos ministros foram magistrais.
Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que as partes têm, sim, legitimidade e capacidade de decidir o que é melhor para ambas
Em agosto último, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso decidiu questão importante para o Direito do Trabalho. Estamos falando aqui da discussão sobre a prevalência do que é negociado sobre a lei e aquilo que, para o Direito do Trabalho, é sagrado: nada pode se sobrepor à lei, mesmo que as partes (sindicatos) negociem legitima e livremente seus interesses.
O caso analisado pelo ministro Luís Roberto Barroso diz respeito a um empregado que aderiu a um plano de demissão incentivada, negociado entre seu sindicato e o sindicato patronal. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) anulou o acordo, alegando que o empregado, ainda que representado por seu sindicato, não poderia ter dado quitação plena de direitos.
E como decidiu Barroso sobre o caso? Fundamentou seu argumento alegando que o princípio da autonomia coletiva dos sindicatos garante que o trabalhador não sofra qualquer lesão a seu direito, justamente porque seu sindicato o representa coletivamente, assegurando que não haverá pressão por parte da empresa para que faça o que não deseja fazer.
Com tais argumentos, Barroso ratificou a validade do termo de quitação plena do plano de demissão incentivada, privilegiando o princípio da lealdade negocial, o princípio da vontade coletiva, contrariando o entendimento do TST. Ou seja, elevou ao grau máximo o princípio da boa-fé da negociação coletiva, afirmando que as partes têm, sim, legitimidade e capacidade de decidir o que é melhor para ambas.
Outro caso, parecido com este, também merece reflexão. Trata-se do chamado princípio da ultratividade. De acordo com o TST, os direitos que os sindicatos negociam em nome de seus empregados, por meio de acordo ou convenção coletiva, incorporam-se automaticamente no contrato do trabalhador. A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino questionou junto ao STF esta premissa, alegando que o TST não poderia decidir dessa forma, uma vez que não há lei permitindo que assim agisse. Alegou ainda que o TST violou o princípio da separação dos poderes, uma vez que legislou. E como decidiu o ministro Gilmar Mendes no caso? Considerou que o TST praticou uma ilegalidade, que ainda invadiu a competência do Poder Legislativo e que nem a Constituição Federal permitiria que o TST decidisse de tal modo.
Em outro caso, o ministro Teori Zavascki (STF) decidiu que, através de negociação coletiva, a empresa pode compensar com outros benefícios o tempo que o empregado gasta para ir e voltar ao trabalho, em vez de pagá-lo em dinheiro, como entende e determina o Tribunal Superior do Trabalho.
Eis o Supremo Tribunal Federal mostrando como se faz a reforma trabalhista, com segurança jurídica, bom senso e valorizando o princípio da autonomia da vontade na negociação coletiva. Parabéns, STF! Os votos dos ministros foram magistrais.
Eduardo Pastore e Luciana Freire são advogados
Não há como recuar - PAULO GUEDES
O Globo - 31/10
Avança o esclarecimento do fenômeno da corrupção sistêmica. Em meio às chamas, a precária situação fiscal exige reformas urgentes
É decididamente uma corrida contra o tempo. A aprovação da proposta que limita a expansão de gastos foi, embora decisiva, apenas um passo inicial rumo à recuperação das finanças públicas. É fundamental que o governo encaminhe o quanto antes ao Congresso a reforma da Previdência. A urgência dessa agenda é óbvia. As chamas da operação Lava-Jato ameaçam incendiar o Congresso. Avançam as delações premiadas da Odebrecht. “Pela extensão da colaboração, haverá grande turbulência. Espero que o Brasil sobreviva”, teria dito o juiz Sérgio Moro ante o andamento das investigações. Estariam envolvidas nossas principais lideranças políticas. E não pode ser descartada uma colaboração do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha para o esclarecimento do inegável fenômeno da corrupção sistêmica. Estaria também ameaçado pela iminente turbulência o presidente do Congresso, Renan Calheiros?
Registra Fernando Gabeira, em sua coluna no GLOBO deste domingo: “Hoje sabemos que ordenou varreduras em pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Agora ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se a seus jagunços. E que o espaço do Senado seja santuário para qualquer quadrilha que tenha um parlamentar como membro. Sob investigação em 12 processos diferentes, para ele o Supremo Tribunal Federal é apenas o cemitério de seus processos. Negar à Polícia Federal o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar parece absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para bandidos eleitos. É justo cometer crimes em série sob o escudo de um mandato parlamentar?”
A urgência das reformas econômicas decorre ainda da precariedade de nossos fundamentos fiscais. O Banco Central demonstrou prudência iniciando de forma moderada o processo de redução de juros. É o reconhecimento de que está baseado até agora em expectativas o início do círculo virtuoso de queda da inflação, recuperação das finanças públicas, retomada do crescimento e da criação de empregos. Em meio às chamas, não há como recuar.
Avança o esclarecimento do fenômeno da corrupção sistêmica. Em meio às chamas, a precária situação fiscal exige reformas urgentes
É decididamente uma corrida contra o tempo. A aprovação da proposta que limita a expansão de gastos foi, embora decisiva, apenas um passo inicial rumo à recuperação das finanças públicas. É fundamental que o governo encaminhe o quanto antes ao Congresso a reforma da Previdência. A urgência dessa agenda é óbvia. As chamas da operação Lava-Jato ameaçam incendiar o Congresso. Avançam as delações premiadas da Odebrecht. “Pela extensão da colaboração, haverá grande turbulência. Espero que o Brasil sobreviva”, teria dito o juiz Sérgio Moro ante o andamento das investigações. Estariam envolvidas nossas principais lideranças políticas. E não pode ser descartada uma colaboração do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha para o esclarecimento do inegável fenômeno da corrupção sistêmica. Estaria também ameaçado pela iminente turbulência o presidente do Congresso, Renan Calheiros?
Registra Fernando Gabeira, em sua coluna no GLOBO deste domingo: “Hoje sabemos que ordenou varreduras em pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Agora ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se a seus jagunços. E que o espaço do Senado seja santuário para qualquer quadrilha que tenha um parlamentar como membro. Sob investigação em 12 processos diferentes, para ele o Supremo Tribunal Federal é apenas o cemitério de seus processos. Negar à Polícia Federal o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar parece absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para bandidos eleitos. É justo cometer crimes em série sob o escudo de um mandato parlamentar?”
A urgência das reformas econômicas decorre ainda da precariedade de nossos fundamentos fiscais. O Banco Central demonstrou prudência iniciando de forma moderada o processo de redução de juros. É o reconhecimento de que está baseado até agora em expectativas o início do círculo virtuoso de queda da inflação, recuperação das finanças públicas, retomada do crescimento e da criação de empregos. Em meio às chamas, não há como recuar.
O que de fato importa - RICARDO NOBLAT
O Globo - 31/10
“Não podemos jamais cair na praga maldita da vingança. O processo eleitoral termina aqui”
“Não podemos jamais cair na praga maldita da vingança. O processo eleitoral termina aqui”
MARCELO CRIVELLA, prefeito eleito do Rio
Nada vai superar o que a Lava-Jato nos reserva. De volta à Lava-Jato, que há dois anos e meio não sai de cena, mas que nos últimos quatro meses dividiu o protagonismo com a Olimpíada, a Paraolimpíada e, por último, as eleições municipais, encerradas ontem com a mais avassaladora derrota já colhida pelo PT em todos os seus anos de vida, a vitória do PSDB nas maiores cidades do país e o fortalecimento, por ora, do governo de Michel Temer.
TUDO O MAIS de previsível que possa acontecer pelo menos nos próximos seis meses dificilmente será capaz de superar o que a Lava-Jato nos reserva em termos de fortes emoções. O destino de Lula, por exemplo, será definido até o fim do ano ou início de 2017. O juiz Sérgio Moro, na segunda quinzena de novembro, tomará o depoimento de quem delatou Lula por corrupção.
EM SEGUIDA, a confirmar-se o que o próprio PT espera, Moro condenará Lula. Poderá mandar prendê-lo ou não. Se não prender, Lula aguardará em liberdade a decisão posterior do Tribunal Federal de Recursos com sede em Porto Alegre. Até aqui, o tribunal avalizou ou agravou as sentenças de Moro. Caso isso se repita, Lula deverá ser preso e, como ficha-suja, não disputará a eleição de 2018.
A DELAÇÃO DE Marcelo Odebrecht e de cerca de 70 executivos da maior empreiteira do país ainda não foi fechada, mas falta pouco para que seja. Apontada desde já como “a delação do fim do mundo” e, certamente, a maior de todos os tempos aqui ou em qualquer lugar, ela parece destinada a varrer como um tsunami o que ainda resta de pé do atual e carcomido sistema político.
VIDA INGRATA! Lula — sempre ele — será alvo da delação daqueles a quem tanto ajudou como presidente da República e, depois, como lobista internacional. Nada de pessoal, é claro. Foi bem recompensado pelo que fez. Mas, além de Lula, a delação atingirá cabeças coroadas de quase todos os partidos, algumas delas aspirantes à sucessão de Temer.
O GOVERNO NÃO escapará incólume. Temer talvez se veja obrigado a promover uma pequena reforma ministerial. Talvez promova uma reforma de médio porte, aproveitando para livrar-se de alguns ministros que não correspondem às exigências dos seus cargos. Estilhaços da delação poderão alcançar o próprio Temer. Embora protegido pelo exercício do mandato, ele não ficará bem.
O SUPREMO TRIBUNAL Federal (STF) não ficará bem se ali continuarem seguindo devagar, quase parando, as denúncias e os processos que envolvem políticos e autoridades com direito a foro especial. Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, é um desses políticos. Responde no STF a onze processos. O primeiro, depois de sete anos emperrado, está pronto para ser julgado.
QUANDO CHEGAR ao seu final, a Lava-Jato de pouco terá servido, na ausência de uma reforma política que de fato desmonte o que a provocou. Políticos que se imaginam a salvo da Lava-Jato, ou que rezam para se salvar, falam em reforma política a ser aprovada para produzir efeitos em 2018. Mas serão eles (cruzes!) que votarão tal reforma. É de se acreditar que produzirão algo decente?
OUTRO DIA, EM meio a uma sessão da Câmara dos Deputados, tentou-se aprovar uma anistia para quem se elegeu com dinheiro não declarado à Justiça. E também para os doadores do dinheiro. A proposta de anistia está sendo revista. Deverá ser reapresentada em breve. Estamos nos estertores de um sistema político moribundo que teima em respirar. Todo cuidado com ele é pouco.
Nada vai superar o que a Lava-Jato nos reserva. De volta à Lava-Jato, que há dois anos e meio não sai de cena, mas que nos últimos quatro meses dividiu o protagonismo com a Olimpíada, a Paraolimpíada e, por último, as eleições municipais, encerradas ontem com a mais avassaladora derrota já colhida pelo PT em todos os seus anos de vida, a vitória do PSDB nas maiores cidades do país e o fortalecimento, por ora, do governo de Michel Temer.
TUDO O MAIS de previsível que possa acontecer pelo menos nos próximos seis meses dificilmente será capaz de superar o que a Lava-Jato nos reserva em termos de fortes emoções. O destino de Lula, por exemplo, será definido até o fim do ano ou início de 2017. O juiz Sérgio Moro, na segunda quinzena de novembro, tomará o depoimento de quem delatou Lula por corrupção.
EM SEGUIDA, a confirmar-se o que o próprio PT espera, Moro condenará Lula. Poderá mandar prendê-lo ou não. Se não prender, Lula aguardará em liberdade a decisão posterior do Tribunal Federal de Recursos com sede em Porto Alegre. Até aqui, o tribunal avalizou ou agravou as sentenças de Moro. Caso isso se repita, Lula deverá ser preso e, como ficha-suja, não disputará a eleição de 2018.
A DELAÇÃO DE Marcelo Odebrecht e de cerca de 70 executivos da maior empreiteira do país ainda não foi fechada, mas falta pouco para que seja. Apontada desde já como “a delação do fim do mundo” e, certamente, a maior de todos os tempos aqui ou em qualquer lugar, ela parece destinada a varrer como um tsunami o que ainda resta de pé do atual e carcomido sistema político.
VIDA INGRATA! Lula — sempre ele — será alvo da delação daqueles a quem tanto ajudou como presidente da República e, depois, como lobista internacional. Nada de pessoal, é claro. Foi bem recompensado pelo que fez. Mas, além de Lula, a delação atingirá cabeças coroadas de quase todos os partidos, algumas delas aspirantes à sucessão de Temer.
O GOVERNO NÃO escapará incólume. Temer talvez se veja obrigado a promover uma pequena reforma ministerial. Talvez promova uma reforma de médio porte, aproveitando para livrar-se de alguns ministros que não correspondem às exigências dos seus cargos. Estilhaços da delação poderão alcançar o próprio Temer. Embora protegido pelo exercício do mandato, ele não ficará bem.
O SUPREMO TRIBUNAL Federal (STF) não ficará bem se ali continuarem seguindo devagar, quase parando, as denúncias e os processos que envolvem políticos e autoridades com direito a foro especial. Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, é um desses políticos. Responde no STF a onze processos. O primeiro, depois de sete anos emperrado, está pronto para ser julgado.
QUANDO CHEGAR ao seu final, a Lava-Jato de pouco terá servido, na ausência de uma reforma política que de fato desmonte o que a provocou. Políticos que se imaginam a salvo da Lava-Jato, ou que rezam para se salvar, falam em reforma política a ser aprovada para produzir efeitos em 2018. Mas serão eles (cruzes!) que votarão tal reforma. É de se acreditar que produzirão algo decente?
OUTRO DIA, EM meio a uma sessão da Câmara dos Deputados, tentou-se aprovar uma anistia para quem se elegeu com dinheiro não declarado à Justiça. E também para os doadores do dinheiro. A proposta de anistia está sendo revista. Deverá ser reapresentada em breve. Estamos nos estertores de um sistema político moribundo que teima em respirar. Todo cuidado com ele é pouco.
Nunca tantos deixaram de fazer suas escolhas partidárias - AÉCIO NEVES
FOLHA DE SP - 31/10
Entre vencedores e vencidos, as eleições que se encerraram ontem apontam para um resultado consensual: há uma evidente crise da representatividade política no elevado número de votos nulos e brancos, considerando as duas etapas do pleito. Nunca tantos deixaram de fazer suas escolhas partidárias para expressar o inconformismo com a política tradicional. Este voto de negação precisa ser entendido para que possamos acelerar o esforço para reconquistar a confiança dos cidadãos.
O desgaste da democracia representativa não é um fenômeno brasileiro. Muitos países enfrentam essa crise, o que faz emergir, na cena pública global, personagens e grupos que se projetam por ostentar o discurso da antipolítica. Isso é particularmente grave no Brasil, onde a nossa jovem democracia vive suas primeiras décadas de amadurecimento.
Desde os acontecimentos que sacudiram as ruas do país em 2013, o descompasso entre cidadãos e seus representantes na vida pública se agravou. As denúncias de corrupção e as revelações da Operação Lava Jato, o processo de impeachment da ex-presidente Dilma e a crise que destruiu a economia e os sonhos de milhões de brasileiros ajudaram a multiplicar a descrença e o desalento.
Como resposta a esse estado de coisas, nada mais inútil e manipulador que a simples negação da política, já que esta se constitui no território do debate e do diálogo que sustentam o ambiente democrático.
Este é o momento de resgatar a boa política, revesti-la de significado para os que anseiam por maior participação. Naturalmente, os partidos precisam se oxigenar e se aproximar mais da vida real. A coletividade consegue hoje se organizar e se expressar em canais muito diversos. São movimentos legítimos e, por isso mesmo, precisam caminhar de forma articulada com a representação política. Fora do campo político, o que há é o autoritarismo e a intolerância.
É essencial avançar na reforma do sistema político e eleitoral no país. A fragmentação partidária —o Brasil tem nada menos que 35 partidos registrados no TSE e dezenas de outros a caminho—, o sistema eleitoral que dificulta as relações entre candidato e eleitor, e o mecanismo de financiamento das campanhas são questões que precisam ser vistas com urgência e responsabilidade. Já tramita no Congresso uma proposta de minha autoria e do senador Ricardo Ferraço que prevê uma cláusula de desempenho eleitoral capaz de inibir o número de partidos, expurgando aqueles que servem apenas como legendas de aluguel.
A democracia é um patrimônio da sociedade. Ainda que imperfeita, é a única garantia de que a pluralidade de vozes será respeitada. E não há nada que a fortaleça mais do que o exercício da boa política.
Entre vencedores e vencidos, as eleições que se encerraram ontem apontam para um resultado consensual: há uma evidente crise da representatividade política no elevado número de votos nulos e brancos, considerando as duas etapas do pleito. Nunca tantos deixaram de fazer suas escolhas partidárias para expressar o inconformismo com a política tradicional. Este voto de negação precisa ser entendido para que possamos acelerar o esforço para reconquistar a confiança dos cidadãos.
O desgaste da democracia representativa não é um fenômeno brasileiro. Muitos países enfrentam essa crise, o que faz emergir, na cena pública global, personagens e grupos que se projetam por ostentar o discurso da antipolítica. Isso é particularmente grave no Brasil, onde a nossa jovem democracia vive suas primeiras décadas de amadurecimento.
Desde os acontecimentos que sacudiram as ruas do país em 2013, o descompasso entre cidadãos e seus representantes na vida pública se agravou. As denúncias de corrupção e as revelações da Operação Lava Jato, o processo de impeachment da ex-presidente Dilma e a crise que destruiu a economia e os sonhos de milhões de brasileiros ajudaram a multiplicar a descrença e o desalento.
Como resposta a esse estado de coisas, nada mais inútil e manipulador que a simples negação da política, já que esta se constitui no território do debate e do diálogo que sustentam o ambiente democrático.
Este é o momento de resgatar a boa política, revesti-la de significado para os que anseiam por maior participação. Naturalmente, os partidos precisam se oxigenar e se aproximar mais da vida real. A coletividade consegue hoje se organizar e se expressar em canais muito diversos. São movimentos legítimos e, por isso mesmo, precisam caminhar de forma articulada com a representação política. Fora do campo político, o que há é o autoritarismo e a intolerância.
É essencial avançar na reforma do sistema político e eleitoral no país. A fragmentação partidária —o Brasil tem nada menos que 35 partidos registrados no TSE e dezenas de outros a caminho—, o sistema eleitoral que dificulta as relações entre candidato e eleitor, e o mecanismo de financiamento das campanhas são questões que precisam ser vistas com urgência e responsabilidade. Já tramita no Congresso uma proposta de minha autoria e do senador Ricardo Ferraço que prevê uma cláusula de desempenho eleitoral capaz de inibir o número de partidos, expurgando aqueles que servem apenas como legendas de aluguel.
A democracia é um patrimônio da sociedade. Ainda que imperfeita, é a única garantia de que a pluralidade de vozes será respeitada. E não há nada que a fortaleça mais do que o exercício da boa política.
PT saudações - VERA MAGALHÃES
ESTADÃO - 31/10
Derrota do partido é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante
Se alguém ainda acreditava na possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser candidato novamente à Presidência da República em 2018, mesmo depois da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, o eleitor brasileiro tratou de dizer de forma clara e cristalina: não vai acontecer.
A derrota do PT é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante. Não se salvou nada nem ninguém no partido. Mesmo o rosário da renovação da sigla, que começou a ser desfiado por Tarso Genro e outros, não sobrevive a uma constatação dura: não há candidatos aptos à tarefa.
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, citado como opção na terra de cegos que virou o partido, não quer assumir a missão nem seria um nome com trânsito suficiente para desbancar os caciques de sempre e enterrar de vez o lulismo – do qual, diga-se, foi um dos últimos produtos exitosos.
Sim, porque a única remota chance de o PT se reerguer seria enterrar o lulismo, mas o partido há muito tempo fez a opção oposta, a de se enterrar se for preciso para defender Lula, em uma simbiose que as urnas acabam de rechaçar de maneira fragorosa.
Tanto que o partido não consegue pensar em uma alternativa para 2018 que não seja seu “comandante máximo”, para usar a designação que a Lava Jato deu ao ex-presidente.
A insistência na tese de que Lula é vítima de perseguição – com lances patéticos como queixa à ONU e manifestações internacionais bancadas por “sindicatos” que nada mais são que versões da CUT para gringo ver – mostra que o PT decidiu atrelar seu destino ao do ex-presidente.
Dilma já parece ter sido esquecida pelos petistas na mesma velocidade com que o foi pelos brasileiros. Tanto que, com exceção de Jandira Feghali, ninguém se lembrou dela nas eleições municipais.
A presidente cassada tem sido vista fazendo compras tranquilamente no Rio, em um sinal inequívoco de que o discurso de que houve um golpe era uma fantasia, a única saída para um partido que perdeu o poder porque já não tinha condições de governar nem apoio popular, como o resultado das eleições tratou de deixar evidente.
É essa reflexão que o PT terá de fazer se quiser se refundar. Isso pressupõe admitir que patrocinou um esquema de corrupção cuja dimensão ainda está por ser inteiramente conhecida. Admitir que levou a economia do País à maior recessão da história. Que perdeu a governabilidade antes de Dilma perder a cadeira. E que Lula não é uma vítima de uma perseguição implacável que envolve Judiciário, imprensa, Ministério Público e sabe-se lá mais quem.
Quais as chances de o partido fazer isso seriamente? Remotas, para não dizer inexistentes.
Do outro lado do pêndulo político, o PSDB sai do pleito municipal como o grande vencedor mais por memória do eleitorado de décadas de polarização com o PT do que por força própria. Mas o fim dessa alternância, pelo simples fato de que um dos polos se esfacelou, também obrigará os tucanos a reverem sua estratégia para voltar a ter chance de governar o País.
Isso significa trocar as disputas de bastidores entre caciques para ver quem será o candidato da vez, uma constante desde a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, por alguma nitidez programática capaz de mostrar ao eleitorado que o partido tem um projeto para tirar o País do buraco.
A pulverização de votos por uma miríade de siglas mostra que o eleitor, embora ainda enxergue no PSDB e PMDB as alternativas mais seguras à ruína petista, começa a procurar opções.
A negação da política é uma das marcas indeléveis de 2016. O único político de expressão nacional que saiu vitorioso, Geraldo Alckmin, acertou ao perceber o Zeitgeist e apostar em um candidato em São Paulo com o discurso da não política. Em escala nacional, no entanto, o País já viu o estrago que a eleição de um outsider pode provocar. Com Fernando Collor, antes. E com Dilma depois.
Derrota do partido é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante
Se alguém ainda acreditava na possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser candidato novamente à Presidência da República em 2018, mesmo depois da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, o eleitor brasileiro tratou de dizer de forma clara e cristalina: não vai acontecer.
A derrota do PT é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante. Não se salvou nada nem ninguém no partido. Mesmo o rosário da renovação da sigla, que começou a ser desfiado por Tarso Genro e outros, não sobrevive a uma constatação dura: não há candidatos aptos à tarefa.
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, citado como opção na terra de cegos que virou o partido, não quer assumir a missão nem seria um nome com trânsito suficiente para desbancar os caciques de sempre e enterrar de vez o lulismo – do qual, diga-se, foi um dos últimos produtos exitosos.
Sim, porque a única remota chance de o PT se reerguer seria enterrar o lulismo, mas o partido há muito tempo fez a opção oposta, a de se enterrar se for preciso para defender Lula, em uma simbiose que as urnas acabam de rechaçar de maneira fragorosa.
Tanto que o partido não consegue pensar em uma alternativa para 2018 que não seja seu “comandante máximo”, para usar a designação que a Lava Jato deu ao ex-presidente.
A insistência na tese de que Lula é vítima de perseguição – com lances patéticos como queixa à ONU e manifestações internacionais bancadas por “sindicatos” que nada mais são que versões da CUT para gringo ver – mostra que o PT decidiu atrelar seu destino ao do ex-presidente.
Dilma já parece ter sido esquecida pelos petistas na mesma velocidade com que o foi pelos brasileiros. Tanto que, com exceção de Jandira Feghali, ninguém se lembrou dela nas eleições municipais.
A presidente cassada tem sido vista fazendo compras tranquilamente no Rio, em um sinal inequívoco de que o discurso de que houve um golpe era uma fantasia, a única saída para um partido que perdeu o poder porque já não tinha condições de governar nem apoio popular, como o resultado das eleições tratou de deixar evidente.
É essa reflexão que o PT terá de fazer se quiser se refundar. Isso pressupõe admitir que patrocinou um esquema de corrupção cuja dimensão ainda está por ser inteiramente conhecida. Admitir que levou a economia do País à maior recessão da história. Que perdeu a governabilidade antes de Dilma perder a cadeira. E que Lula não é uma vítima de uma perseguição implacável que envolve Judiciário, imprensa, Ministério Público e sabe-se lá mais quem.
Quais as chances de o partido fazer isso seriamente? Remotas, para não dizer inexistentes.
Do outro lado do pêndulo político, o PSDB sai do pleito municipal como o grande vencedor mais por memória do eleitorado de décadas de polarização com o PT do que por força própria. Mas o fim dessa alternância, pelo simples fato de que um dos polos se esfacelou, também obrigará os tucanos a reverem sua estratégia para voltar a ter chance de governar o País.
Isso significa trocar as disputas de bastidores entre caciques para ver quem será o candidato da vez, uma constante desde a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, por alguma nitidez programática capaz de mostrar ao eleitorado que o partido tem um projeto para tirar o País do buraco.
A pulverização de votos por uma miríade de siglas mostra que o eleitor, embora ainda enxergue no PSDB e PMDB as alternativas mais seguras à ruína petista, começa a procurar opções.
A negação da política é uma das marcas indeléveis de 2016. O único político de expressão nacional que saiu vitorioso, Geraldo Alckmin, acertou ao perceber o Zeitgeist e apostar em um candidato em São Paulo com o discurso da não política. Em escala nacional, no entanto, o País já viu o estrago que a eleição de um outsider pode provocar. Com Fernando Collor, antes. E com Dilma depois.
A autonomia das agências - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 31/10
O projeto da nova Lei Geral das Agências Reguladoras assegura autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira às agências
Embora pareçam pouco relevantes, medidas administrativas do governo Temer vêm dando significado prático à disposição já anunciada de assegurar a restituição da autonomia das agências reguladoras, que lhes foi retirada pelo governo do PT com o objetivo de submetê-las aos interesses políticos e econômicos do lulopetismo. Enquanto tramita no Congresso projeto de lei que define com mais clareza as competências das agências, restabelecendo sua autonomia em relação aos Ministérios da área em que atuam e fixando regras claras para o preenchimento de suas diretorias, começam ser efetivadas alterações no modo de operação desses órgãos para lhes conferir maior capacidade operacional.
São iniciativas destinadas a assegurar as condições institucionais indispensáveis à execução do programa de concessões na área de infraestrutura, cuja primeira parte foi anunciada há pouco mais de um mês, com a meta de arrecadação de R$ 24 bilhões até o próximo ano. É apenas o começo de um plano muito mais amplo, que envolve a aplicação de várias dezenas de bilhões de dólares de empresas nacionais e estrangeiras. O volume de investimentos será proporcional à segurança de que disporão os investidores e que será assegurada pelas novas regras das concessões fixadas pelo governo e pela competência técnica e autonomia operacional das agências.
Ao mesmo tempo que conferem um mínimo de capacidade de atuação às agências, medidas comezinhas que serão formalizadas por meio de decreto a ser assinado em breve pelo presidente da República – como a permissão para viagens de funcionários das agências sem necessidade de consulta ao ministro da área – mostram o grau de intervenção do governo petista nas agências. Técnicos lotados nos órgãos reguladores ouvidos pelo Estadolembram que, desde que assumiu o Ministério de Minas e Energia em 2003, a ex-presidente Dilma Rousseff criticou duramente o papel dos órgãos reguladores e tentou controlá-los com rigor. A necessidade de autorização ministerial para viagens dos funcionários é um dos efeitos do controle que o governo petista exercia sobre eles.
“Queremos converter as agências em órgãos do Estado, e não de governo, como elas se tornaram”, disse ao Estado um integrante do governo. O controle político das agências, advertiu, pode significar ingerência indevida na regulação de contratos.
O projeto da nova Lei Geral das Agências Reguladoras, proposto em 2013 ao Senado e modificado por sua relatora, Simone Tebet (PMDB-MS), assegura autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira às agências. Elas passarão a ser tratadas como órgãos orçamentários da administração federal e não precisarão mais negociar a liberação de recursos com o Ministério de sua área.
A escolha dos dirigentes igualmente obedecerá a novos critérios. Os indicados deverão ter pelo menos dez anos de experiência profissional na área de atuação do órgão, seja no setor público ou na iniciativa privada. Não poderão ter tido, nos 12 meses anteriores, vínculo – como empregado, acionista ou conselheiro – com empresas que atuam no campo regulatório do órgão para o qual estejam sendo indicados. O texto proíbe também a indicação de ministros, secretários estaduais ou municipais, dirigentes de partido político, políticos com mandato parlamentar e pessoas que sejam inelegíveis. Os mandatos em todas as agências reguladoras serão de cinco anos, sem direito à recondução.
Além de assegurar maior segurança jurídica e regulatória aos investidores que participarem do programa de concessões, o governo pretende remover dos novos contratos os obstáculos que, por motivos ideológicos e políticos, o governo petista criou para a entrada de capital privado. Entre esses obstáculos estavam exigências excessivamente onerosas nos programas de obras de recuperação e ampliação dos serviços e a cobrança de tarifas muitas vezes abaixo do nível suficiente para remunerar o investimento. Não haverá mais populismo tarifário nem punição do capital privado.
O projeto da nova Lei Geral das Agências Reguladoras assegura autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira às agências
Embora pareçam pouco relevantes, medidas administrativas do governo Temer vêm dando significado prático à disposição já anunciada de assegurar a restituição da autonomia das agências reguladoras, que lhes foi retirada pelo governo do PT com o objetivo de submetê-las aos interesses políticos e econômicos do lulopetismo. Enquanto tramita no Congresso projeto de lei que define com mais clareza as competências das agências, restabelecendo sua autonomia em relação aos Ministérios da área em que atuam e fixando regras claras para o preenchimento de suas diretorias, começam ser efetivadas alterações no modo de operação desses órgãos para lhes conferir maior capacidade operacional.
São iniciativas destinadas a assegurar as condições institucionais indispensáveis à execução do programa de concessões na área de infraestrutura, cuja primeira parte foi anunciada há pouco mais de um mês, com a meta de arrecadação de R$ 24 bilhões até o próximo ano. É apenas o começo de um plano muito mais amplo, que envolve a aplicação de várias dezenas de bilhões de dólares de empresas nacionais e estrangeiras. O volume de investimentos será proporcional à segurança de que disporão os investidores e que será assegurada pelas novas regras das concessões fixadas pelo governo e pela competência técnica e autonomia operacional das agências.
Ao mesmo tempo que conferem um mínimo de capacidade de atuação às agências, medidas comezinhas que serão formalizadas por meio de decreto a ser assinado em breve pelo presidente da República – como a permissão para viagens de funcionários das agências sem necessidade de consulta ao ministro da área – mostram o grau de intervenção do governo petista nas agências. Técnicos lotados nos órgãos reguladores ouvidos pelo Estadolembram que, desde que assumiu o Ministério de Minas e Energia em 2003, a ex-presidente Dilma Rousseff criticou duramente o papel dos órgãos reguladores e tentou controlá-los com rigor. A necessidade de autorização ministerial para viagens dos funcionários é um dos efeitos do controle que o governo petista exercia sobre eles.
“Queremos converter as agências em órgãos do Estado, e não de governo, como elas se tornaram”, disse ao Estado um integrante do governo. O controle político das agências, advertiu, pode significar ingerência indevida na regulação de contratos.
O projeto da nova Lei Geral das Agências Reguladoras, proposto em 2013 ao Senado e modificado por sua relatora, Simone Tebet (PMDB-MS), assegura autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira às agências. Elas passarão a ser tratadas como órgãos orçamentários da administração federal e não precisarão mais negociar a liberação de recursos com o Ministério de sua área.
A escolha dos dirigentes igualmente obedecerá a novos critérios. Os indicados deverão ter pelo menos dez anos de experiência profissional na área de atuação do órgão, seja no setor público ou na iniciativa privada. Não poderão ter tido, nos 12 meses anteriores, vínculo – como empregado, acionista ou conselheiro – com empresas que atuam no campo regulatório do órgão para o qual estejam sendo indicados. O texto proíbe também a indicação de ministros, secretários estaduais ou municipais, dirigentes de partido político, políticos com mandato parlamentar e pessoas que sejam inelegíveis. Os mandatos em todas as agências reguladoras serão de cinco anos, sem direito à recondução.
Além de assegurar maior segurança jurídica e regulatória aos investidores que participarem do programa de concessões, o governo pretende remover dos novos contratos os obstáculos que, por motivos ideológicos e políticos, o governo petista criou para a entrada de capital privado. Entre esses obstáculos estavam exigências excessivamente onerosas nos programas de obras de recuperação e ampliação dos serviços e a cobrança de tarifas muitas vezes abaixo do nível suficiente para remunerar o investimento. Não haverá mais populismo tarifário nem punição do capital privado.
Na máquina do tempo - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 31/10
Comparem-se frases, slogans, chavões, construções de raciocínio petistas contra as imprescindíveis mudanças na regulação da exploração do pré-sal, enfim executadas pelo Congresso, com frases, slogans, chavões e construções de raciocínio da época da campanha do “petróleo é nosso”, nas décadas de 40 e 50 do século passado, cujo desfecho foi a criação da Petrobras, em 1953, e a conclusão é que nada mudou na ideologia nacionalista brasileira, de esquerda ou direita, em todo este tempo.
Cabe dizer, então, que o nacionalista nativo nada aprendeu e também nada esqueceu. Se já era delirante a ideia da proteção de “nossas riquezas”, hoje ela soa descabida, além de retrô. Não bastasse a constatação de que os contratos de risco estabelecidos a contragosto pelo nacionalista presidente-general Ernesto Geisel, em 1975, e o fim do monopólio da estatal em 1997, por meio de FH, foram essenciais para a própria descoberta do petróleo do pré-sal, sempre se soube que a empresa não tinha a mínima condição financeira para explorar de forma monopolista esta nova fronteira geológica de produção.
À parte a roubalheira lulopetista no petrolão, responsável por bilhões em prejuízos na estatal— já foram contabilizados em balanço R$ 6,2 bilhões nessa conta —, os delírios estatistas que levaram a reservar a área do pré-sal para a Petrobras passaram a degradar a situação financeira da própria empresa.
Inspirada no fracassado programa de substituição de importações do governo Geisel, na ditadura militar, a política de usar o poder de compra da empresa para elevar na marra os índices de nacionalização de equipamentos usados no setor de petróleo levou a grandes aumentos de custo e a constantes estouros de prazos. O que pode acontecer de pior para programas de investimento. No caso, a exploração do pré-sal.
Incrível como a miopia ideológica leva à repetição de erros. Geisel pode ter sido apanhado de surpresa. Lula e Dilma, não. Poderiam, inclusive, pedir informações sobre o resultado daquele projeto geiseliano.
Não faltam informações, também, sobre o antes e o depois da abertura da exploração de petróleo a capitais privados estrangeiros e nacionais. O slogan do “petróleo é nosso” empolgou muita gente, porém o óleo e o gás se mantiveram durante décadas debaixo da terra, sem ajudar o país.
A Petrobras se transformou em importante empresa, com qualificado quadro técnico, muito experiente em especial na exploração em águas profundas. Mas sem a flexibilização nas regras do pré-sal, ia-se voltar à época em que o petróleo era “nosso”, mas não se produzia uma gota dele. E sem abrir o pré-sal ao mundo, e como a Petrobras continua bastante endividada, não haveria um novo leilão tão cedo, pela impossibilidade de a estatal deter compulsoriamente 30% de todos os consórcios e ser a operadora única deles. A própria Petrobras pedia as alterações que estão sendo feitas.
Comparem-se frases, slogans, chavões, construções de raciocínio petistas contra as imprescindíveis mudanças na regulação da exploração do pré-sal, enfim executadas pelo Congresso, com frases, slogans, chavões e construções de raciocínio da época da campanha do “petróleo é nosso”, nas décadas de 40 e 50 do século passado, cujo desfecho foi a criação da Petrobras, em 1953, e a conclusão é que nada mudou na ideologia nacionalista brasileira, de esquerda ou direita, em todo este tempo.
Cabe dizer, então, que o nacionalista nativo nada aprendeu e também nada esqueceu. Se já era delirante a ideia da proteção de “nossas riquezas”, hoje ela soa descabida, além de retrô. Não bastasse a constatação de que os contratos de risco estabelecidos a contragosto pelo nacionalista presidente-general Ernesto Geisel, em 1975, e o fim do monopólio da estatal em 1997, por meio de FH, foram essenciais para a própria descoberta do petróleo do pré-sal, sempre se soube que a empresa não tinha a mínima condição financeira para explorar de forma monopolista esta nova fronteira geológica de produção.
À parte a roubalheira lulopetista no petrolão, responsável por bilhões em prejuízos na estatal— já foram contabilizados em balanço R$ 6,2 bilhões nessa conta —, os delírios estatistas que levaram a reservar a área do pré-sal para a Petrobras passaram a degradar a situação financeira da própria empresa.
Inspirada no fracassado programa de substituição de importações do governo Geisel, na ditadura militar, a política de usar o poder de compra da empresa para elevar na marra os índices de nacionalização de equipamentos usados no setor de petróleo levou a grandes aumentos de custo e a constantes estouros de prazos. O que pode acontecer de pior para programas de investimento. No caso, a exploração do pré-sal.
Incrível como a miopia ideológica leva à repetição de erros. Geisel pode ter sido apanhado de surpresa. Lula e Dilma, não. Poderiam, inclusive, pedir informações sobre o resultado daquele projeto geiseliano.
Não faltam informações, também, sobre o antes e o depois da abertura da exploração de petróleo a capitais privados estrangeiros e nacionais. O slogan do “petróleo é nosso” empolgou muita gente, porém o óleo e o gás se mantiveram durante décadas debaixo da terra, sem ajudar o país.
A Petrobras se transformou em importante empresa, com qualificado quadro técnico, muito experiente em especial na exploração em águas profundas. Mas sem a flexibilização nas regras do pré-sal, ia-se voltar à época em que o petróleo era “nosso”, mas não se produzia uma gota dele. E sem abrir o pré-sal ao mundo, e como a Petrobras continua bastante endividada, não haveria um novo leilão tão cedo, pela impossibilidade de a estatal deter compulsoriamente 30% de todos os consórcios e ser a operadora única deles. A própria Petrobras pedia as alterações que estão sendo feitas.
domingo, outubro 30, 2016
Revelações da PEC 241 - MAÍLSON DA NÓBREGA
REVISTA VEJA
A medida é necessária, ainda que suscetível de aperfeiçoamentos
A PEC 241, que pretende fixar um teto para os gastos primários do governo federal (não poderão crescer acima da inflação por vinte anos), revelou um aspecto triste e outro promissor. O triste é a reafirmação da visão equivocada de corporações que se opõem à medida e são coadjuvadas por segmentos da sociedade estrábicos por ideologia ou ignorantes em questões econômicas e financeiras elementares. O lado promissor é a chance de virmos a construir as condições para discutir o conflito orçamentário, interditado desde priscas eras.
A mais vistosa manifestação (houve outras) do corporativismo foi a nota da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Congresso, em que qualifica a PEC de "inconstitucional" por provocar o "enfraquecimento das instituições do Estado", as quais não disporiam dos "recursos necessários" para "reajustes/reestruturação de carreira", "reposição de quadros de pessoal" - e por aí seguiu... Isso, segundo tal entendimento, impediria "o crescimento e a expansão da instituição e, em última análise, implica seu aniquilamento".
Os procuradores (mais juizes e outros que adotaram a mesma linha) desprezam um conceito básico de economia e finanças, qual seja, a "restrição orçamentária": os gastos de indivíduos e famílias estão limitados à soma da sua renda e da capacidade de se endividarem. O mesmo vale para o setor público, que pode superá-la emitindo moeda, mas ao preço de gerar inflação, destruir o potencial de crescimento e prejudicar mais os pobres.
O conceito foi ignorado pelos constituintes de 1988, que criaram pesadas obrigações para o governo, particularmente em programas sociais e vantagens destinados a servidores públicos e aposentados. Desde então, contornou-se a "restrição" elevando tributos e o endividamento do Tesouro. A carga tributária e a dívida pública dobraram, o que permitiu o crescimento anual dos gastos a 6% acima da inflação. Agora passamos do limite. A carga tributária, excessiva, inibe o crescimento econômico. A dívida pública, explosiva, pode levar à insolvência do Tesouro e à hiperinflação.
Para a PGR, todavia, sua autonomia financeira deve ficar livre da "restrição". Recursos para aumentar salários, vantagens e outros precisam ser-lhe garantidos, ainda que o país esteja quebrado - o que ela busca justificar pela importância de suas atribuições.
Ora, uma família pode ter desejos legítimos como comprar carro, viajar, reformar a casa e semelhantes, mas deve observar a "restrição". Não pode ser diferente em órgãos do governo, independentemente de sua relevância.
A PEC 241 não resolve, isoladamente, os graves problemas fiscais do Brasil, que ameaçam a estabilidade, o crescimento e o objetivo de reduzir as desigualdades. Precisa, por isso, ser complementada por reformas como a da Previdência, cuja insustentabilidade financeira pode inviabilizar a gestão orçamentária, levar o país à breca e frustrar, em futuro próximo, o pagamento de aposentados e pensionistas.
A medida é necessária, ainda que suscetível de aperfeiçoamentos. Seu maior efeito institucional será criar as condições para que, enfim, a "restrição" e o conflito orçamentário se imponham. O conflito surgiu quando a moderna democracia ocidental, iniciada com a Revolução Gloriosa inglesa (1688), atribuiu ao Parlamento a função de aprovar anualmente o Orçamento e, assim, de enfrentá-lo. Como são os parlamentares que decidem a aplicação da receita pública, passou-se a escolher entre demandas ao mesmo tempo legítimas e conflitantes.
No Brasil, isso nunca aconteceu. O Congresso inexistia na colônia. Depois, nos períodos de autoritarismo, era o Executivo que ditava as prioridades. Na democracia, o conflito foi ignorado. As corporações conseguiram reservar, via vinculação de recursos, parcelas crescentes do Orçamento para si próprias. Outros "donos" do Orçamento fizeram o mesmo. Esse será o tema da próxima coluna. Buscarei explicar como os grupos de interesse impuseram seus objetivos, em detrimento da maioria da sociedade. Mostrarei que a PEC 241, se passar, promoverá saudável modernização do Orçamento e da democracia.
A PEC 241, que pretende fixar um teto para os gastos primários do governo federal (não poderão crescer acima da inflação por vinte anos), revelou um aspecto triste e outro promissor. O triste é a reafirmação da visão equivocada de corporações que se opõem à medida e são coadjuvadas por segmentos da sociedade estrábicos por ideologia ou ignorantes em questões econômicas e financeiras elementares. O lado promissor é a chance de virmos a construir as condições para discutir o conflito orçamentário, interditado desde priscas eras.
A mais vistosa manifestação (houve outras) do corporativismo foi a nota da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Congresso, em que qualifica a PEC de "inconstitucional" por provocar o "enfraquecimento das instituições do Estado", as quais não disporiam dos "recursos necessários" para "reajustes/reestruturação de carreira", "reposição de quadros de pessoal" - e por aí seguiu... Isso, segundo tal entendimento, impediria "o crescimento e a expansão da instituição e, em última análise, implica seu aniquilamento".
Os procuradores (mais juizes e outros que adotaram a mesma linha) desprezam um conceito básico de economia e finanças, qual seja, a "restrição orçamentária": os gastos de indivíduos e famílias estão limitados à soma da sua renda e da capacidade de se endividarem. O mesmo vale para o setor público, que pode superá-la emitindo moeda, mas ao preço de gerar inflação, destruir o potencial de crescimento e prejudicar mais os pobres.
O conceito foi ignorado pelos constituintes de 1988, que criaram pesadas obrigações para o governo, particularmente em programas sociais e vantagens destinados a servidores públicos e aposentados. Desde então, contornou-se a "restrição" elevando tributos e o endividamento do Tesouro. A carga tributária e a dívida pública dobraram, o que permitiu o crescimento anual dos gastos a 6% acima da inflação. Agora passamos do limite. A carga tributária, excessiva, inibe o crescimento econômico. A dívida pública, explosiva, pode levar à insolvência do Tesouro e à hiperinflação.
Para a PGR, todavia, sua autonomia financeira deve ficar livre da "restrição". Recursos para aumentar salários, vantagens e outros precisam ser-lhe garantidos, ainda que o país esteja quebrado - o que ela busca justificar pela importância de suas atribuições.
Ora, uma família pode ter desejos legítimos como comprar carro, viajar, reformar a casa e semelhantes, mas deve observar a "restrição". Não pode ser diferente em órgãos do governo, independentemente de sua relevância.
A PEC 241 não resolve, isoladamente, os graves problemas fiscais do Brasil, que ameaçam a estabilidade, o crescimento e o objetivo de reduzir as desigualdades. Precisa, por isso, ser complementada por reformas como a da Previdência, cuja insustentabilidade financeira pode inviabilizar a gestão orçamentária, levar o país à breca e frustrar, em futuro próximo, o pagamento de aposentados e pensionistas.
A medida é necessária, ainda que suscetível de aperfeiçoamentos. Seu maior efeito institucional será criar as condições para que, enfim, a "restrição" e o conflito orçamentário se imponham. O conflito surgiu quando a moderna democracia ocidental, iniciada com a Revolução Gloriosa inglesa (1688), atribuiu ao Parlamento a função de aprovar anualmente o Orçamento e, assim, de enfrentá-lo. Como são os parlamentares que decidem a aplicação da receita pública, passou-se a escolher entre demandas ao mesmo tempo legítimas e conflitantes.
No Brasil, isso nunca aconteceu. O Congresso inexistia na colônia. Depois, nos períodos de autoritarismo, era o Executivo que ditava as prioridades. Na democracia, o conflito foi ignorado. As corporações conseguiram reservar, via vinculação de recursos, parcelas crescentes do Orçamento para si próprias. Outros "donos" do Orçamento fizeram o mesmo. Esse será o tema da próxima coluna. Buscarei explicar como os grupos de interesse impuseram seus objetivos, em detrimento da maioria da sociedade. Mostrarei que a PEC 241, se passar, promoverá saudável modernização do Orçamento e da democracia.
Exploração política da pobreza - PERCIVAL PUGGINA
ZERO HORA - RS - 29-30/10
Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela". Conquanto as coxinhas fossem meramente simbólicas e não aparecessem fisicamente, a mortadela, essa sim, chegava em cestos, servida com pão. Em torno desses sanduíches se comprimiam manifestantes trazidos em ônibus para atuarem como figurantes nos eventos governistas. Faziam lembrar os filmes épicos do cineasta norte-americano Cecil B. DeMille, nos quais multidões eram contratadas para povoar a tela em cenas que causavam grande impressão. Nas manifestações contra o impeachment, quando a câmera dava um close, viam-se homens e mulheres humildes, em camisetas vermelhas, atacando com disposição o prometido sanduíche.
Não raro, alguém se infiltrava nessa multidão, entrevistando-a e testando-a sobre suas convicções. As respostas, como seria de se esperar, mostravam que a quase totalidade não tinha ideia sobre a razão de ali estar. Embora muitos assistissem a essas cenas, posteriormente exibidas nas redes sociais, como coisa jocosa, tratava-se, na verdade, de algo constrangedor e triste. Triste e constrangedor. Como não se constranger ante a falsificação da cidadania? Como não se entristecer quando seres humanos têm sua dignidade rebaixada à condição de figurante de cidadão, ao preço de um sanduíche e alguns vinténs, num ato presumivelmente político? Nada contra quem foi levado a esse nível de carência. Apenas dó e respeito. Mas tudo contra quem se vale dessas pessoas e de suas precariedades para difundir uma mensagem de araque em comícios com figurantes. Após tantos anos no poder, precisam valer-se dos apelos da pobreza para atribuir vigor e atrair adesão à falácia de que acabaram com ela.
Pobre pobreza, sempre tão na ponta da língua e longe dos corações! Eleição após eleição, governo após governo, com crescente vigor a partir do "Tudo pelo social" do companheiro José Sarney, a pobreza ganhou o primeiro plano da retórica eleitoral. Na prática, os resultados são tão escassos quanto pode ser percebido tão logo se dissipa a algaravia dos discursos. Tudo se passa como se o discurso fosse capaz de superar os fatos e a autolouvação alterasse as estatísticas, proporcionasse emprego aos desempregados, salário e renda aos devedores. E pão com mortadela a quem tem fome. Sim, porque o pão com mortadela sumiu com o desinteresse pelas massas de figurantes. A volta vem e os "calaveras" se secam, ensinam os fronteiriços.
A economia nacional, que surfou sobre a crise no mar da China compradora crendo que o céu seria sempre azul e a brisa suave, se espatifou contra os rochedos da realidade. Era inevitável. A casa foi assaltada. O poço secou. A responsabilidade fiscal foi demitida das contas públicas. As maiores empreiteiras no Brasil abasteceram seus cofres diretamente do PIB nacional. A turma do Pixuleco enricou como Tio Patinhas jamais imaginou. Com o dinheiro do BNDES, o Brasil se transformou em mecenas ideológico de nossos satélites ibero-americanos e africanos. Mas tudo foi feito, dizem-nos, por incondicional amor aos pobres.
Pior do que isso. Agora, quando se pretende reerguer o país e medidas de austeridade se impõem, retomam o discurso da irresponsabilidade fiscal. Exigem que não se pague a dívida que quintuplicaram, cobram que se baixe a taxa de juros que elevaram e que o novo governo faça logo e faça bem, pela saúde e pela educação, tudo que não foi feito em 13 anos. Por amor e em defesa dos pobres.
O zelo pelos mais necessitados não é saliva de discurso. Antes de tudo é criar condições para que as pessoas, elas mesmas, promovam seu desenvolvimento humano e social. A pobreza, por si só, é uma chaga nacional. Explorá-la politicamente, em nome dela, é perverso.
Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela". Conquanto as coxinhas fossem meramente simbólicas e não aparecessem fisicamente, a mortadela, essa sim, chegava em cestos, servida com pão. Em torno desses sanduíches se comprimiam manifestantes trazidos em ônibus para atuarem como figurantes nos eventos governistas. Faziam lembrar os filmes épicos do cineasta norte-americano Cecil B. DeMille, nos quais multidões eram contratadas para povoar a tela em cenas que causavam grande impressão. Nas manifestações contra o impeachment, quando a câmera dava um close, viam-se homens e mulheres humildes, em camisetas vermelhas, atacando com disposição o prometido sanduíche.
Não raro, alguém se infiltrava nessa multidão, entrevistando-a e testando-a sobre suas convicções. As respostas, como seria de se esperar, mostravam que a quase totalidade não tinha ideia sobre a razão de ali estar. Embora muitos assistissem a essas cenas, posteriormente exibidas nas redes sociais, como coisa jocosa, tratava-se, na verdade, de algo constrangedor e triste. Triste e constrangedor. Como não se constranger ante a falsificação da cidadania? Como não se entristecer quando seres humanos têm sua dignidade rebaixada à condição de figurante de cidadão, ao preço de um sanduíche e alguns vinténs, num ato presumivelmente político? Nada contra quem foi levado a esse nível de carência. Apenas dó e respeito. Mas tudo contra quem se vale dessas pessoas e de suas precariedades para difundir uma mensagem de araque em comícios com figurantes. Após tantos anos no poder, precisam valer-se dos apelos da pobreza para atribuir vigor e atrair adesão à falácia de que acabaram com ela.
Pobre pobreza, sempre tão na ponta da língua e longe dos corações! Eleição após eleição, governo após governo, com crescente vigor a partir do "Tudo pelo social" do companheiro José Sarney, a pobreza ganhou o primeiro plano da retórica eleitoral. Na prática, os resultados são tão escassos quanto pode ser percebido tão logo se dissipa a algaravia dos discursos. Tudo se passa como se o discurso fosse capaz de superar os fatos e a autolouvação alterasse as estatísticas, proporcionasse emprego aos desempregados, salário e renda aos devedores. E pão com mortadela a quem tem fome. Sim, porque o pão com mortadela sumiu com o desinteresse pelas massas de figurantes. A volta vem e os "calaveras" se secam, ensinam os fronteiriços.
A economia nacional, que surfou sobre a crise no mar da China compradora crendo que o céu seria sempre azul e a brisa suave, se espatifou contra os rochedos da realidade. Era inevitável. A casa foi assaltada. O poço secou. A responsabilidade fiscal foi demitida das contas públicas. As maiores empreiteiras no Brasil abasteceram seus cofres diretamente do PIB nacional. A turma do Pixuleco enricou como Tio Patinhas jamais imaginou. Com o dinheiro do BNDES, o Brasil se transformou em mecenas ideológico de nossos satélites ibero-americanos e africanos. Mas tudo foi feito, dizem-nos, por incondicional amor aos pobres.
Pior do que isso. Agora, quando se pretende reerguer o país e medidas de austeridade se impõem, retomam o discurso da irresponsabilidade fiscal. Exigem que não se pague a dívida que quintuplicaram, cobram que se baixe a taxa de juros que elevaram e que o novo governo faça logo e faça bem, pela saúde e pela educação, tudo que não foi feito em 13 anos. Por amor e em defesa dos pobres.
O zelo pelos mais necessitados não é saliva de discurso. Antes de tudo é criar condições para que as pessoas, elas mesmas, promovam seu desenvolvimento humano e social. A pobreza, por si só, é uma chaga nacional. Explorá-la politicamente, em nome dela, é perverso.
Os juros e as crianças - GUSTAVO FRANCO
ESTADÃO - 30/10
O melhor comentário que me vem à mente sobre as taxas de juros de hoje no País é o que expressa uma maldição antiga, a de Stefan Zweig, segundo a qual “o Brasil é o país do futuro, e sempre será”.
Não vamos tratar aqui do que ele quis dizer na origem, especialmente na segunda parte, pois a mágica de aforismos duradouros reside em sua capacidade de encontrar sempre uma nova atualidade. Divertido é imaginar a mesma frase agora, pronunciada depois de Zweig passar os olhos pela ata do Copom e inferir que os juros ainda permanecerão muito altos por um bom tempo.
O juro, vale explicar, expressa os termos de troca entre o presente e o futuro, e com isso se torna, direta ou indiretamente, o personagem central de todo o tipo de cálculo econômico. O valor das coisas duradouras, sobretudo as que produzem fluxos de caixa no tempo, é determinado pela régua da espera e da impaciência, ou pelo modo como tais fluxos são descontados e trazidos a valor presente. Eis aí, no entanto, uma pista importante para os males do Brasil, que Eduardo Giannetti encontra em um famoso conto de Machado de Assis. O empréstimo, a propósito de um sujeito que tinha “a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho”, sendo que a “resultante desses impulsos discrepantes era uma só: dívidas”.
Portanto, diz Giannetti, “há sociedades que parecem abrigar (...) a vocação do crescimento, mas sem a vocação da espera. E a resultante, quando não é a inflação ou crise do balanço de pagamentos, é (...) uma só: juros altos”.
Segundo essa lógica, os juros altos refletem uma espécie de miopia ou ansiedade pelo presente, e seria fácil, porém enganoso, acreditar que essa imprevidência constitui traço visceral da nacionalidade, pois assim estaríamos transferindo ardilosamente a culpa para o devedor, o brasileiro jovem e impaciente, crente em um futuro tão pródigo que nenhum excesso próprio da mocidade deixaria de ser consistente com as riquezas havidas nesse país do futuro que solidamente se estabeleceu no imaginário nacional.
Mas o inimigo não é bem esse. A maior e mais aberrante distorção nacional no trato do futuro reside no próprio Estado, o agente que, através do endividamento social, desmantela os equilíbrios individuais entre a abstinência e a prodigalidade.
Antes de 1994, o Estado socializava prejuízos decorrentes do gasto excessivo através da inflação, mas agora o faz de forma intertemporal, concentrando privilégios no presente e diluindo seus custos no futuro. Antes, tributávamos o pobre, o ausente nas composições políticas, os sem voz, os não alcançados pela correção monetária. Agora, através do endividamento, tributamos outro ausente, as crianças.
A dívida pública funciona como um gigantesco imposto sobre a juventude, ou sobre a herança, porém jamais admitido pelos perpetradores diante de seus herdeiros, os que vão pagar os impostos necessários para fechar a conta.
O conflito distributivo intergeracional emerge, portanto, como um grande desafio para os próximos anos, mas o problema é que as crianças não votam, e os jovens estão mais preocupados com as agendas de costumes e ocupando as escolas pelas razões erradas. É bom que alguém lhes explique as contas que terão de pagar.
A dívida do governo sob a forma de títulos é da ordem de 70% do Produto Interno Bruto (PIB), tendendo para 80% nos próximos anos, e será muito pior se não passar a PEC do Teto. Mas, como proporção do PIB, não parece grande coisa, inclusive comparada com a de outros países (é mais de 100% nos Estados Unidos e na Europa, em média).
Porém, eles são países onde a riqueza privada, segundo o mestre Piketty, é da ordem de cinco vezes o PIB, ou seja, a íntegra da dívida pública equivale a cerca de um quinto da riqueza privada. Para o Brasil, onde a riqueza privada, como múltiplo do PIB, estaria entre um e 1,3 (estimativas minhas), estamos falando em proporções do endividamento público e da riqueza privada entre metade e 80%, dependendo da conta. Somos o país mais endividado do mundo.
E tem mais.
Essa dívida é apenas aquela sob a forma de títulos. Sabemos, por exemplo, que o governo tem uma obrigação previdenciária com funcionários públicos e no regime geral (INSS) que facilmente poderia ser expressa como uma dívida, bastando capitalizar os rombos de caixa projetados para o futuro, conforme cálculo atuarial.
Num estudo de 2007, Fábio Giambiagi e diversos especialistas nesse assunto calcularam essa dívida, e os resultados foram os seguintes: o buraco do chamado Regime Geral (INSS) seria de 98% do PIB (aí incluída a conta do Loas e rendas mensais vitalícias, de natureza assistencial, que são pouco menos da metade) e o dos regimes para os servidores públicos com 95% do PIB.
O total é esse mesmo que você está com dificuldade de absorver: 193% do PIB adicionais à dívida mobiliária, que se aproxima de 80% do PIB, algo como 2,7 vezes o PIB.
Pare o que você está fazendo, chame as crianças, peça muitas desculpas e ligue para o seu congressista.
O melhor comentário que me vem à mente sobre as taxas de juros de hoje no País é o que expressa uma maldição antiga, a de Stefan Zweig, segundo a qual “o Brasil é o país do futuro, e sempre será”.
Não vamos tratar aqui do que ele quis dizer na origem, especialmente na segunda parte, pois a mágica de aforismos duradouros reside em sua capacidade de encontrar sempre uma nova atualidade. Divertido é imaginar a mesma frase agora, pronunciada depois de Zweig passar os olhos pela ata do Copom e inferir que os juros ainda permanecerão muito altos por um bom tempo.
O juro, vale explicar, expressa os termos de troca entre o presente e o futuro, e com isso se torna, direta ou indiretamente, o personagem central de todo o tipo de cálculo econômico. O valor das coisas duradouras, sobretudo as que produzem fluxos de caixa no tempo, é determinado pela régua da espera e da impaciência, ou pelo modo como tais fluxos são descontados e trazidos a valor presente. Eis aí, no entanto, uma pista importante para os males do Brasil, que Eduardo Giannetti encontra em um famoso conto de Machado de Assis. O empréstimo, a propósito de um sujeito que tinha “a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho”, sendo que a “resultante desses impulsos discrepantes era uma só: dívidas”.
Portanto, diz Giannetti, “há sociedades que parecem abrigar (...) a vocação do crescimento, mas sem a vocação da espera. E a resultante, quando não é a inflação ou crise do balanço de pagamentos, é (...) uma só: juros altos”.
Segundo essa lógica, os juros altos refletem uma espécie de miopia ou ansiedade pelo presente, e seria fácil, porém enganoso, acreditar que essa imprevidência constitui traço visceral da nacionalidade, pois assim estaríamos transferindo ardilosamente a culpa para o devedor, o brasileiro jovem e impaciente, crente em um futuro tão pródigo que nenhum excesso próprio da mocidade deixaria de ser consistente com as riquezas havidas nesse país do futuro que solidamente se estabeleceu no imaginário nacional.
Mas o inimigo não é bem esse. A maior e mais aberrante distorção nacional no trato do futuro reside no próprio Estado, o agente que, através do endividamento social, desmantela os equilíbrios individuais entre a abstinência e a prodigalidade.
Antes de 1994, o Estado socializava prejuízos decorrentes do gasto excessivo através da inflação, mas agora o faz de forma intertemporal, concentrando privilégios no presente e diluindo seus custos no futuro. Antes, tributávamos o pobre, o ausente nas composições políticas, os sem voz, os não alcançados pela correção monetária. Agora, através do endividamento, tributamos outro ausente, as crianças.
A dívida pública funciona como um gigantesco imposto sobre a juventude, ou sobre a herança, porém jamais admitido pelos perpetradores diante de seus herdeiros, os que vão pagar os impostos necessários para fechar a conta.
O conflito distributivo intergeracional emerge, portanto, como um grande desafio para os próximos anos, mas o problema é que as crianças não votam, e os jovens estão mais preocupados com as agendas de costumes e ocupando as escolas pelas razões erradas. É bom que alguém lhes explique as contas que terão de pagar.
A dívida do governo sob a forma de títulos é da ordem de 70% do Produto Interno Bruto (PIB), tendendo para 80% nos próximos anos, e será muito pior se não passar a PEC do Teto. Mas, como proporção do PIB, não parece grande coisa, inclusive comparada com a de outros países (é mais de 100% nos Estados Unidos e na Europa, em média).
Porém, eles são países onde a riqueza privada, segundo o mestre Piketty, é da ordem de cinco vezes o PIB, ou seja, a íntegra da dívida pública equivale a cerca de um quinto da riqueza privada. Para o Brasil, onde a riqueza privada, como múltiplo do PIB, estaria entre um e 1,3 (estimativas minhas), estamos falando em proporções do endividamento público e da riqueza privada entre metade e 80%, dependendo da conta. Somos o país mais endividado do mundo.
E tem mais.
Essa dívida é apenas aquela sob a forma de títulos. Sabemos, por exemplo, que o governo tem uma obrigação previdenciária com funcionários públicos e no regime geral (INSS) que facilmente poderia ser expressa como uma dívida, bastando capitalizar os rombos de caixa projetados para o futuro, conforme cálculo atuarial.
Num estudo de 2007, Fábio Giambiagi e diversos especialistas nesse assunto calcularam essa dívida, e os resultados foram os seguintes: o buraco do chamado Regime Geral (INSS) seria de 98% do PIB (aí incluída a conta do Loas e rendas mensais vitalícias, de natureza assistencial, que são pouco menos da metade) e o dos regimes para os servidores públicos com 95% do PIB.
O total é esse mesmo que você está com dificuldade de absorver: 193% do PIB adicionais à dívida mobiliária, que se aproxima de 80% do PIB, algo como 2,7 vezes o PIB.
Pare o que você está fazendo, chame as crianças, peça muitas desculpas e ligue para o seu congressista.
Uma maior contenção pode ser saudável - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 30/10
A eleição presidencial de 1800, a mais conturbada da história dos Estados Unidos, resultou em diversas reformas nos anos seguintes.
Nenhuma, talvez, tenha sido tão profunda como a que decorreu de uma decisão da Suprema Corte, que, ao se declarar incompetente para deliberar sobre um caso, fortaleceu-se de forma inesperada e permanente.
O derrotado presidente John Adams, pouco antes da transmissão do cargo, decidiu nomear novos juízes para as cortes federais.
O recém-eleito Thomas Jefferson e o seu secretário de Estado, James Madison, resolveram não dar posse a alguns dos novos juízes.
William Marbury, juiz nomeado, porém não empossado, recorreu à Suprema Corte.
O presidente da Suprema Corte era John Marshall, que fora secretário de Estado de Adams e responsável pelas nomeações dos juízes. Não se tratava de decisão fácil, inclusive pelas circunstâncias.
Caso Marshall decidisse a favor de Marbury, a sua decisão poderia ser ignorada por Jefferson, desmoralizando a Suprema Corte, então o Poder menos relevante da nova República. Caso arbitrasse contrariamente, declararia ilegal a nomeação que ele mesmo assinara.
A sua decisão revolucionou a jurisprudência americana.
Marshall argumentou que Marbury tinha o direito legal de assumir o cargo, assim como de buscar a reparação na Justiça; trata-se, afinal, da essência da liberdade em um Estado de Direito.
A revolução ocorreu na conclusão. A possibilidade de a Suprema Corte rever decisões do Executivo fora prevista em uma lei de 1787.
Marshall, porém, declarou essa lei contrária à Constituição. Portanto, a Suprema Corte não tinha a competência para reverter o ato do Executivo, ainda que dele discordasse.
Em uma única decisão, Marshall argumentou tanto a contenção judicial (as cortes devem se ater ao Direito), quanto o ativismo do Judiciário, pois inovou a norma legal ao decidir que cabia ao Supremo avaliar a constitucionalidade das leis, algo não previsto pela Constituição Americana.
Desde então, o Judiciário americano tem oscilado entre momentos de maior ativismo e outros de maior contenção. O ativismo foi eficaz para expandir as liberdades civis, mas nem tanto quando impôs políticas públicas.
As cortes no Brasil têm, crescentemente, deliberado sobre temas administrativos ou afastado normas legais, na contramão da democracia, por se tratar de um poder não eleito.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem feito normas, argumentando a omissão do Congresso, nem sempre para o bem comum, como exemplifica o caso da cláusula de barreira. Talvez seja momento de maior contenção.
A eleição presidencial de 1800, a mais conturbada da história dos Estados Unidos, resultou em diversas reformas nos anos seguintes.
Nenhuma, talvez, tenha sido tão profunda como a que decorreu de uma decisão da Suprema Corte, que, ao se declarar incompetente para deliberar sobre um caso, fortaleceu-se de forma inesperada e permanente.
O derrotado presidente John Adams, pouco antes da transmissão do cargo, decidiu nomear novos juízes para as cortes federais.
O recém-eleito Thomas Jefferson e o seu secretário de Estado, James Madison, resolveram não dar posse a alguns dos novos juízes.
William Marbury, juiz nomeado, porém não empossado, recorreu à Suprema Corte.
O presidente da Suprema Corte era John Marshall, que fora secretário de Estado de Adams e responsável pelas nomeações dos juízes. Não se tratava de decisão fácil, inclusive pelas circunstâncias.
Caso Marshall decidisse a favor de Marbury, a sua decisão poderia ser ignorada por Jefferson, desmoralizando a Suprema Corte, então o Poder menos relevante da nova República. Caso arbitrasse contrariamente, declararia ilegal a nomeação que ele mesmo assinara.
A sua decisão revolucionou a jurisprudência americana.
Marshall argumentou que Marbury tinha o direito legal de assumir o cargo, assim como de buscar a reparação na Justiça; trata-se, afinal, da essência da liberdade em um Estado de Direito.
A revolução ocorreu na conclusão. A possibilidade de a Suprema Corte rever decisões do Executivo fora prevista em uma lei de 1787.
Marshall, porém, declarou essa lei contrária à Constituição. Portanto, a Suprema Corte não tinha a competência para reverter o ato do Executivo, ainda que dele discordasse.
Em uma única decisão, Marshall argumentou tanto a contenção judicial (as cortes devem se ater ao Direito), quanto o ativismo do Judiciário, pois inovou a norma legal ao decidir que cabia ao Supremo avaliar a constitucionalidade das leis, algo não previsto pela Constituição Americana.
Desde então, o Judiciário americano tem oscilado entre momentos de maior ativismo e outros de maior contenção. O ativismo foi eficaz para expandir as liberdades civis, mas nem tanto quando impôs políticas públicas.
As cortes no Brasil têm, crescentemente, deliberado sobre temas administrativos ou afastado normas legais, na contramão da democracia, por se tratar de um poder não eleito.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem feito normas, argumentando a omissão do Congresso, nem sempre para o bem comum, como exemplifica o caso da cláusula de barreira. Talvez seja momento de maior contenção.
Cadê os ‘outsiders’? - ELIANE CANTANHÊDE
ESTADÃO - 30/10
PT perde, PSDB ganha, PMDB estabiliza e ‘outsiders’ continuam fora
Ao contrário do alardeado desde o primeiro turno, esta eleição que termina hoje não consagrou nem privilegiou os “outsiders” da política. Os novos prefeitos de Norte a Sul serão políticos de carreira e a rejeição do eleitorado à política e aos partidos não se dá pelo voto a arrivistas, mas pelo não voto: abstenção, nulos e brancos.
A exceção que confirma a regra no segundo turno é Alexandre Kalil, empreiteiro que se fez à sombra do Estado, apresenta-se como antipolítico, xinga a política e concorre pelo inexpressivo PHS contra o tucano João Leite em Belo Horizonte, uma das três principais capitais do País e a grande indefinição de hoje. Mas, em vez de prejudicar a política, ele a ajuda.
Por quê? Porque se aproveita do ambiente da Lava Jato e da corrupção sistêmica para fazer campanha contra a política, mas não é nenhum exemplo de pureza. Kalil, o não político, foi condenado por apropriação indébita e sistemática do INSS de seus funcionários e deve 16 anos de IPTU. Como virar prefeito se suas dívidas com o setor público somam muitos milhões de reais? Pretende cobrar de si mesmo?
Sua campanha tem traços misturados de Trump, Collor e PSTU: “Não aos políticos, Kalil 31”, “Chega de política, Kalil 31”, “Fora PSDB, Fora PT, Kalil 31”. Ou seja, ele quer entrar no jogo (metáfora bem adequada à eleição de BH), mas finge que não e condena o jogo. Isso é deseducativo, ajuda a massificar a ideia de que a política e os políticos são sujos. Logo, a democracia é um mal.
E por que Kalil é o antipolítico e João Doria não pode ser classificado assim? Doria, como Dilma e Haddad, nunca teve mandato antes, mas disputou prévias no PSDB de São Paulo, reafirmou uma identidade partidária, fez campanha sob o patrocínio do governador Geraldo Alckmin e ao lado de deputados e vereadores... Entrou no jogo sem disfarces. Não negou a política, não deseducou.
Olhando-se para as 18 capitais onde há segundo turno, a eleição é entre políticos. Rio, o máximo da polarização, com Crivella (PRB) e Freixo (PSOL); Porto Alegre, Marchesan (PSDB) e Sebastião Melo (PMDB); Recife, Geraldo Júlio (PSB) e João Paulo (PT): Maceió, Rui Palmeira (PSDB) e Cícero Almeida (PMDB)... Cadê os “outsiders”?
Nessa visão panorâmica, o PT teve uma derrota acachapante no primeiro turno (só venceu em Rio Branco, no Acre) e o ex-prefeito João Paulo está bem atrás no Recife, única capital onde o partido concorre. Na outra ponta, o PSDB teve a vitória espetacular de Doria e levou Teresina no primeiro turno, concorrendo em oito capitais no segundo, com boas chances em Porto Alegre, Maceió, Manaus (Arthur Virgílio) e Porto Velho (Dr. Hildon). Há empate técnico em BH e os tucanos estão atrás em Campo Grande, Cuiabá e Belém, apesar dos três governadores serem do PSDB.
Dos maiores partidos, PMDB disputa Porto Alegre, Florianópolis, Maceió, Macapá, Goiânia e Cuiabá e o PSB está na disputa no Recife, em Aracaju e em Goiânia, mas outra característica desta eleição é a pulverização partidária, com PSD (Curitiba e Campo Grande), PSOL (Rio e Belém), PMN (Curitiba e São Luís), PDT (São Luís), PRB (Rio), PP (Florianópolis), PPS e Solidariedade (ambos em Vitória), Rede (Macapá), PCdoB (Aracaju), PTB (Porto Velho) e PR (Manaus).
Conclusão: PT vai mal, PSDB tende a ser o grande vitorioso, PMDB mantém uma força disseminada, uma profusão de partidos pinga pelo mapa brasileiro, mas a eleição não é um jogo de “outsiders”, mas de profissionais. A política continua sendo dos políticos e o protesto crescente do eleitor no mundo contemporâneo é mais pela abstenção, voto nulo ou em branco do que pelo voto em arrivistas. O eleitor irritado prefere meter o sarrafo nos candidatos pelo Facebook e pelo Twitter do que votar. Mas quem vota tenta fugir do perigo maior.
PT perde, PSDB ganha, PMDB estabiliza e ‘outsiders’ continuam fora
Ao contrário do alardeado desde o primeiro turno, esta eleição que termina hoje não consagrou nem privilegiou os “outsiders” da política. Os novos prefeitos de Norte a Sul serão políticos de carreira e a rejeição do eleitorado à política e aos partidos não se dá pelo voto a arrivistas, mas pelo não voto: abstenção, nulos e brancos.
A exceção que confirma a regra no segundo turno é Alexandre Kalil, empreiteiro que se fez à sombra do Estado, apresenta-se como antipolítico, xinga a política e concorre pelo inexpressivo PHS contra o tucano João Leite em Belo Horizonte, uma das três principais capitais do País e a grande indefinição de hoje. Mas, em vez de prejudicar a política, ele a ajuda.
Por quê? Porque se aproveita do ambiente da Lava Jato e da corrupção sistêmica para fazer campanha contra a política, mas não é nenhum exemplo de pureza. Kalil, o não político, foi condenado por apropriação indébita e sistemática do INSS de seus funcionários e deve 16 anos de IPTU. Como virar prefeito se suas dívidas com o setor público somam muitos milhões de reais? Pretende cobrar de si mesmo?
Sua campanha tem traços misturados de Trump, Collor e PSTU: “Não aos políticos, Kalil 31”, “Chega de política, Kalil 31”, “Fora PSDB, Fora PT, Kalil 31”. Ou seja, ele quer entrar no jogo (metáfora bem adequada à eleição de BH), mas finge que não e condena o jogo. Isso é deseducativo, ajuda a massificar a ideia de que a política e os políticos são sujos. Logo, a democracia é um mal.
E por que Kalil é o antipolítico e João Doria não pode ser classificado assim? Doria, como Dilma e Haddad, nunca teve mandato antes, mas disputou prévias no PSDB de São Paulo, reafirmou uma identidade partidária, fez campanha sob o patrocínio do governador Geraldo Alckmin e ao lado de deputados e vereadores... Entrou no jogo sem disfarces. Não negou a política, não deseducou.
Olhando-se para as 18 capitais onde há segundo turno, a eleição é entre políticos. Rio, o máximo da polarização, com Crivella (PRB) e Freixo (PSOL); Porto Alegre, Marchesan (PSDB) e Sebastião Melo (PMDB); Recife, Geraldo Júlio (PSB) e João Paulo (PT): Maceió, Rui Palmeira (PSDB) e Cícero Almeida (PMDB)... Cadê os “outsiders”?
Nessa visão panorâmica, o PT teve uma derrota acachapante no primeiro turno (só venceu em Rio Branco, no Acre) e o ex-prefeito João Paulo está bem atrás no Recife, única capital onde o partido concorre. Na outra ponta, o PSDB teve a vitória espetacular de Doria e levou Teresina no primeiro turno, concorrendo em oito capitais no segundo, com boas chances em Porto Alegre, Maceió, Manaus (Arthur Virgílio) e Porto Velho (Dr. Hildon). Há empate técnico em BH e os tucanos estão atrás em Campo Grande, Cuiabá e Belém, apesar dos três governadores serem do PSDB.
Dos maiores partidos, PMDB disputa Porto Alegre, Florianópolis, Maceió, Macapá, Goiânia e Cuiabá e o PSB está na disputa no Recife, em Aracaju e em Goiânia, mas outra característica desta eleição é a pulverização partidária, com PSD (Curitiba e Campo Grande), PSOL (Rio e Belém), PMN (Curitiba e São Luís), PDT (São Luís), PRB (Rio), PP (Florianópolis), PPS e Solidariedade (ambos em Vitória), Rede (Macapá), PCdoB (Aracaju), PTB (Porto Velho) e PR (Manaus).
Conclusão: PT vai mal, PSDB tende a ser o grande vitorioso, PMDB mantém uma força disseminada, uma profusão de partidos pinga pelo mapa brasileiro, mas a eleição não é um jogo de “outsiders”, mas de profissionais. A política continua sendo dos políticos e o protesto crescente do eleitor no mundo contemporâneo é mais pela abstenção, voto nulo ou em branco do que pelo voto em arrivistas. O eleitor irritado prefere meter o sarrafo nos candidatos pelo Facebook e pelo Twitter do que votar. Mas quem vota tenta fugir do perigo maior.
Se entrega, Corisco - FERNANDO GABEIRA
O Globo - 30/10
Renan está nervoso, o que era raro no passado.
Renan Calheiros, no passado, perdia cabelos mas não perdia a cabeça. Agora, ele ganhou cabelos mas perde a cabeça, com frequência. Recentemente, disse que o Senado parecia um hospício e afirmou que ajudou a senadora Gleisi Hoffman no seu embate com a Lava-Jato. Hoje, sabemos que ordenou varreduras em vários pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras.
E Renan perdeu a cabeça de novo, chamando um juiz federal de juizeco e o ministro da Justiça de chefete de polícia. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços de terno escuro e gravata, a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Quando combatemos Renan e o obrigamos a deixar o cargo de presidente, os jagunços já estavam lá. Como o Brasil vivia num estado meio letárgico, tivemos de enfrentar a braço os jagunços de Renan para garantir a transparência de uma reunião sobre seu destino.
O sono brasileiro não é mais tão profundo como na época. Ainda assim, Renan sequer foi julgado pelos crimes de que era acusado na época. São as doçuras do foro privilegiado. Agora, ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se também aos seus jagunços. E que o espaço do Senado seja um santuário para qualquer quadrilha que tenha, pelo menos, um parlamentar como membro.
Talvez Renan esteja desesperado. Mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada. Há sempre alguém que se acha o verdadeiro guardião das leis e se dispõe a defender Renan e o Senado, independentemente desse contexto bárbaro que presenciamos há anos. O próprio Gilmar Mendes, cujas posições são respeitáveis, saiu em defesa de Renan, sugerindo que a polícia não deveria entrar ali. Mas o que fazer quando a própria polícia do Senado comete uma delinquência? A resposta das pessoas que não foram atingidas pela Lava-Jato, mas se incomodam com o sucesso da operação, é sempre esta: falem com o Supremo. No caso do Renan, sob investigação em 12 processos diferentes, e sempre na presidência do Senado, o que significa falar com o Supremo?
Estamos falando com o Supremo há anos. Ele manda grampear senadores adversários, como fez com Marconi Perillo, orienta a agressividade e a truculência de seus jagunços contra deputados. Até hoje, para ele, o Supremo é apenas o cemitério de seus processos.
Renan, Gilmar Mendes e todos os defensores desse absurdo não conseguem me convencer que é preciso pedir licença ao Supremo para punir jagunços que usam equipamentos do Estado, diárias pagas pelo governo, para fazer varreduras na campanha de Lobão Filho, no Maranhão. Varreduras inclusive sob supervisão do genro de Lobão Filho, um homem chamado Marcos Regadas Filho, acusado de sequestro e mencionado no assassinato do blogueiro Décio Sá.
A diversão desse personagem para qual os jagunços trabalharam é usar o helicóptero para dar voos rasantes no Rio Preguiça em Barreirinhas, aterrorizando banhistas e pescadores.
— Foge, meu preto, que isso é vendaval — ouviase o grito dos pescadores
O halo protetor do Supremo não se limita aos bandidos do Congresso, mas aos seus jagunços e cúmplices regionais. A Lava-Jato não é infalível. Está sujeita a críticas como todas as atividades de governo. Não se deve usar o êxito da Lava-Jato com intenções corporativas, inclusive num momento de crise econômica como a nossa. Até aí, tudo bem. Mas negar à PF o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar, isso me parece um absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para os bandidos eleitos. Se o espaço onde atuam torna-se também um santuário para todos os que trabalham lá, teremos não só a impunidade de indivíduos mas a liberação de espaços especiais para o crime.
Nas campanhas que fiz contra Renan, desenhamos um cartaz dizendo: “se entrega, Corisco”. Isso foi há muito tempo. Seus crimes não foram punidos na época. Ainda me lembro das imagens das boiadas se deslocando no sertão para fingir Renan que era um grande criador. Os crimes não apenas deixaram de ser punidos. Aumentaram exponencialmente ao longo dos anos, ancorando-se inclusive na pilhagem da Petrobras.
Eduardo Cunha foi preso. Não tinha mais mandato. Se Renan continuar solto, é apenas porque tem um. É justo cometer crimes em série, sob o escudo de um mandato parlamentar? Renan está nervoso porque percebe o crepúsculo de um sistema de impunidade tecido pela audácia dos coronéis e a inoperância do Supremo. A evolução do país o levou a perder a cabeça, algo raro no passado. Espero que não chegue a arrancar os cabelos e ouça o meu conselho de anos atrás: se entrega, Corisco.
Renan está nervoso, o que era raro no passado.
Renan Calheiros, no passado, perdia cabelos mas não perdia a cabeça. Agora, ele ganhou cabelos mas perde a cabeça, com frequência. Recentemente, disse que o Senado parecia um hospício e afirmou que ajudou a senadora Gleisi Hoffman no seu embate com a Lava-Jato. Hoje, sabemos que ordenou varreduras em vários pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras.
E Renan perdeu a cabeça de novo, chamando um juiz federal de juizeco e o ministro da Justiça de chefete de polícia. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços de terno escuro e gravata, a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Quando combatemos Renan e o obrigamos a deixar o cargo de presidente, os jagunços já estavam lá. Como o Brasil vivia num estado meio letárgico, tivemos de enfrentar a braço os jagunços de Renan para garantir a transparência de uma reunião sobre seu destino.
O sono brasileiro não é mais tão profundo como na época. Ainda assim, Renan sequer foi julgado pelos crimes de que era acusado na época. São as doçuras do foro privilegiado. Agora, ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se também aos seus jagunços. E que o espaço do Senado seja um santuário para qualquer quadrilha que tenha, pelo menos, um parlamentar como membro.
Talvez Renan esteja desesperado. Mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada. Há sempre alguém que se acha o verdadeiro guardião das leis e se dispõe a defender Renan e o Senado, independentemente desse contexto bárbaro que presenciamos há anos. O próprio Gilmar Mendes, cujas posições são respeitáveis, saiu em defesa de Renan, sugerindo que a polícia não deveria entrar ali. Mas o que fazer quando a própria polícia do Senado comete uma delinquência? A resposta das pessoas que não foram atingidas pela Lava-Jato, mas se incomodam com o sucesso da operação, é sempre esta: falem com o Supremo. No caso do Renan, sob investigação em 12 processos diferentes, e sempre na presidência do Senado, o que significa falar com o Supremo?
Estamos falando com o Supremo há anos. Ele manda grampear senadores adversários, como fez com Marconi Perillo, orienta a agressividade e a truculência de seus jagunços contra deputados. Até hoje, para ele, o Supremo é apenas o cemitério de seus processos.
Renan, Gilmar Mendes e todos os defensores desse absurdo não conseguem me convencer que é preciso pedir licença ao Supremo para punir jagunços que usam equipamentos do Estado, diárias pagas pelo governo, para fazer varreduras na campanha de Lobão Filho, no Maranhão. Varreduras inclusive sob supervisão do genro de Lobão Filho, um homem chamado Marcos Regadas Filho, acusado de sequestro e mencionado no assassinato do blogueiro Décio Sá.
A diversão desse personagem para qual os jagunços trabalharam é usar o helicóptero para dar voos rasantes no Rio Preguiça em Barreirinhas, aterrorizando banhistas e pescadores.
— Foge, meu preto, que isso é vendaval — ouviase o grito dos pescadores
O halo protetor do Supremo não se limita aos bandidos do Congresso, mas aos seus jagunços e cúmplices regionais. A Lava-Jato não é infalível. Está sujeita a críticas como todas as atividades de governo. Não se deve usar o êxito da Lava-Jato com intenções corporativas, inclusive num momento de crise econômica como a nossa. Até aí, tudo bem. Mas negar à PF o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar, isso me parece um absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para os bandidos eleitos. Se o espaço onde atuam torna-se também um santuário para todos os que trabalham lá, teremos não só a impunidade de indivíduos mas a liberação de espaços especiais para o crime.
Nas campanhas que fiz contra Renan, desenhamos um cartaz dizendo: “se entrega, Corisco”. Isso foi há muito tempo. Seus crimes não foram punidos na época. Ainda me lembro das imagens das boiadas se deslocando no sertão para fingir Renan que era um grande criador. Os crimes não apenas deixaram de ser punidos. Aumentaram exponencialmente ao longo dos anos, ancorando-se inclusive na pilhagem da Petrobras.
Eduardo Cunha foi preso. Não tinha mais mandato. Se Renan continuar solto, é apenas porque tem um. É justo cometer crimes em série, sob o escudo de um mandato parlamentar? Renan está nervoso porque percebe o crepúsculo de um sistema de impunidade tecido pela audácia dos coronéis e a inoperância do Supremo. A evolução do país o levou a perder a cabeça, algo raro no passado. Espero que não chegue a arrancar os cabelos e ouça o meu conselho de anos atrás: se entrega, Corisco.
O silêncio das urnas - DORA KRAMER
ESTADÃO - 30/10
Reza o mito, mas não é verdade, que votos nulos e brancos anulem eleições
No primeiro turno das eleições municipais havia dois polos de atenção: o desempenho do PT e o resultado em São Paulo. Ambos surpreendentes. O primeiro pela escassez e o segundo pela abundância de votos obtidos pelo candidato que da maneira mais completa encarnou o repúdio ao petismo.
Hoje, dia de escolha em cidades com mais de 200 mil habitantes, entre as quais 18 capitais, a estrela da companhia é a eleição no Rio, onde concorrem dois candidatos cuja rejeição é assunto em qualquer roda que reúna mais de dois cariocas.
As pesquisas apontam um aumento substancial de intenções pelos votos em branco e nulos, confirmando o que se ouve em toda parte: estamos numa sinuca de bico. Sim, nós, porque estou entre aqueles cujo título de eleitor obriga o comparecimento à urna para escolher entre Marcelo Crivella e Marcelo Freixo, dois opostos extremos que subtraem de boa parte do eleitorado a motivação positiva ao voto.
De onde a expectativa é a de que o Rio seja a cidade campeã no quesito ausência de escolha, aí incluídos os que votarem em branco, nulo ou simplesmente ignorarem a obrigatoriedade formal. Porto Alegre apresenta situação semelhante no que tange à indisposição eleitoral.
O exercício da democracia não aconselha à abstenção. O ideal seria que cada um fizesse uma opção e se responsabilizasse por ela. Melhor ainda se isso não fosse uma imposição legal e o direito ao voto um gesto de vontade, como de resto ocorre na ampla maioria das democracias ocidentais. Mas, nem sempre é possível e a recusa, notadamente quando em quantidade muito acima do habitual, requer uma leitura acurada. Mas essa é outra história que fica para ser analisada e contada a partir de amanhã.
Razões para indiferença, desgosto ou revolta com a conduta de determinados políticos não faltam e provavelmente elas serão o tema da discussão pós-eleitoral. E fica por aí a consequência. Não há outra, não obstante o mito de que votos em branco e nulos em quantidade superior à votação do vencedor tornem inválida uma eleição ou que sirvam para beneficiar esse ou aquele candidato. Pura lenda urbana.
A contagem da Justiça Eleitoral leva em consideração apenas os votos válidos. Ou seja, descontados os votos em branco e nulos que vão literalmente para o lixo. Portanto, quem se ausenta, vota em branco ou anula protesta de forma inútil do ponto de vista do vencedor, eleito com qualquer quantidade. Uma hipótese absurda, mas real: ainda que haja 90% de votos inválidos numa eleição, o resultado será computado levando em conta o universo de 10% de votos válidos.
O mito da nulidade tem origem numa interpretação equivocada do Código Eleitoral, que no artigo 244 diz o seguinte: “Se a nulidade atingir mais da metade dos votos” será convocado um novo pleito no prazo de 20 a 40 dias. Ocorre que a nulidade aí tem outro sentido. Refere-se aos votos anulados pela Justiça Eleitoral caso somem mais da metade dos válidos.
A lei prevê as situações em que isso possa ocorrer. As de maior amplitude dizem respeito a fraudes generalizadas e à eventual perda do registro da candidatura do vencedor, por exemplo, por abuso de poder econômico (compra de votos).
Há outras: violação do sigilo do voto, fechamento das urnas antes do horário previsto em lei (17 horas), fraude na urna eletrônica, uso de identidade falsa por parte do eleitor, voto em seção diferente daquela indicada no título, restrição ao direito de fiscalização, realização das eleições em dia, hora ou local que não os legalmente estabelecidos.
Portanto, não há resultado prático decorrente da manifestação de protesto ou de indiferença, embora a depender do volume haja um recado claro a ser compreendido pelo mundo político. Inclusive em relação à obrigatoriedade do voto.
Reza o mito, mas não é verdade, que votos nulos e brancos anulem eleições
No primeiro turno das eleições municipais havia dois polos de atenção: o desempenho do PT e o resultado em São Paulo. Ambos surpreendentes. O primeiro pela escassez e o segundo pela abundância de votos obtidos pelo candidato que da maneira mais completa encarnou o repúdio ao petismo.
Hoje, dia de escolha em cidades com mais de 200 mil habitantes, entre as quais 18 capitais, a estrela da companhia é a eleição no Rio, onde concorrem dois candidatos cuja rejeição é assunto em qualquer roda que reúna mais de dois cariocas.
As pesquisas apontam um aumento substancial de intenções pelos votos em branco e nulos, confirmando o que se ouve em toda parte: estamos numa sinuca de bico. Sim, nós, porque estou entre aqueles cujo título de eleitor obriga o comparecimento à urna para escolher entre Marcelo Crivella e Marcelo Freixo, dois opostos extremos que subtraem de boa parte do eleitorado a motivação positiva ao voto.
De onde a expectativa é a de que o Rio seja a cidade campeã no quesito ausência de escolha, aí incluídos os que votarem em branco, nulo ou simplesmente ignorarem a obrigatoriedade formal. Porto Alegre apresenta situação semelhante no que tange à indisposição eleitoral.
O exercício da democracia não aconselha à abstenção. O ideal seria que cada um fizesse uma opção e se responsabilizasse por ela. Melhor ainda se isso não fosse uma imposição legal e o direito ao voto um gesto de vontade, como de resto ocorre na ampla maioria das democracias ocidentais. Mas, nem sempre é possível e a recusa, notadamente quando em quantidade muito acima do habitual, requer uma leitura acurada. Mas essa é outra história que fica para ser analisada e contada a partir de amanhã.
Razões para indiferença, desgosto ou revolta com a conduta de determinados políticos não faltam e provavelmente elas serão o tema da discussão pós-eleitoral. E fica por aí a consequência. Não há outra, não obstante o mito de que votos em branco e nulos em quantidade superior à votação do vencedor tornem inválida uma eleição ou que sirvam para beneficiar esse ou aquele candidato. Pura lenda urbana.
A contagem da Justiça Eleitoral leva em consideração apenas os votos válidos. Ou seja, descontados os votos em branco e nulos que vão literalmente para o lixo. Portanto, quem se ausenta, vota em branco ou anula protesta de forma inútil do ponto de vista do vencedor, eleito com qualquer quantidade. Uma hipótese absurda, mas real: ainda que haja 90% de votos inválidos numa eleição, o resultado será computado levando em conta o universo de 10% de votos válidos.
O mito da nulidade tem origem numa interpretação equivocada do Código Eleitoral, que no artigo 244 diz o seguinte: “Se a nulidade atingir mais da metade dos votos” será convocado um novo pleito no prazo de 20 a 40 dias. Ocorre que a nulidade aí tem outro sentido. Refere-se aos votos anulados pela Justiça Eleitoral caso somem mais da metade dos válidos.
A lei prevê as situações em que isso possa ocorrer. As de maior amplitude dizem respeito a fraudes generalizadas e à eventual perda do registro da candidatura do vencedor, por exemplo, por abuso de poder econômico (compra de votos).
Há outras: violação do sigilo do voto, fechamento das urnas antes do horário previsto em lei (17 horas), fraude na urna eletrônica, uso de identidade falsa por parte do eleitor, voto em seção diferente daquela indicada no título, restrição ao direito de fiscalização, realização das eleições em dia, hora ou local que não os legalmente estabelecidos.
Portanto, não há resultado prático decorrente da manifestação de protesto ou de indiferença, embora a depender do volume haja um recado claro a ser compreendido pelo mundo político. Inclusive em relação à obrigatoriedade do voto.
STF e PEC do gasto mostram que crescimento virou prioridade - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 30/10
No último mês, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou favoravelmente sobre três temas pendentes havia muito tempo: a execução da pena após condenação em segunda instância; a não permissão da revisão do benefício previdenciário após a aposentadoria de trabalhadores que permaneceram no mercado de trabalho; e a permissão do corte da remuneração dos dias parados de servidores públicos em greve.
As três decisões caminham na direção da responsabilização dos indivíduos pelos seus atos.
A execução após a segunda instância contrabalança o fato de que as quatro instâncias da Justiça (primeiro grau e três recursais) praticamente inviabilizam a responsabilização dos indivíduos, principalmente em crimes do colarinho branco.
Estes, em geral, envolvem pessoas com acesso ilimitado a recursos e a advogados. São crimes cuja responsabilização raramente se faz baseada em provas cabais, mas sim circunstanciais. A razão é que em geral esse tipo de crime não produz provas cabais, diferentemente dos crimes violentos.
A rejeição da desaposentação fará com que o candidato a requerer o benefício previdenciário pondere com mais responsabilidade a oportunidade ou não de fazê-lo. Considere até a possibilidade de se manter no mercado de trabalho e atrasar o início da fase inativa.
Nosso sistema previdenciário é de repartição com o princípio da solidariedade, e a aposentadoria é seguro para a perda de capacidade laboral. Não se trata de sistema de contas individuais.
Finalmente, o direito irrestrito de greve, sem que o funcionário público incorra em nenhum custo, além de caracterizar férias, e não greve, dá ao servidor um poder de barganha absolutamente desproporcional. Um enorme poder de impor, sem nenhuma sanção, danos aos cidadãos comuns, em geral os mais pobres, que são os usuários dos serviços públicos.
As três decisões do STF fazem com que os custos e os benefícios das ações individuais que recaem sobre as pessoas que as praticaram se aproximem dos custos e dos benefícios dessas mesmas ações sobre a sociedade. No jargão da profissão, as três medidas alinham os retornos individuais com os retornos sociais.
Há evidências de que as sociedades que conseguiram construir marcos legais e institucionais que promovam maior alinhamento entre retornos individuais e sociais apresentam desenvolvimento sustentável no longo prazo.
Parece que a agenda da sociedade está mudando, e o STF reflete essa mudança.
Logo após a redemocratização, a agenda da sociedade foi a criação e a expansão de direitos.
Essa agenda contribuiu para gerar a hiperinflação da primeira metade dos anos 1990, mas também foi um fator de redução da desigualdade e da pobreza após a estabilização da economia.
No entanto, em todos os períodos citados, o crescimento econômico foi medíocre, com exceção de uma curta fase na década passada, em que colhemos crescimento maior em razão de diversas políticas de liberalização dos mercados. Essas políticas também têm a característica de promover melhor alinhamento entre retornos individuais e sociais.
Tanto a facilidade surpreendente de aprovação do projeto de emenda constitucional (PEC) que estabelece por dez anos um teto para o crescimento do gasto primário da União como as três decisões do STF sugerem que o crescimento econômico virou prioridade da sociedade.
No último mês, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou favoravelmente sobre três temas pendentes havia muito tempo: a execução da pena após condenação em segunda instância; a não permissão da revisão do benefício previdenciário após a aposentadoria de trabalhadores que permaneceram no mercado de trabalho; e a permissão do corte da remuneração dos dias parados de servidores públicos em greve.
As três decisões caminham na direção da responsabilização dos indivíduos pelos seus atos.
A execução após a segunda instância contrabalança o fato de que as quatro instâncias da Justiça (primeiro grau e três recursais) praticamente inviabilizam a responsabilização dos indivíduos, principalmente em crimes do colarinho branco.
Estes, em geral, envolvem pessoas com acesso ilimitado a recursos e a advogados. São crimes cuja responsabilização raramente se faz baseada em provas cabais, mas sim circunstanciais. A razão é que em geral esse tipo de crime não produz provas cabais, diferentemente dos crimes violentos.
A rejeição da desaposentação fará com que o candidato a requerer o benefício previdenciário pondere com mais responsabilidade a oportunidade ou não de fazê-lo. Considere até a possibilidade de se manter no mercado de trabalho e atrasar o início da fase inativa.
Nosso sistema previdenciário é de repartição com o princípio da solidariedade, e a aposentadoria é seguro para a perda de capacidade laboral. Não se trata de sistema de contas individuais.
Finalmente, o direito irrestrito de greve, sem que o funcionário público incorra em nenhum custo, além de caracterizar férias, e não greve, dá ao servidor um poder de barganha absolutamente desproporcional. Um enorme poder de impor, sem nenhuma sanção, danos aos cidadãos comuns, em geral os mais pobres, que são os usuários dos serviços públicos.
As três decisões do STF fazem com que os custos e os benefícios das ações individuais que recaem sobre as pessoas que as praticaram se aproximem dos custos e dos benefícios dessas mesmas ações sobre a sociedade. No jargão da profissão, as três medidas alinham os retornos individuais com os retornos sociais.
Há evidências de que as sociedades que conseguiram construir marcos legais e institucionais que promovam maior alinhamento entre retornos individuais e sociais apresentam desenvolvimento sustentável no longo prazo.
Parece que a agenda da sociedade está mudando, e o STF reflete essa mudança.
Logo após a redemocratização, a agenda da sociedade foi a criação e a expansão de direitos.
Essa agenda contribuiu para gerar a hiperinflação da primeira metade dos anos 1990, mas também foi um fator de redução da desigualdade e da pobreza após a estabilização da economia.
No entanto, em todos os períodos citados, o crescimento econômico foi medíocre, com exceção de uma curta fase na década passada, em que colhemos crescimento maior em razão de diversas políticas de liberalização dos mercados. Essas políticas também têm a característica de promover melhor alinhamento entre retornos individuais e sociais.
Tanto a facilidade surpreendente de aprovação do projeto de emenda constitucional (PEC) que estabelece por dez anos um teto para o crescimento do gasto primário da União como as três decisões do STF sugerem que o crescimento econômico virou prioridade da sociedade.
Rebeldes tateando em busca de uma causa - BOLÍVAR LAMOUNIER
ESTADÃO - 30/10
Como as organizações comunistas ainda mantêm sua influência no meio estudantil?
O sangue do adolescente esfaqueado em Curitiba na última segunda-feira já seria motivo mais que suficiente para tentarmos entender melhor o movimento de ocupação de escolas deflagrado por estudantes secundaristas, apoiados, em alguns casos, por docentes e universitários. Mas a amplitude do movimento suscita questões importantes sobre a presente situação brasileira.
O objetivo declarado, bem o sabemos, é protestar contra a reforma do ensino médio proposta pelo governo Temer. A reforma é uma tentativa de modernizar o currículo, tornando-o mais flexível. Pretende reduzir o número de matérias obrigatórias a fim de aumentar a concentração em Português, Inglês e Matemática. Isso é bom ou ruim? É óbvio que essa pergunta interessa a todos os cidadãos brasileiros, a todas as comunidades de que se compõe a nossa sociedade, não apenas às comunidades diretamente envolvidas no processo educacional.
A primeira questão a considerar é, pois, por que dezenas de milhares de estudantes e professores optaram por uma tática violenta (ocupação é violência), descartando liminarmente o diálogo com as autoridades do governo, com os especialistas que trabalharam no projeto da reforma e com outras comunidades potencialmente interessadas. Por que uma tática que os isola, quando só teriam a ganhar ampliando o alcance de sua manifestação? Por que não uma série bem organizada de debates, pacífica e ordeira, tecnologia que nossa sociedade, felizmente, domina há tanto tempo?
Sabemos que o comportamento de um grupo social numeroso nunca se deve a uma causa única. Há sempre uma conjunção de motivos. Na reflexão a seguir, abordarei três hipóteses, em grau crescente de plausibilidade, designadas como civismo educacional, ativismo romântico e politização de esquerda.
A hipótese do civismo educacional já foi parcialmente suscitada. Debater a reforma do ensino é um direito de todo cidadão. Entre os docentes e discentes, ou seja, na comunidade mais diretamente envolvida no processo educacional, é razoável admitir que esse direito seja vivenciado de modo mais intenso, como um dever cívico. É difícil crer que essa motivação tenha sido suficiente para levar centenas de milhares de secundaristas a se integrar ao movimento, invadindo escolas e nelas permanecendo por vários dias. Presumivelmente, uma atitude cívica de tal intensidade teria mais chance de se desenvolver entre adultos, principalmente entre os mais bem informados sobre as questões em jogo. Admitamos, porém, que a hipótese do civismo ajude a compreender por que uma parcela dos participantes vê sentido na tática de ocupar escolas.
Minha segunda hipótese é a do ativismo romântico. Para o jovem inclinado ao romantismo, a “normalidade burguesa” é um tédio insuportável. Ele deseja ardorosamente mudar a sociedade, mas não sabe como. Não conseguindo identificar-se com a sociedade existente e não atinando com os fundamentos da ordem política democrática, ele não atura as convenções e instituições que lhe servem de base, vendo-as como um mundo de aparências e hipocrisia. Durante o século 20 o romantismo alimentou todo tipo de fantasia revolucionária; e, ainda hoje, por toda parte e todas as classes e grupos etários há estudantes, intelectuais, artistas e clérigos imbuídos da crença de que só através dessa fonte fáustica chegarão à plena posse de sua alma e ao sentido de sua vida. Num país como o Brasil, socialmente dilacerado e dilacerante, essa forma de romantismo compreensivelmente se alastra com facilidade, se não como uma motivação destrutiva consciente, ao menos como uma tentativa de experimentar situações “contraculturais”, à margem da sociedade.
Mais robusta, entretanto, parece-me ser a hipótese ideológica, ou seja, a da politização de esquerda. Ninguém ignora que o PT e os pequenos partidos comunistas disputam acirradamente o controle do movimento estudantil, geralmente apoiados por uma parcela do corpo docente. Um leitor desavisado poderá surpreender-se com essa afirmação. Esses partidos e suas facções agem orientados pelo que chamam de socialismo. Mas como, se a URSS desmoronou há um quarto de século? Se a China, desde Deng Xiaoping, abandonou suas antigas crenças a respeito da cor do gato, interessando-se apenas em saber se ele come ratos? Sem esquecer que Cuba, com a bancarrota soviética, virou carta fora do baralho. O que resta é a Coreia do Norte brincando de bomba atômica e a Venezuela a um passo de sua tragédia anunciada. Lembremos, como arremate, que a recente eleição municipal e a Operação Lava Jato reduziram o PT a pó de traque.
Contra esse pano de fundo de tantos fiascos, como compreender que as organizações comunistas conservem sua influência e até consigam se expandir no meio estudantil? Dado o espaço disponível, limitar-me-ei a duas observações sucintas. Primeiro, as crenças antiliberais, entre as quais o comunismo se destaca, correspondem com exatidão à noção de ideologia como o oposto do conhecimento racional. Caracterizam-se por uma incapacidade profunda de assimilar e processar informações novas, contrárias ao sentido que lhes é inerente.
Nas condições atuais, justamente por terem perdido seus referenciais internacionais, as esquerdas ditas socialistas regridem a um mero “movimentismo” sustentado em elaborações intelectuais quase totalmente vazias de conteúdo. O leitor interessado em apreciar este ponto pode esquecer seu Marx, vá direto às Reflexões sobre a Violência de George Sorel, o inventor do anarco-sindicalismo. O conteúdo das ideias – Sorel ensinou – é uma questão secundária. Os “oprimidos” aprendem é pelo movimento, por uma luta incessante. Para tanto basta um mito. Pode ser a figura de um populista corrupto ou uma narrativa maniqueísta do tipo “nós contra a elite”. Qualquer mito serve e quanto mais simples, melhor. Os “oprimidos” não precisam queimar pestanas em cima dos cartapácios de Marx.
*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras
Como as organizações comunistas ainda mantêm sua influência no meio estudantil?
O sangue do adolescente esfaqueado em Curitiba na última segunda-feira já seria motivo mais que suficiente para tentarmos entender melhor o movimento de ocupação de escolas deflagrado por estudantes secundaristas, apoiados, em alguns casos, por docentes e universitários. Mas a amplitude do movimento suscita questões importantes sobre a presente situação brasileira.
O objetivo declarado, bem o sabemos, é protestar contra a reforma do ensino médio proposta pelo governo Temer. A reforma é uma tentativa de modernizar o currículo, tornando-o mais flexível. Pretende reduzir o número de matérias obrigatórias a fim de aumentar a concentração em Português, Inglês e Matemática. Isso é bom ou ruim? É óbvio que essa pergunta interessa a todos os cidadãos brasileiros, a todas as comunidades de que se compõe a nossa sociedade, não apenas às comunidades diretamente envolvidas no processo educacional.
A primeira questão a considerar é, pois, por que dezenas de milhares de estudantes e professores optaram por uma tática violenta (ocupação é violência), descartando liminarmente o diálogo com as autoridades do governo, com os especialistas que trabalharam no projeto da reforma e com outras comunidades potencialmente interessadas. Por que uma tática que os isola, quando só teriam a ganhar ampliando o alcance de sua manifestação? Por que não uma série bem organizada de debates, pacífica e ordeira, tecnologia que nossa sociedade, felizmente, domina há tanto tempo?
Sabemos que o comportamento de um grupo social numeroso nunca se deve a uma causa única. Há sempre uma conjunção de motivos. Na reflexão a seguir, abordarei três hipóteses, em grau crescente de plausibilidade, designadas como civismo educacional, ativismo romântico e politização de esquerda.
A hipótese do civismo educacional já foi parcialmente suscitada. Debater a reforma do ensino é um direito de todo cidadão. Entre os docentes e discentes, ou seja, na comunidade mais diretamente envolvida no processo educacional, é razoável admitir que esse direito seja vivenciado de modo mais intenso, como um dever cívico. É difícil crer que essa motivação tenha sido suficiente para levar centenas de milhares de secundaristas a se integrar ao movimento, invadindo escolas e nelas permanecendo por vários dias. Presumivelmente, uma atitude cívica de tal intensidade teria mais chance de se desenvolver entre adultos, principalmente entre os mais bem informados sobre as questões em jogo. Admitamos, porém, que a hipótese do civismo ajude a compreender por que uma parcela dos participantes vê sentido na tática de ocupar escolas.
Minha segunda hipótese é a do ativismo romântico. Para o jovem inclinado ao romantismo, a “normalidade burguesa” é um tédio insuportável. Ele deseja ardorosamente mudar a sociedade, mas não sabe como. Não conseguindo identificar-se com a sociedade existente e não atinando com os fundamentos da ordem política democrática, ele não atura as convenções e instituições que lhe servem de base, vendo-as como um mundo de aparências e hipocrisia. Durante o século 20 o romantismo alimentou todo tipo de fantasia revolucionária; e, ainda hoje, por toda parte e todas as classes e grupos etários há estudantes, intelectuais, artistas e clérigos imbuídos da crença de que só através dessa fonte fáustica chegarão à plena posse de sua alma e ao sentido de sua vida. Num país como o Brasil, socialmente dilacerado e dilacerante, essa forma de romantismo compreensivelmente se alastra com facilidade, se não como uma motivação destrutiva consciente, ao menos como uma tentativa de experimentar situações “contraculturais”, à margem da sociedade.
Mais robusta, entretanto, parece-me ser a hipótese ideológica, ou seja, a da politização de esquerda. Ninguém ignora que o PT e os pequenos partidos comunistas disputam acirradamente o controle do movimento estudantil, geralmente apoiados por uma parcela do corpo docente. Um leitor desavisado poderá surpreender-se com essa afirmação. Esses partidos e suas facções agem orientados pelo que chamam de socialismo. Mas como, se a URSS desmoronou há um quarto de século? Se a China, desde Deng Xiaoping, abandonou suas antigas crenças a respeito da cor do gato, interessando-se apenas em saber se ele come ratos? Sem esquecer que Cuba, com a bancarrota soviética, virou carta fora do baralho. O que resta é a Coreia do Norte brincando de bomba atômica e a Venezuela a um passo de sua tragédia anunciada. Lembremos, como arremate, que a recente eleição municipal e a Operação Lava Jato reduziram o PT a pó de traque.
Contra esse pano de fundo de tantos fiascos, como compreender que as organizações comunistas conservem sua influência e até consigam se expandir no meio estudantil? Dado o espaço disponível, limitar-me-ei a duas observações sucintas. Primeiro, as crenças antiliberais, entre as quais o comunismo se destaca, correspondem com exatidão à noção de ideologia como o oposto do conhecimento racional. Caracterizam-se por uma incapacidade profunda de assimilar e processar informações novas, contrárias ao sentido que lhes é inerente.
Nas condições atuais, justamente por terem perdido seus referenciais internacionais, as esquerdas ditas socialistas regridem a um mero “movimentismo” sustentado em elaborações intelectuais quase totalmente vazias de conteúdo. O leitor interessado em apreciar este ponto pode esquecer seu Marx, vá direto às Reflexões sobre a Violência de George Sorel, o inventor do anarco-sindicalismo. O conteúdo das ideias – Sorel ensinou – é uma questão secundária. Os “oprimidos” aprendem é pelo movimento, por uma luta incessante. Para tanto basta um mito. Pode ser a figura de um populista corrupto ou uma narrativa maniqueísta do tipo “nós contra a elite”. Qualquer mito serve e quanto mais simples, melhor. Os “oprimidos” não precisam queimar pestanas em cima dos cartapácios de Marx.
*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras
Equilíbrio necessário - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 30/10
A operação Lava Jato não existe para dizimar a vida político-partidária do País
É extremamente positivo constatar que o apoio do juiz Sergio Moro ao pacote de medidas anticorrupção formulado pelo Ministério Público Federal (MPF) – e atualmente em discussão na Câmara dos Deputados – não o impede de reconhecer a conveniência de o Congresso, após discussão do assunto, concluir pela não aprovação de algumas das propostas. Em audiência pública realizada na segunda-feira passada em Curitiba, Moro mencionou especificamente essa possibilidade em relação à proposta do MPF de utilizar no processo provas ilícitas obtidas com boa-fé. “Se o problema é esse, então tira essa parte”, disse o juiz.
O pacote anticorrupção é uma boa iniciativa do MPF, mas nem tudo o que lá está é positivo. Como lembrou Sergio Moro, não se pode apresentar o pacote de medidas “como os dez mandamentos. Foi feito um projeto e ele foi colocado no espaço próprio para esse debate: o Parlamento”. Além da proposta de validação de provas ilícitas, que é um evidente abuso processual, também não merece aprovação pelo Congresso o chamado teste de integridade para servidor público, com a “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública”. Além de invasiva, a medida inverte o papel do Estado, colocando-o como corruptor. Não parece ser esse um caminho adequado para combater a corrupção.
Semelhante equilíbrio ao que se observa na posição do juiz Sergio Moro sobre o pacote de medidas anticorrupção pode e deve ser aplicado à Lava Jato. A operação é bem-vinda e necessária, mas o seu bom encaminhamento exige sabedoria para distinguir com isenção suas qualidades e suas deficiências, seus acertos e seus riscos. Isso não significa constranger a ação da força-tarefa e muito menos restringir o alcance das investigações e dos julgamentos. Importa apenas não cair na esparrela de considerar crime toda e qualquer doação a partidos ou políticos – o que significaria a proscrição da atividade político-partidária e a consequente castração da democracia, tão grave quanto a provocada pela corrupção que se apura.
Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a inconstitucionalidade das doações eleitorais feitas por pessoas jurídicas. No entanto, entre 1993, ano em que as doações foram liberadas, e 2015, quando o STF as proibiu, elas eram legalmente permitidas, por mais equivocada que fosse – como de fato era – aquela prática. Dessa forma, não deve, nem pode, a Lava Jato tratar todas as doações eleitorais feitas por pessoas jurídicas como se fossem ilegais.
Há as doações flagrantemente ilícitas, como as reveladas pelo escândalo do petrolão, que devem ser exemplarmente punidas. Há as doações que se configuram como caixa 2 dos partidos ou candidatos e, por serem crimes eleitorais, devem ser julgadas e punidas pela Justiça Eleitoral. E há ainda as doações legais, que não foram fruto de coação por parte de quem estava no poder nem eram contrapartida de favores ilícitos prestados aos doadores, além de regularmente registradas pelos partidos políticos.
Diferenciar as várias modalidades de doação não é apenas uma questão de justiça com os partidos e os políticos que receberam legalmente doações de empresas no período em que tal prática era permitida pelo ordenamento jurídico. É resguardar as próprias instituições políticas.
Vale lembrar que, nos anos em que a prática foi permitida, todo o sistema político dependeu das doações empresariais. Assim, uma incriminação generalizada dessas doações teria o perverso efeito de extirpar todos os envolvidos no processo político, levando, por consequência, a uma espécie de implosão das próprias instituições.
A força e a autoridade da Lava Jato residem no seu papel de saneamento e recuperação da política nacional. A operação não existe para dizimar a vida político-partidária do País, como se o seu resultado final tivesse de ser um cenário de absoluta devastação das pessoas e das instituições. Ter clara essa distinção de objetivos é grave responsabilidade de todos os envolvidos na operação.
A operação Lava Jato não existe para dizimar a vida político-partidária do País
É extremamente positivo constatar que o apoio do juiz Sergio Moro ao pacote de medidas anticorrupção formulado pelo Ministério Público Federal (MPF) – e atualmente em discussão na Câmara dos Deputados – não o impede de reconhecer a conveniência de o Congresso, após discussão do assunto, concluir pela não aprovação de algumas das propostas. Em audiência pública realizada na segunda-feira passada em Curitiba, Moro mencionou especificamente essa possibilidade em relação à proposta do MPF de utilizar no processo provas ilícitas obtidas com boa-fé. “Se o problema é esse, então tira essa parte”, disse o juiz.
O pacote anticorrupção é uma boa iniciativa do MPF, mas nem tudo o que lá está é positivo. Como lembrou Sergio Moro, não se pode apresentar o pacote de medidas “como os dez mandamentos. Foi feito um projeto e ele foi colocado no espaço próprio para esse debate: o Parlamento”. Além da proposta de validação de provas ilícitas, que é um evidente abuso processual, também não merece aprovação pelo Congresso o chamado teste de integridade para servidor público, com a “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública”. Além de invasiva, a medida inverte o papel do Estado, colocando-o como corruptor. Não parece ser esse um caminho adequado para combater a corrupção.
Semelhante equilíbrio ao que se observa na posição do juiz Sergio Moro sobre o pacote de medidas anticorrupção pode e deve ser aplicado à Lava Jato. A operação é bem-vinda e necessária, mas o seu bom encaminhamento exige sabedoria para distinguir com isenção suas qualidades e suas deficiências, seus acertos e seus riscos. Isso não significa constranger a ação da força-tarefa e muito menos restringir o alcance das investigações e dos julgamentos. Importa apenas não cair na esparrela de considerar crime toda e qualquer doação a partidos ou políticos – o que significaria a proscrição da atividade político-partidária e a consequente castração da democracia, tão grave quanto a provocada pela corrupção que se apura.
Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a inconstitucionalidade das doações eleitorais feitas por pessoas jurídicas. No entanto, entre 1993, ano em que as doações foram liberadas, e 2015, quando o STF as proibiu, elas eram legalmente permitidas, por mais equivocada que fosse – como de fato era – aquela prática. Dessa forma, não deve, nem pode, a Lava Jato tratar todas as doações eleitorais feitas por pessoas jurídicas como se fossem ilegais.
Há as doações flagrantemente ilícitas, como as reveladas pelo escândalo do petrolão, que devem ser exemplarmente punidas. Há as doações que se configuram como caixa 2 dos partidos ou candidatos e, por serem crimes eleitorais, devem ser julgadas e punidas pela Justiça Eleitoral. E há ainda as doações legais, que não foram fruto de coação por parte de quem estava no poder nem eram contrapartida de favores ilícitos prestados aos doadores, além de regularmente registradas pelos partidos políticos.
Diferenciar as várias modalidades de doação não é apenas uma questão de justiça com os partidos e os políticos que receberam legalmente doações de empresas no período em que tal prática era permitida pelo ordenamento jurídico. É resguardar as próprias instituições políticas.
Vale lembrar que, nos anos em que a prática foi permitida, todo o sistema político dependeu das doações empresariais. Assim, uma incriminação generalizada dessas doações teria o perverso efeito de extirpar todos os envolvidos no processo político, levando, por consequência, a uma espécie de implosão das próprias instituições.
A força e a autoridade da Lava Jato residem no seu papel de saneamento e recuperação da política nacional. A operação não existe para dizimar a vida político-partidária do País, como se o seu resultado final tivesse de ser um cenário de absoluta devastação das pessoas e das instituições. Ter clara essa distinção de objetivos é grave responsabilidade de todos os envolvidos na operação.
Curva de aprendizagem - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 30/10
SÃO PAULO - O eleitor é um bicho que aprende com a experiência. Talvez não o suficiente para aposentar de vez todos os demagogos que tentam ludibriá-lo nem para driblar as peças mais sutis pregadas pelo acaso, mas ele sai um pouquinho mais esperto a cada pleito que passa.
Eu não chegaria a dizer que essa curva de aprendizagem contém a salvação da democracia. Ela, porém, parece ser robusta o bastante para nos livrar de erros muito grosseiros e de populismos que já fracassaram.
Excluídas situações muito excepcionais, democracias rejeitam os candidatos mais extremistas. E isso pode ser visto como algo positivo, já que os radicais tendem a tentar fazer com que o mundo se adapte às suas teorias e não o contrário. Raramente uma teoria é tão boa que consiga dar conta de toda a realidade.
Outra propriedade notável da aprendizagem democrática é que fica difícil enganar o eleitor duas vezes com o mesmo truque. Seria improvável, hoje, alguém vencer uma disputa propondo um congelamento de preços, por exemplo. As pessoas aprenderam que isso não funciona, o que força o demagogo a pelo menos buscar novas mandracarias. Não resolve o problema do populismo, mas torna a vida menos monótona.
Algo que ficou claro neste pleito municipal, que já se insinuava em eleições anteriores, é que o cidadão está descobrindo que, se quiser, pode deixar de votar, apesar do dispositivo legal que o força a fazê-lo. Basta que se justifique ou que pague uma multa, que raramente ultrapassa o valor irrisório de R$ 3,51.
Com isso, o voto obrigatório vai cada vez mais se convertendo em justificativa obrigatória. É um sinal claro de que já passa da hora de o Congresso eliminar a anacrônica necessidade de o cidadão dar satisfações à Justiça, sob pena de transformar a eleição —momento culminante da democracia— em mais um dos inúmeros incômodos burocráticos a que o Estado submete o cidadão.
SÃO PAULO - O eleitor é um bicho que aprende com a experiência. Talvez não o suficiente para aposentar de vez todos os demagogos que tentam ludibriá-lo nem para driblar as peças mais sutis pregadas pelo acaso, mas ele sai um pouquinho mais esperto a cada pleito que passa.
Eu não chegaria a dizer que essa curva de aprendizagem contém a salvação da democracia. Ela, porém, parece ser robusta o bastante para nos livrar de erros muito grosseiros e de populismos que já fracassaram.
Excluídas situações muito excepcionais, democracias rejeitam os candidatos mais extremistas. E isso pode ser visto como algo positivo, já que os radicais tendem a tentar fazer com que o mundo se adapte às suas teorias e não o contrário. Raramente uma teoria é tão boa que consiga dar conta de toda a realidade.
Outra propriedade notável da aprendizagem democrática é que fica difícil enganar o eleitor duas vezes com o mesmo truque. Seria improvável, hoje, alguém vencer uma disputa propondo um congelamento de preços, por exemplo. As pessoas aprenderam que isso não funciona, o que força o demagogo a pelo menos buscar novas mandracarias. Não resolve o problema do populismo, mas torna a vida menos monótona.
Algo que ficou claro neste pleito municipal, que já se insinuava em eleições anteriores, é que o cidadão está descobrindo que, se quiser, pode deixar de votar, apesar do dispositivo legal que o força a fazê-lo. Basta que se justifique ou que pague uma multa, que raramente ultrapassa o valor irrisório de R$ 3,51.
Com isso, o voto obrigatório vai cada vez mais se convertendo em justificativa obrigatória. É um sinal claro de que já passa da hora de o Congresso eliminar a anacrônica necessidade de o cidadão dar satisfações à Justiça, sob pena de transformar a eleição —momento culminante da democracia— em mais um dos inúmeros incômodos burocráticos a que o Estado submete o cidadão.
A anistia vem a galope - BERNARDO MELLO FRANCO
FOLHA DE SP - 30/10
BRASÍLIA - Enquanto a torcida se distrai com as eleições municipais, os deputados articulam uma nova jogada na Câmara. O plano é driblar o Ministério Público e aprovar uma anistia geral ao caixa dois. Se der certo, será um gol de placa do sistema político ameaçado pela Lava Jato.
A ideia é ousada: usar um pacote moralizador para legalizar o financiamento ilegal de campanhas. Os parlamentares prometem aprovar a criminalização do caixa dois, uma das chamadas dez medidas contra a corrupção. Parece boa notícia, mas há um detalhe. Ao proibir o trambique no futuro, a Câmara quer perdoar quem o praticou no passado.
O lance já foi ensaiado em setembro. A bola não entrou graças a deputados da Rede e do PSOL, que se insurgiram contra o acordo fechado pelos grandes partidos. Agora a anistia ameaça voltar a galope. O motivo da pressa é a delação da Odebrecht, que deve entregar mais de 200 políticos de todas as siglas.
O novo acordão para "estancar a sangria" tem o aval do governo Temer e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Na quarta (26), ele repetiu uma tese dos réus do mensalão: caixa dois e corrupção seriam "coisas distintas", sem ligação entre si.
Em entrevista a Mario Sergio Conti, na Globo News, o deputado indicou que apoia o perdão ao financiamento irregular das eleições passadas. "Nós temos que dar um corte e dizer que daqui para a frente está criminalizado", disse, apesar de a lei já prever punições ao caixa dois.
Questionado se estava defendendo uma anistia a criminosos, Maia abriu o jogo: "Alguma solução vai ter que ser dada. Eu acho que anistia é uma palavra forte". De falta de transparência, não poderemos acusá-lo.
*****
Na véspera da decisão entre Crivella e Freixo, brancos, nulos e indecisos ainda somavam 27% dos cariocas, segundo o Datafolha. Eles vão escolher o novo prefeito do Rio —seja por ação ou por omissão.
BRASÍLIA - Enquanto a torcida se distrai com as eleições municipais, os deputados articulam uma nova jogada na Câmara. O plano é driblar o Ministério Público e aprovar uma anistia geral ao caixa dois. Se der certo, será um gol de placa do sistema político ameaçado pela Lava Jato.
A ideia é ousada: usar um pacote moralizador para legalizar o financiamento ilegal de campanhas. Os parlamentares prometem aprovar a criminalização do caixa dois, uma das chamadas dez medidas contra a corrupção. Parece boa notícia, mas há um detalhe. Ao proibir o trambique no futuro, a Câmara quer perdoar quem o praticou no passado.
O lance já foi ensaiado em setembro. A bola não entrou graças a deputados da Rede e do PSOL, que se insurgiram contra o acordo fechado pelos grandes partidos. Agora a anistia ameaça voltar a galope. O motivo da pressa é a delação da Odebrecht, que deve entregar mais de 200 políticos de todas as siglas.
O novo acordão para "estancar a sangria" tem o aval do governo Temer e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Na quarta (26), ele repetiu uma tese dos réus do mensalão: caixa dois e corrupção seriam "coisas distintas", sem ligação entre si.
Em entrevista a Mario Sergio Conti, na Globo News, o deputado indicou que apoia o perdão ao financiamento irregular das eleições passadas. "Nós temos que dar um corte e dizer que daqui para a frente está criminalizado", disse, apesar de a lei já prever punições ao caixa dois.
Questionado se estava defendendo uma anistia a criminosos, Maia abriu o jogo: "Alguma solução vai ter que ser dada. Eu acho que anistia é uma palavra forte". De falta de transparência, não poderemos acusá-lo.
*****
Na véspera da decisão entre Crivella e Freixo, brancos, nulos e indecisos ainda somavam 27% dos cariocas, segundo o Datafolha. Eles vão escolher o novo prefeito do Rio —seja por ação ou por omissão.
Novo pacto partidário - MERVAL PEREIRA
O Globo - 30/10
As eleições municipais chegam hoje ao seu desfecho reafirmando um novo pacto político que dá, ao governo de Michel Temer, respaldo que se reflete no predomínio de sua aliança partidária nas prefeituras brasileiras e no número de vereadores eleitos. Essa nova configuração político-partidária já teve consequência na aprovação, com folga, na Câmara, do teto de gastos, que agora vai para o Senado com amplas condições de ser aprovado.
O PMDB manteve-se como o partido com maior número de prefeituras e vereadores do país, embora tenha crescido apenas residualmente, de 1015 prefeituras em 2012 para 1028 no primeiro turno. O PSDB também manteve o segundo lugar em número de prefeituras, crescendo 15% — de 686 eleitos em 2012 para 793 nesse primeiro turno —, foi o vencedor das eleições se levarmos em conta o número de capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores, que concentram quase 38% da população do país.
O partido, que tem hoje 18 prefeituras desse grupo formado por 93 cidades, elegeu seus candidatos em 14 municípios e está no segundo turno em 19 disputas, com chance de vitória em 14 delas. Os tucanos governarão 38 milhões de pessoas, com chances de aumentar sua influência para cerca de 50 milhões de pessoas no segundo turno, quando têm possibilidade de eleger prefeitos em pelo menos 4 das 8 cidades que disputa.
Suas principais vitórias no primeiro turno foram em São Paulo, com João Doria, e em Teresina (PI), com a reeleição de Firmino Filho. A força do PSDB fica mais realçada pela comparação com a derrocada do PT, que sai das urnas com uma queda de cerca de 50% do número de prefeitos eleitos — de 630 para 256 —, o que leva o partido a voltar no tempo, na primeira eleição municipal depois da vitória de Lula em 2002.
A legenda, que tinha 14 prefeitos no grupo dos maiores municípios do país, reelegeu apenas Marcus Alexandre em Rio Branco e disputa em Recife com candidato próprio, mas provavelmente João Paulo perderá para Geraldo Julio, do PSB. A sigla perdeu as prefeituras de São Paulo e Goiânia, e de cidades importantes no estado de São Paulo, onde cresceu a liderança do PSDB no interior com o governador Geraldo Alckmin.
O PMDB tem a possibilidade de melhorar sua presença na lista das maiores cidades brasileiras, pois elegeu prefeitos em sete desses municípios no primeiro turno e está no segundo turno em 14 cidades, sendo seis capitais — Cuiabá, Florianópolis, Goiânia, Macapá, Maceió e Porto Alegre.
Além de consolidar a nova base político partidária de apoio ao governo Temer, a eleição municipal teve o papel de iniciar o arranjo de forças para a disputa presidencial de 2018. O PSD passou de 498 prefeitos eleitos em 2012 para 539 neste ano e ficou com a terceira posição como legenda com mais vitórias, passando o PT, que caiu para o décimo lugar entre os partidos.
Em seguida, vem o PP, que tinha 476 eleitos há quatro anos e agora tem 496. O PMDB tem um acordo tácito de não tentar reeleger o presidente Temer, e o PSDB conta com o cumprimento da promessa para indicar o representante do novo grupo político. Mas antes terá que resolver suas disputas internas.
Mesmo perdendo 46 prefeituras, o PSB ainda é o quinto partido com mais vitórias nesta eleição municipal, elegendo 416 prefeitos e fortalecendo a aliança com o PSDB do governador paulista Geraldo Alckmin. Em Belo Horizonte, mais uma vez o senador Aécio Neves joga seu destino político numa disputa eleitoral cujos riscos menosprezou.
Só no segundo turno, quando o candidato Kalil do PHS passou à frente do tucano João Leite, é que o PSDB mobilizou sua tropa de elite para intervir na campanha. É possível que consiga reverter a situação, mas uma derrota custará caro para Aécio em termos de prestígio para se lançar novamente como candidato tucano à presidência.
Por seu lado, o PDT passou a ser o partido de oposição que elegeu mais prefeitos, conquistando 27 prefeituras a mais do que em 2012, passando para 334. Com isso, já está se colocando como protagonista para a eleição presidencial, lançando Ciro Gomes e quase que exigindo o apoio do PT.
As eleições municipais chegam hoje ao seu desfecho reafirmando um novo pacto político que dá, ao governo de Michel Temer, respaldo que se reflete no predomínio de sua aliança partidária nas prefeituras brasileiras e no número de vereadores eleitos. Essa nova configuração político-partidária já teve consequência na aprovação, com folga, na Câmara, do teto de gastos, que agora vai para o Senado com amplas condições de ser aprovado.
O PMDB manteve-se como o partido com maior número de prefeituras e vereadores do país, embora tenha crescido apenas residualmente, de 1015 prefeituras em 2012 para 1028 no primeiro turno. O PSDB também manteve o segundo lugar em número de prefeituras, crescendo 15% — de 686 eleitos em 2012 para 793 nesse primeiro turno —, foi o vencedor das eleições se levarmos em conta o número de capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores, que concentram quase 38% da população do país.
O partido, que tem hoje 18 prefeituras desse grupo formado por 93 cidades, elegeu seus candidatos em 14 municípios e está no segundo turno em 19 disputas, com chance de vitória em 14 delas. Os tucanos governarão 38 milhões de pessoas, com chances de aumentar sua influência para cerca de 50 milhões de pessoas no segundo turno, quando têm possibilidade de eleger prefeitos em pelo menos 4 das 8 cidades que disputa.
Suas principais vitórias no primeiro turno foram em São Paulo, com João Doria, e em Teresina (PI), com a reeleição de Firmino Filho. A força do PSDB fica mais realçada pela comparação com a derrocada do PT, que sai das urnas com uma queda de cerca de 50% do número de prefeitos eleitos — de 630 para 256 —, o que leva o partido a voltar no tempo, na primeira eleição municipal depois da vitória de Lula em 2002.
A legenda, que tinha 14 prefeitos no grupo dos maiores municípios do país, reelegeu apenas Marcus Alexandre em Rio Branco e disputa em Recife com candidato próprio, mas provavelmente João Paulo perderá para Geraldo Julio, do PSB. A sigla perdeu as prefeituras de São Paulo e Goiânia, e de cidades importantes no estado de São Paulo, onde cresceu a liderança do PSDB no interior com o governador Geraldo Alckmin.
O PMDB tem a possibilidade de melhorar sua presença na lista das maiores cidades brasileiras, pois elegeu prefeitos em sete desses municípios no primeiro turno e está no segundo turno em 14 cidades, sendo seis capitais — Cuiabá, Florianópolis, Goiânia, Macapá, Maceió e Porto Alegre.
Além de consolidar a nova base político partidária de apoio ao governo Temer, a eleição municipal teve o papel de iniciar o arranjo de forças para a disputa presidencial de 2018. O PSD passou de 498 prefeitos eleitos em 2012 para 539 neste ano e ficou com a terceira posição como legenda com mais vitórias, passando o PT, que caiu para o décimo lugar entre os partidos.
Em seguida, vem o PP, que tinha 476 eleitos há quatro anos e agora tem 496. O PMDB tem um acordo tácito de não tentar reeleger o presidente Temer, e o PSDB conta com o cumprimento da promessa para indicar o representante do novo grupo político. Mas antes terá que resolver suas disputas internas.
Mesmo perdendo 46 prefeituras, o PSB ainda é o quinto partido com mais vitórias nesta eleição municipal, elegendo 416 prefeitos e fortalecendo a aliança com o PSDB do governador paulista Geraldo Alckmin. Em Belo Horizonte, mais uma vez o senador Aécio Neves joga seu destino político numa disputa eleitoral cujos riscos menosprezou.
Só no segundo turno, quando o candidato Kalil do PHS passou à frente do tucano João Leite, é que o PSDB mobilizou sua tropa de elite para intervir na campanha. É possível que consiga reverter a situação, mas uma derrota custará caro para Aécio em termos de prestígio para se lançar novamente como candidato tucano à presidência.
Por seu lado, o PDT passou a ser o partido de oposição que elegeu mais prefeitos, conquistando 27 prefeituras a mais do que em 2012, passando para 334. Com isso, já está se colocando como protagonista para a eleição presidencial, lançando Ciro Gomes e quase que exigindo o apoio do PT.
Assinar:
Postagens (Atom)