quinta-feira, setembro 21, 2017

Brasileiros, mais um esforço para sermos liberais - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 21/09

Domingo, 10 de setembro, em Porto Alegre, o Santander Cultural encerrou a exposição "Queermuseu". O banco se apavorou diante das ameaças de boicote por clientes indignados com algumas das obras expostas –as quais ofenderiam a moral e instigariam pensamentos e atos impuros.

Uma parte, ao menos, dos protestos veio de pessoas que se declaram "liberais". Mamma mia. Liberal é quem defende, antes de mais nada, a liberdade do indivíduo (limitada apenas pelo Código Penal). Um liberal que não gostasse das obras expostas visitaria outra exposição. Ponto. Pretender boicotar o banco se a exposição não for fechada, essa é a conduta de grupos confessionais ou totalitários (fascistas ou comunistas).

Enquanto isso, os verdadeiros liberais, de esquerda ou de centro, tanto faz, escrevem colunas nos jornais, como eu agora, mas não agem. O que seria agir? Simples. Por sorte, sou cliente Itaú. Se eu fosse cliente Santander, acho que, nesta altura, fecharia minhas contas. Não aceitaria ser cliente de um banco que não corta nem sequer os pelos da orelha em nome da arte, mas chama seu serviço VIP de Van Gogh.

No dia 14, em Campo Grande, deputados registraram boletim de ocorrência alegando que um quadro exposto no Museu de Arte Contemporânea local faria apologia da pedofilia (de fato, a obra é uma denúncia).

Fora que a Constituição do Brasil é assim ludibriada, constato que, depois de milhares de abusos sexuais de crianças por parte de padres católicos (acobertados pela Igreja durante anos), ninguém denunciou inúmeras imagens que a Igreja propõe a seus fiéis e que alimentam a paixão pedofílica de seus ministros. Conheci padres atormentados, tentados e perseguidos pelas vinhetas do santo abraçando "com amor" as criancinhas que tanto gostavam dele. Se eu fosse procurador, é aí que procuraria a apologia do crime de pedofilia.

Poderia continuar com o caso da peça cancelada por decisão judicial no dia 15, em Jundiaí.

Mas o que me importa hoje é que o moralismo mais grosseiro exerce sua força política em chantagens eleitorais (ou comerciais, como com o Santander). Enquanto isso, os liberais se indignam e não agem –provavelmente pela antipatia que eles sentem por toda forma de ação coletiva. Mas como resistir a um obscurantismo no qual não gostaríamos de viver?

Um candidato que se diz liberal procura apoio nos fundamentalistas religiosos? Fora da nossa lista.

Um deputado promove uma lei para "curar" os gays ou, em geral, as pessoas que gozam de uma forma diferente da dele? Vamos pensar em como inserir, no próximo manual diagnóstico estatístico, o fundamentalismo religioso e moral como patologia?

Três anos atrás, em Veneza, entrei na igreja de San Zanipolo (João e Paulo). O guarda exigiu que a namorada de meu filho, que estava de shorts, escondesse suas pernas com uma manta.

"Quem instaurou essa regra?". Ele respondeu: "O papa". Perguntei se o papa tinha telefonado pessoalmente para o pároco. "Você não acha que o papa tem mais o que fazer?". Ele, consciente do ridículo, admitiu que não tinha sido o papa pessoalmente.

Perguntei se eu poderia entrar sem camisa. "Não!". Apontei para um crucifixo: "Ele estava nu". Ele respondeu que "Ele pode"... porque é Jesus". Concordei e continuei: "E os outros? Os mártires que aparecem nus nos quadros que decoram as igrejas do mundo inteiro?". Ele: "Também podem, porque foram supliciados". Minha vez: "Alguém que tivesse a cicatriz de uma cirurgia torácica ou cardíaca ou então as marcas do açoite por ter sido batido quando criança por pais sádicos, ele poderia? Você consideraria que ele foi supliciado?". "Não", ele respondeu, "os mártires morreram". "Então", resumi, "os mortos podem comparecer nus na igreja, os vivos, não. É isso?".

O homem ficou calado e irritado. Eu: "Sabe, eu sou terapeuta de adolescentes. Se seu problema for evitar que as pessoas se excitem sexualmente, você tem um problema: conheci dezenas de meninas que se masturbaram durante anos olhando para uma representação do momento em que arrancam os seios de santa Águeda mártir. E conheci dezenas de meninos que passaram anos se masturbando olhando para são Sebastião amarrado e transfixado de flechas. Os mártires são uma tremenda inspiração erótica...".

Os incendiários, às vezes, se fazem de bombeiros.

As mentiras do populismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 21/09

Mentir para ludibriar a boa-fé é o que Lula e o PT fazem tentando antecipar a campanha


Palanque é uma tribuna da qual o político fala diretamente ao povo em torno dele reunido. Nessas circunstâncias, é natural que seja usada uma linguagem coloquial, popular, acessível a todos. É uma questão de adaptar a mensagem, em sua forma, ao público-alvo. O conteúdo dessa mensagem, no entanto, independentemente da forma por meio da qual é transmitido, precisa ser verdadeiro. Mentir no palanque, na tentativa de conquistar apoio, é ludibriar a boa-fé do ouvinte. Pois é mentir para o povo o que Lula e o PT vêm fazendo desavergonhadamente na tentativa de antecipar a campanha presidencial.

“Desemprego bate recorde no Brasil. Falta de repasses fecha universidades. Temer corta milhares do Bolsa Família. Reformas dificultam aposentadorias e retiram direitos. Agora querem até retirar o seu direito de escolher um presidente.” Essas deslavadas mentiras, proclamadas em tom dramático por um locutor, estão no filmete de 30 segundos inserido pelo PT no horário político na TV. Ao final, surge a presidente nacional do partido nomeada por Lula, senadora Gleisi Hoffmann (PR): “O PT já demonstrou que é possível crescer com democracia, combatendo as desigualdades e gerando empregos. Vamos juntos defender o Brasil”.

O exemplo mais contundente da capacidade de proclamar mentiras, numa hábil e emotiva linguagem popular talhada para levar convertidos e desinformados ao delírio, foi dado no recente périplo eleitoral de Lula pelo Nordeste.

Lula no Recife, ao lado de Dilma Rousseff: “Eles querem acabar com o Bolsa Família. Querem acabar com o Minha Casa, Minha Vida. Querem vender a Petrobrás. Querem acabar com o BNDES. Querem vender o Banco do Brasil. Estão vendendo até a Casa da Moeda. (...) Se eles não sabem governar, por favor, deixem quem foi eleita pelo povo voltar e terminar o seu mandato”.

Lula em Altos, Piauí, contando que num comício seu havia um cidadão trabalhando com “uma maquininha de descascar laranja”: “Mandei comprar meia dúzia de laranjas e comecei a chupar laranja e jogava fora o bagaço. Foi quando vi que tinha umas crianças pegando os bagaços e comendo. Essa foi uma imagem que eu...”. Com a voz embargada, Lula começa a chorar e não termina a frase.

Lula recebendo o título de Doutor Honoris Causa na Universidade Federal do Piauí, em Teresina: “Tem uma coisa de que eu me orgulho, é o orgulho que o nordestino passou a ter de si mesmo depois que eu fui eleito presidente da República. (...) Nunca antes nesse país um presidente da República se reuniu com reitores. Eu, durante oito anos, todos os anos me reuni com todos os reitores das universidades juntos”.

No encerramento da excursão nordestina, na capital maranhense, São Luís, Lula já havia declarado, em evento anterior, que “um presidente precisa ter claro para quem governa”, surpreendendo quem imaginava que um presidente da República deve governar para todos. No comício final, caprichou na repetição de uma peça de retórica populista que invariavelmente deixa o público em êxtase. Após descrever detalhadamente a “apoteose” que viveu em cada uma das cidades visitadas, Lula fez uma pausa dramática e concluiu: “Estou cansado, mas estou feliz da vida. (...) Esse não é o cansaço da covardia. É o cansaço da batalha, da labuta. E estou aqui, cansado, para dizer para eles que se quiserem me derrotar que venham para a rua disputar voto”.

Fora do mundo da fantasia, tudo sugere que após a delação de Antonio Palocci e de seu próprio depoimento, pela segunda vez, perante o juiz Sergio Moro, quando se mostrou irritadiço e às vezes inseguro, num desempenho inconvincente, Lula talvez esteja começando a se convencer de que o melhor papel que poderá interpretar daqui para a frente será o de mártir. Poderá contar sempre, é claro, com a devoção daqueles em quem desperta a fé cega. Mas, se o caos político que ele legou ao País deixou muitos brasileiros perplexos quanto ao futuro, pelo menos ajudou-os a saber exatamente o que não querem mais.

Guerra cultural - RODRIGO CONSTANTINO

GAZETA DO POVO - PR - 21/09

A regra hoje é ridicularizar as virtudes “burguesas”, tidas como ultrapassadas ou sinais de uma época “opressora”


O Ocidente em geral, e os Estados Unidos em particular, talvez nunca tenham estado tão divididos como hoje. O grau de ruptura interna é enorme, e às vezes o abismo que separa os dois lados parece intransponível. Espera-se que não, pois foi a capacidade de união em prol de objetivos e valores comuns que permitiu um contínuo avanço de nossa civilização.

Tem sido marcante a sensação de que se vive hoje num só país, mas com duas culturas diametralmente opostas. E é exatamente o tema do livro One Nation, Two Cultures, de Gertrude Himmelfarb. A historiadora usa a expressão “revolução cultural” para definir o que vem acontecendo no país desde os anos 1960, e que tem abalado os principais pilares do Ocidente e da América.

Os valores austeros da era vitoriana já foram o credo oficial dos ocidentais, especialmente dos anglo-saxões. Trabalho, empenho, temperança, disciplina, religiosidade, essas eram virtudes que, de certa forma, a imensa maioria aceitava como louváveis, ainda que fossem violadas na prática. A hipocrisia sempre foi a homenagem que o vício prestou à virtude.


A “destruição criadora” também cobrou seu preço na vida moral da sociedade 

Mas ao menos essas eram características estimadas, almejadas, universalmente aplaudidas. Não mais. Se no começo do século 20 a geração da boemia representava uma minoria rebelde que desafiava tais valores, hoje essa postura ficou predominante: a regra é ridicularizar essas virtudes “burguesas”, tidas como ultrapassadas ou sinais de uma época “opressora”. Ali começava a primeira “revolução sexual”, que passaria por outros estágios ainda mais subversivos depois, como na década de 1960.

Schumpeter chegou a prever o fim do capitalismo com base nesses efeitos que ele exercia sobre os intelectuais. O capitalismo cria um ambiente crítico a tudo, que não poupa a autoridade moral ou as instituições estabelecidas, e que no fim pode se voltar contra ele mesmo. A burguesia ficaria espantada, previa Schumpeter, que a atitude racionalista não iria parar em reis e papas, mas sim continuar seu ataque à propriedade privada e a todo esquema de valores burgueses.

A previsão não se mostrou totalmente acertada, pois o capitalismo ainda sobrevive, expandindo-se em outras regiões antes dominadas por regimes socialistas. Mas parece inegável que a “destruição criadora” também cobrou seu preço na vida moral da sociedade. O capitalismo sobreviveu, diz Himmelfarb, mas ao custo do ethos burguês que originalmente o inspirou e o manteve por tanto tempo.

À medida que a sociedade enriquecia e se tornava mais aberta, a moralidade e a cultura eram liberalizadas e democratizadas, dando lugar a um sistema mais frouxo. Aquele estilo rebelde da elite que desafiava os pilares morais estabelecidos foi se espalhando por toda a sociedade, tornando-se acessível a todos. Deu-se, então, o que Daniel Bell chamou de “contradições culturais do capitalismo”: se por um lado seu funcionamento demanda restrições morais como disciplina e visão de longo prazo, por outro lado ele mesmo estimula um hedonismo e uma impaciência com todas essas restrições.

De fato, essa “contracultura” avançou com uma velocidade que nem o mais otimista dos revolucionários poderia esperar. Minorias tiveram motivo para celebrar conquistas concretas, sem dúvida, mas seria absurdo ignorar seus efeitos negativos também, inclusive para as próprias minorias. Basta pensar num exemplo: mais de 70% das crianças negras americanas nascem hoje fora do casamento.

Muitas mulheres mergulharam no mercado de trabalho e viram suas carreiras deslancharem, mas não sem o custo de perder um lugar seguro dentro da configuração tradicional do casamento, que permitia um investimento maior na formação dos filhos. As taxas de divórcio explodiram, prejudicando justamente os filhos. Diversas mães solteiras precisam se virar entre trabalho e casa, e acabam dependendo do Estado, o que fez com que o welfare State se agigantasse, significando mais impostos e menos liberdade.

A modelagem foi favorecendo aqueles que bancavam a vítima. Quem não chora não mama, diz o ditado. Com o governo subsidiando certos comportamentos, era apenas natural que eles fossem fomentados. Com o intuito de “liberar” todos dos asfixiantes “valores burgueses”, a revolução cultural ajudou a enfraquecer as virtudes que sempre tiveram efeitos estabilizadores e moralizantes na sociedade.

Há indícios claros de doenças morais por toda parte, como o colapso de princípios e hábitos éticos, a perda de respeito por autoridades e instituições, a ruptura das famílias, o declínio da civilidade, a vulgarização da alta cultura e a degradação da cultura popular. Riqueza e acesso à educação não são garantias de imunidade contra desordens morais. Na verdade, argumenta-se que a elite mais rica e educada tem alguma responsabilidade sobre a condição das classes sociais inferiores. Várias dessas ideias perniciosas nascem justamente na elite, não no povo.

A situação gera bastante incômodo, pois abala uma das crenças mais disseminadas no Ocidente: a de que o progresso moral é um subproduto inevitável do progresso material. Os otimistas que adotam tal premissa ignoram a experiência histórica, como no caso do declínio romano após o avanço material, que ajudou a corromper os valores morais. Os “liberais” celebram a prosperidade, apesar de focarem mais nas “desigualdades”, mas não percebem que a degradação de valores morais está ameaçando essa prosperidade e, acima de tudo, nossas liberdades.

Tem ocorrido uma crescente normalização dos desvios, e o que sempre foi norma tem sido tratado como o atual desvio a ser condenado. O Estado usurpou funções antes exercidas pelas famílias e igrejas, e nunca a dependência por parte do indivíduo foi tão grande. Diante desse quadro, há uma forte reação daqueles que estão revoltados com as inversões de valores, com a vulgaridade, a promiscuidade, a decadência moral.

O verdadeiro pluralismo depende da compreensão de que a persuasão é preferível à violência, e que as diferenças sejam tratadas com civilidade. Isso parece cada vez mais distante da realidade. Mas as chances de sucesso do Ocidente dependem da capacidade dessas pessoas em se unir em prol de um objetivo comum: resgatar os valores morais e culturais, independentemente da crença religiosa, evitando os extremos, assim como o relativismo exacerbado de hoje.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

Reativação chega ao Tesouro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 21/09

Os cofres da União começam a ser beneficiados pela recuperação do consumo e da produção e até pelo discreto aumento das contratações com registro em carteira


Com R$ 104,21 bilhões arrecadados em agosto, os cofres da União começam a ser beneficiados pela recuperação do consumo e da produção e até pelo discreto aumento das contratações, especialmente daquelas com registro em carteira. Apesar da melhora e da tendência positiva, o governo ainda vai depender de receitas atípicas – de concessões, privatizações e acordos com devedores do Fisco – para fechar as contas, no fim do ano, dentro dos limites previstos em lei. Neste momento, vários são os sinais positivos. A receita de agosto foi 10,78% maior que a de um ano antes, descontada a inflação. A receita do ano, de R$ 862,74 bilhões, ficou 1,73% acima do total conseguido nos meses correspondentes de 2016, expurgado o efeito inflacionário. O resultado de agosto e o acumulado em oito meses foram os melhores, para esses períodos, desde 2015, primeiro ano transcorrido inteiramente na recessão.

A reativação, embora lenta, já se espalha por toda a economia, como confirma a composição da receita de agosto. A melhora foi geral, como indica o confronto dos valores arrecadados com os números de igual mês do ano anterior. As comparações indicam tanto a movimentação maior dos negócios como o começo de melhora do emprego formal e o reforço do poder de compra associado ao recuo da inflação.

O Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido proporcionaram, juntos, uma arrecadação 24,60% maior que a de um ano antes. Foi o maior aumento observado nesse tipo de comparação. Mas a variação foi positiva também para o Cofins/PIS-Pasep (+11,12%), a contribuição para a Previdência (+4,44%),o Imposto de Renda da Pessoa Física (+8,58%), o Imposto de Importação (+6,52%), o Imposto sobre Produtos Industrializados (+9,98%) e demais itens administrados pela Receita Federal (+15,51%). Em todas essas comparações houve desconto da inflação.

Todas as grandes bases de arrecadação se fortaleceram – produção industrial (+2,50%), vendas do comércio varejista (+5,77%), massa nominal de salários (+0,63%) e valor em dólar das importações (+5,53%). O aumento do valor importado também é sinal de reativação da economia e de reação, embora lenta, do consumo final.

O valor arrecadado ainda teria sido 5,57% superior ao de agosto de 2016 se fossem eliminados os componentes atípicos, como o novo Refis e o aumento do PIS-Cofins sobre combustíveis, comentou o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias.

No entanto, apesar da melhora das condições normais da arrecadação, o governo dependerá de receitas especiais, até o fim do ano, para conseguir um déficit primário igual ou inferior a R$ 159 bilhões, meta recentemente aprovada pelo Congresso. A meta anterior era de R$ 129 bilhões.

O resultado primário é calculado sem a despesa líquida com juros. Só quando esse resultado se tornar positivo – dificilmente antes de 2022 – o governo voltará a liquidar normalmente a conta de juros. A partir daí será possível conter e até reduzir o peso do endividamento na economia brasileira. Esse controle dependerá de um persistente esforço de contenção de gastos, de recuperação de receita e de implementação de reformas, como a da Previdência.

Por enquanto, receitas especiais continuam sendo relevantes para as contas do governo. Esse quadro se manterá em 2018. Mas nem todo esforço tem dado certo. O governo projetou inicialmente uma receita de cerca de R$ 13 bilhões com o novo Refis. Os novos cálculos indicam cerca de R$ 8 bilhões, por causa dos obstáculos criados no Congresso. Surgiram dificuldades também para a arrecadação de precatórios depositados pelo Tesouro e nunca reclamados pelos beneficiários.

Os cálculos ainda incluíam, entre outros itens, uma receita de R$ 11 bilhões com a concessão de quatro usinas da Cemig. Pelo menos quanto a esse ponto surgiu uma boa notícia. A presidente do Superior Tribunal de Justiça, Laurita Vaz, suspendeu uma liminar contrária ao leilão. Cuidar do dinheiro público, enfim, é muito mais que uma questão de bom senso e de gestão financeira.

Desigualdade de oportunidades - ZEINA LATIF

ESTADÃO - 21/09

A desigualdade de renda não precisa ser, necessariamente, combatida. Em sociedades meritocráticas, é natural que a renda não seja igualmente distribuída, mesmo havendo igualdade de oportunidades aos indivíduos. Neste caso, a missão do Estado é proteger os grupos vulneráveis.

A desigualdade no Brasil, no entanto, tem outra razão principal: o mal funcionamento do Estado, que produz injustiça social e baixo crescimento da renda.

Em função das diferentes experiências dos países, a ideia de que é necessário escolher entre equidade e crescimento econômico precisa ser qualificada. É verdade que enfraquecer a meritocracia, inibindo o chamado “espírito animal”, pode até melhorar a distribuição de renda, mas às custas de menor crescimento da renda de todos. Por outro lado, políticas públicas socialmente injustas comprometem o crescimento de longo prazo ao prejudicar a formação de capital humano.

Se o país cresce e todos ficam igualmente mais ricos, isso é boa notícia, ainda que não haja avanço na distribuição de renda. Pesquisa recente de Marc Morgan sobre o Brasil vai nessa direção. Utilizando dados do IBGE e também do Imposto de Renda, ele mostra que não houve o avanço que se acreditava na distribuição de renda nos últimos quinze anos. Mas há boas notícias: a renda de todos cresceu. Melhor, os 50% mais pobres tiveram crescimento da renda em velocidade superior à dos 10% mais ricos. A classe média (os 40% do meio), no entanto, têm menos razões para celebrar, pois o crescimento da sua renda foi inferior à média.

Isso ajuda a explicar a popularidade de Lula e a “bronca” da classe média com os políticos.
O quadro, no entanto, é bastante desfavorável. Segundo o autor, os 10% mais ricos apropriam 55% da renda, contra 42% na China, uma país considerado desigual. Além disso, é possível que a desigualdade seja maior do que a revelada pela pesquisa, caso fosse considerada a renda líquida (de impostos) disponível (desconta despesas com saúde, educação e segurança). A classe média provavelmente sofre mais. Boa parte paga Imposto de Renda na fonte, escola e plano de saúde. O abatimento do IR não deveria ser igual para todos.

Promover a igualdade a qualquer custo é algo a ser evitado. Forçar a mão na tributação da elite pode incentivar a fuga de capitais e a queda do investimento, enquanto o paternalismo estimula a evasão escolar e desincentivar a procura de trabalho e o empreendedorismo.

O desafio do Brasil é triplo: promover a igualdade de oportunidades, eliminar distorções concentradoras de renda e conduzir reformas estruturais que permitam o País superar a “armadilha da renda média”.
Certamente, o foco nos pobres que não conseguem se inserir no mercado de trabalho, como no Bolsa Família, precisa ser preservado. Isso não concorre com as políticas de promoção do crescimento, pelo seu desenho, transparência e baixo custo (em torno de 0,5% do PIB).

Enquanto o país avança na agenda de promover o emprego, valem algumas recomendações aos governantes.

Primeiro, não brinquem com a macroeconomia. Inflação elevada e o desemprego prejudicam particularmente os mais pobres.

Segundo, cuidem da qualidade dos serviços públicos e sua focalização. Depois do emprego, essa é a melhor forma de combater a desigualdade. Meritocracia no setor público e parcerias com setor privado devem ser perseguidas. Serviço público gratuito não deveria ser para todos, como a universidade pública.

Terceiro, eliminem privilégios de servidores públicos ativos e também inativos que estão no topo da pirâmide.

Quarto, corrijam injustiças tributárias, como a “pejotinha”, alguns investimentos financeiros e outras renúncias tributárias.

A injustiça social não é boa para ninguém. Combater a desigualdade de oportunidades requer responsabilidade também da elite. Não apenas abrindo mão de privilégios e defendendo políticas públicas justas e eficazes, como também contribuindo para o treinamento e saúde do trabalhador de baixa renda.

O Brasil de Janot – e o nosso - DEMÉTRIO MAGNOLI

O Globo - 21/09

Procuradores que o seguem não escondem sua oposição à reforma previdenciária. Atrás da santa indignação contra a elite política, estão motivações corporativas



‘O Brasil é nosso! Precisamos trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país, colocando-o a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam cargos vistosos em nossa República.” As frases, que pertencem à linguagem da política, estão na carta de despedida de Rodrigo Janot a seus pares do Ministério Público (MP). Dado o desfecho do “caso Joesley”, a hipótese de que o paladino justiceiro elaborara a catilinária como manifesto de uma candidatura não poderá ser testada. Contudo, na hora da posse de Raquel Dodge, o documento proporciona a oportunidade de uma reflexão sobre “os rumos deste país” — o país no qual uma significativa corrente de procuradores opera como partido, erguendo a bandeira da salvação nacional.

Janot adora Janot. Numa passagem, ele elogia a si mesmo sob o pretexto de dignificar os “críticos” que “ajudaram-me a desviar do caminho da soberba”. Mas, quando alguns (poucos) “críticos” alertaram-no para a natureza escandalosa do acordo de impunidade firmado com Joesley Batista, o procurador-geral acusou-os de “deturpar o foco do debate” com a finalidade maléfica de ocultar “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. Joesley está na cadeia apesar de Janot — eis um epitáfio apropriado para o seu mandato.

Janot ama Janot. “Devo ter errado mais do que imagino”, sugere com a empáfia da falsa humildade, “mas nunca falhei por omissão, por covardia ou por acomodação”. As célebres “listas de Janot” seguem aí, suspensas no ar, com dezenas de políticos investigados mas nunca denunciados ou processados — e não por culpa do STF, mas de um procurador-geral pouco propenso a juntar provas aos seus múltiplos pedidos de abertura de inquérito. Quem é corrupto e quem não é? O sistema de Justiça solicita resposta nítida, tão célere quanto possível, à indagação. Mas o justiceiro que divide o Brasil em “todos os brasileiros”, de um lado, e a banda de “larápios egoístas e escroques”, de outro, prefere pregá-la eternamente ao firmamento, como peça central de um discurso político demagógico. Os corruptos agradecem.

Janot não junta provas, mas pede prisões à base de delações. Os acordos de delação firmados com Sérgio Machado e Delcídio do Amaral inspiraram o acordo espúrio com Joesley. Do primeiro, nasceram pedidos de prisão preventiva contra Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney, enquanto do segundo emanaram a prisão do banqueiro André Esteves e denúncias criminais contra Lula e Dilma Rousseff. Agora, porém, quase nada sobra daquelas duas delações perpassadas por mentiras comprovadas. No fim do arco-íris, o justiceiro sem medo ofereceu aos defensores dos acusados a brecha para exibir evidências do atropelo do devido processo legal. Janot minou o instituto da delação premiada, cavando a trincheira de combate escolhida pelas bancas de advogados célebres.

Janot enxerga-se como um desbravador. “Hoje, olhando para trás, percebo o quanto mudamos nesses quatro anos de caminhada”. Não é preciso olhar tão longe. Nos últimos conturbados meses, o justiceiro sem mácula mandou prender dois procuradores federais de seu círculo íntimo, Ângelo Goulart Villela e Marcelo Miller, sob a acusação de se bandearem para a cidadela do inimigo. A dupla história de punhaladas pelas costas revela que, de fato, como proclama um Janot shakespeariano, “há algo de podre no Reino da Dinamarca” — com a condição de interpretarmos a Dinamarca como metáfora do próprio MP. Não se sabe, ainda, se Goulart Villela e Miller são traidores. Conhece-se, contudo, a moldura das supostas traições: a estranha aliança entre o MP e os irmãos Batista. Janot, o destruidor, despede-se em meio a um cenário de ruínas.

Janot, o “primeiro da lista”, não compareceu à posse da sucessora, a “segunda da lista”, como nos recorda implicitamente sua carta repleta de insinuações. A ausência vale como proclamação: “o MP sou eu”, eis a mensagem do justiceiro que queria ser rei. O Brasil de Janot é uma República de facções corporativas com agendas políticas particulares — e em guerrilha perene umas com as outras. Goulart Villela sustenta a tese de que o procurador-geral tramou o célere acordo com Joesley para, derrubando Temer, barrar a ascensão de Raquel Dodge. Janot, o puro, usou o MP para contestar a reforma das leis trabalhistas. A corrente de procuradores que o segue não esconde sua oposição à reforma previdenciária. Atrás da santa indignação contra a elite política, ocultam-se indisfarçáveis motivações corporativas.

Dodge falou em Constituição, leis, liberdades e direitos, uma linguagem incompreensível para Janot. Confirmou seu apoio à investigação implacável da corrupção política, um compromisso pelo qual será julgada no tribunal da opinião pública. Mesmo sua referência infeliz à “harmonia dos Poderes”, sentença típica de um Brasil arcaico, incapaz de conviver com os pesos e contrapesos das democracias modernas, deveria ser traduzida como crítica ao salvacionismo de procuradores messiânicos. Depois do justiceiro, é tempo de reconstrução.