FOLHA DE SP - 14/03
Insegurança sobre as regras permeia o nosso cotidiano
A decisão do ministro Edson Fachin pela anulação dos processos do ex-presidente Lula pode ter causado barulho, mas não deveria surpreender. Anos depois do caso iniciado, o STF decidiu que ocorrera um erro. O tribunal não tinha competência para esse julgamento, e o processo teria de recomeçar.
Nada de novo. São muitos os processos desorientados no labirinto do Judiciário. Fica a dúvida se suas decisões contraditórias e inesperadas decorrem da complexidade do direito, da falta de procedimentos que orientem os tribunais ou do oportunismo em razão das circunstâncias.
Contratos de concessão são rompidos por prefeitos ou governadores. Seguem-se liminares e recursos que favorecem, ora a concessionária, ora o interventor. E os conflitos se prolongam a perder de vista, para prejuízo das empresas que realizaram investimentos.
O Judiciário, que deveria salvaguardar o direito, há muito tornou-se, paradoxalmente, causa de instabilidade.
Vale legislar sobre cláusula de barreira? Como fica a prisão em segunda instância?
A Constituição prevê um teto para a remuneração dos servidores públicos, mas poderes locais legislam em causa própria e atribuem a si auxílios que permitem ganhos extraordinários, por vezes validados por tribunais.
Posteriormente, instâncias superiores decidem que não é bem assim. Ocasionalmente, nem decidem, e o caso fica a descansar nas gavetas.
A insegurança sobre as regras permeia o nosso cotidiano. As idas e vindas sobre a interpretação das normas tornaram-se corriqueiras, como no tema da tributação. O ICMS faz ou não parte da base de cálculo na cobrança de tributos federais?
Durante anos, os tribunais disseram que sim. Depois, decidiu-se que não. Mas apenas para alguns casos. Quais mesmo?
Veja bem... há controvérsias. Depende de quando foi proposta a ação, se cabe ao tribunal aguardar a decisão do STF, entre outras variáveis. Deve-se analisar caso a caso, pois há dúvidas sobre a nova jurisprudência.
Essas interpretações oscilantes contribuem para um contencioso tributário de 75% do PIB. Apenas na esfera administrativa federal, o número chega a 15,9%. Em 2013, a mediana em países da OCDE era de 0,28%, na América Latina, de 0,19%.
As normas do direito deveriam orientar a conduta das pessoas e das empresas, estabilizando a vida em sociedade. Não é isso, contudo, o que ocorre por aqui.
Previsivelmente, muitos preferem investir em outros países do que no Brasil, o que colabora para nosso baixo crescimento de longa data.
Mais do que a economia, porém, sofre a democracia. O Judiciário falha em garantir, com consistência e celeridade, o Estado de Direito e suas regras que contribuem para o bem comum.
ESTADÃO - 14/03
Aung San Suu Kyi:‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’
“Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.
Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.
Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.
Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.
Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.
A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.
A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.
Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.
ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC
ESTADÃO - 14/03
Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários
Nas inolvidáveis palavras de Dilma Rousseff, então presidente da República, “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A máquina lulopetista de destruição de reputações era mesmo diabólica. Com razão, os eleitores demonstraram o desejo de dar um basta em tanta desfaçatez e passaram a castigar o PT nas urnas. O recado foi claro: em política, mesmo que alguns considerem válido “fazer o diabo”, não se pode fazer coisas que nem o diabo faria.
O presidente Jair Bolsonaro, contudo, parece disposto a cruzar todos os elásticos limites da pugna política. Em recente manifestação pública, leu uma carta de um suposto suicida, cuja morte o presidente atribuiu às medidas de restrição adotadas por governadores para conter a pandemia de covid-19.
A exploração de um alegado suicídio para fins políticos – atacar os governadores, a quem o presidente culpa pela situação econômica crítica no País – não tem paralelo na história nacional. Nenhum presidente da República foi tão longe nem tão baixo. Quem tenta capitalizar eleitoralmente a morte de um cidadão angustiado demonstra duas coisas: destempero e desespero.
O destempero se traduziu na forma de inúmeros palavrões e insinuações de conotação sexual – as preferidas do presidente – contra seus adversários. Nada disso é novidade, mas não custa lembrar que, sempre que faz isso, Bolsonaro viola o decoro inerente ao cargo que ocupa, com a agravante de que o faz nas dependências da residência oficial, usando equipamentos e pessoal pagos com dinheiro público – o que configura crime de responsabilidade, um dos tantos que Bolsonaro comete quase todos os dias.
Se a deseducação do presidente Bolsonaro não é novidade, o desespero é. Antes seguro de sua condição de franco favorito à reeleição, pela qual trabalha desde o momento em que vestiu a faixa, Bolsonaro dá sinais agora de que se sente ameaçado.
A provável entrada de Lula da Silva na disputa de 2022 agravou sua insegurança. Certamente informado a respeito de pesquisas que mostram sua reeleição cada vez mais incerta, sobretudo em razão da escalada da crise provocada pela pandemia, Bolsonaro tratou de intensificar sua busca por bodes expiatórios para fugir de uma responsabilidade que é primordialmente sua, na condição de presidente da República.
Em suas redes sociais, Bolsonaro disse que “nós aqui buscamos salvar empregos”, enquanto governadores como o de São Paulo, João Doria, “que não tem coração”, demonstram “uma tremenda ambição”, estão apenas “lutando pelo poder” e só querem “atingir a figura do presidente da República” com medidas de restrição social e econômica para conter a pandemia.
Bolsonaro levantou suspeitas sobre o número de mortos por covid-19, insinuando que está sendo inflado para prejudicá-lo, e igualou as medidas adotadas pelos governadores à decretação de estado de sítio. Nesse momento, entrou em seu terreno favorito: a possibilidade de se tornar ditador.
Citando a hipótese de convulsão social como consequência das medidas restritivas, com “invasão aos supermercados, fogo em ônibus, greves, piquetes e paralisações”, Bolsonaro disse que cabe a ele, como presidente, “garantir a nossa liberdade”. E completou: “Eu sou o garantidor da democracia”.
Julgando-se detentor de tamanho poder, Bolsonaro disse que lhe seria “fácil impor uma ditadura no Brasil”, bastando, para isso, conforme suas palavras, “levantar a caneta e falar ‘shazam’”. E ameaçou: “Eu faço o que o povo quiser. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo”, declarou Bolsonaro, para em seguida recordar com carinho da época da ditadura militar.
É bom levar a sério mais essa ameaça golpista, em se tratando de alguém com tão poucos freios morais. Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários, e violenta a inteligência alheia ao dizer que sempre defendeu a vacina e que nunca considerou a covid-19 uma “gripezinha” – mentiras que podem ser facilmente refutadas em inúmeros vídeos do próprio presidente na internet.
Quem é capaz disso é capaz de tudo.
FOLHA DE SP - 14/03
Antecipação eleitoral e incapacidade de Bolsonaro de agir sugerem volatilidade; é hora de elevar os juros
Na quarta-feira (17), o Copom (Comitê de Política Monetária) do Banco Central decidirá o valor da taxa básica de juros (Selic) que vigorará pelos próximos 40 dias (até a próxima reunião, quando pode ser mantida ou alterada). Em razão da epidemia, a taxa foi reduzida para 2% ao ano.
Estamos em meio a três choques de oferta. Houve uma desorganização das cadeias produtivas que reduziu os estoques da indústria até o varejo. Fato pouco estudado, mas tudo indica que a recuperação em “V” da economia mundial, após a queda brusca do 2º trimestre de 2020, foi muito mais intensa no consumo de mercadorias. A produção em casa de diversos serviços —alimentação, corte de cabelo, teletrabalho, entre tantos outros— gerou excesso de demanda por bens e insumos industriais.
O segundo choque de oferta foi a fortíssima depreciação do câmbio, que encareceu a oferta de bens importados.
O terceiro choque de oferta foi a elevação da demanda por grãos para a produção de ração para a suinocultura chinesa. Em 2019, o rebanho chinês foi atingido pela gripe suína africana, que gerou abate de 40%. Boa parte desse rebanho era de produção doméstica e alimentada por restos de alimentos, a tradicional lavagem. A reconstituição do rebanho está sendo feita prioritariamente por granjas de suínos modernas que empregam ração em vez de lavagem. Houve aumento permanente da demanda mundial por soja e milho.
Há também dois choques de demanda, um positivo e outro negativo. O choque negativo é a piora da atividade fruto do agravamento da epidemia. Independentemente de o poder público restringir muito a mobilidade ou não, em razão da piora acentuada da epidemia, haverá queda importante da atividade no 2º trimestre. Isso após a economia provavelmente ter recuado 0,5% no 1º trimestre.
Adicionalmente, a desvalorização do câmbio eleva a demanda pela exportação de nossos produtos. Claro choque positivo de demanda.
Em condições normais, dado que somos um grande produtor e exportador de commodities, o câmbio se valorizaria em resposta à alta dos preços das matérias-primas. No entanto, como tenho tratado neste espaço nos últimos meses, desde abril de 2020 esse mecanismo equilibrador entre preço de commodities e câmbio desapareceu.
Assim, há várias pressões inflacionárias, e o Copom provavelmente irá iniciar um ciclo de elevação de juros mesmo com atividade em queda. Claro cenário de estagflação.
Em condições normais, o Copom não deveria responder a choques de oferta. Mas há situações em que o Copom deve responder. A dinâmica da inflação é a resultante de quatro forças: inércia, expectativas, câmbio e ociosidade. Três dessas quatro forças viraram e estão na direção de elevar a inflação. A intensidade com que essas forças (todas menos a ociosidade) pressionam a inflação requer que se inicie um ciclo de elevação de juros.
É comum argumentar que a alta dos juros é somente para estimular a valorização do câmbio, e não para cortar a demanda. Não há nenhum conflito aqui. Se a subida dos juros promover a valorização do câmbio, a demanda do resto do mundo pelos nossos produtos se reduzirá. É a função da política monetária.
A única maneira de evitarmos um ciclo de alta de juros seria haver uma melhora da percepção do risco fiscal e termos a restituição do balanço entre preços de commodities e câmbio. Há alguns meses eu apostava nesse cenário. Ele não veio. O início muito prematuro do período eleitoral, com a devolução a Lula de seus direitos políticos adicionada à incapacidade de Bolsonaro em liderar o país, sugere que teremos à frente muita volatilidade.
Infelizmente a inflação é um Boeing que já deixou de taxiar e está no momento iniciando sua corrida para a decolagem. É hora de agir.
FOLHA DE SP - 15/03
O trabalho deveria começar por seus antepassados: Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu
Sempre achei um risco biografar gente viva. Não por medo do biografado ou de sofrer um processo, mas por motivo mais sério: como contar uma história que ainda não terminou? Imagine se, no dia seguinte ao lançamento de uma biografia, o biografado comete algo terrível, como estrangular seu papagaio ou fugir com a mãe de sua mulher. Em um segundo lá se vai o trabalho de anos do biógrafo —por que ele não previu que seu biografado seria capaz daquilo? Donde o certo é esperar que o fulano abotoe naturalmente o paletó, para só então mergulhar na investigação de sua vida.
Mas, com Jair Bolsonaro, não se pode mais esperar que ele vá para o diabo que o carregue. É urgente começar a biografá-lo porque, pela velocidade de sua trajetória —não passa um dia sem praticar um crime contra a democracia, a saúde, a educação, a ciência, a cultura, a economia, a ecologia, a diplomacia, a Justiça, os direitos humanos e a vida—, em breve ela não caberá em um volume. E isso apenas desde que assumiu a Presidência.
Ai está. Uma biografia de Bolsonaro deveria recuar aos seus antepassados, como Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu; explorar suas origens em Glicério (SP), burgo de 2.000 habitantes em 1955, onde depositaram o ovo do qual ele nasceu— e chegar à sua infame carreira militar e ascensão política. Vai-se revelar o seu longo e meticuloso processo de corrupção de colegas, servidores, generais, policiais e juízes, e, de passagem, descobrir como construiu seu patrimônio imobiliário e transferiu esse know-how para filhos e mulheres.
O importante é que, em alguma etapa, surja algo que explique o seu grau de desumanidade estudada, demência, crueldade e ódio.
Pelo que sei, já há profissionais biografando Bolsonaro. Só garanto que não sou um deles. Há um limite para a náusea, e basta-me ter ânsias de vômito quando o vejo na televisão.