quarta-feira, agosto 31, 2011

CRISTIANO ROMERO - O plano Dilma


O plano Dilma
CRISTIANO ROMERO
VALOR ECONÔMICO - 31/08/11

O aumento do superávit primário em 2011 foi apenas o primeiro lance da estratégia do governo para o fortalecimento das contas públicas nos próximos anos. A presidente Dilma Rousseff vai se empenhar, agora, na criação de mecanismos para controlar a evolução dos gastos com o custeio da máquina pública.

Paralelamente, adotará medidas para preparar o mercado e o próprio governo para a aguardada queda da taxa de juros nos próximos meses e anos.

As prioridades do governo agora passam pelo Congresso. São elas: aprovar a criação do fundo de pensão dos funcionários públicos; criar um limite para a evolução das despesas de custeio; passar o projeto de lei que limita a expansão anual do gasto com salários do funcionalismo.

Se aprovadas, as medidas terão impacto fiscal relativamente modesto no curto prazo, mas ajudarão a conter a expansão da despesa corrente ao longo do tempo. Além disso, darão previsibilidade ao desempenho das contas públicas.

Em outra frente, o governo vai trabalhar em duas medidas delicadas, mas fundamentais para a convivência do país com um regime de juros baixos. Uma delas é a mudança do mecanismo de remuneração da caderneta de poupança, que, hoje, é TR mais 6% ao ano. Do jeito que está, a regra cria um piso para a redução dos juros no Brasil. A ideia é atrelar a sua correção a um percentual da taxa básica de juros (Selic).

Um outro tema sobre o qual o Ministério da Fazenda vem trabalhando é a desindexação da dívida pública. O plano é diminuir o uso de Letras Financeiras do Tesouro (LFT) como indexador da dívida. Emitidas pelo Tesouro, as LFTs são títulos de renda fixa, cujo rendimento é pós-fixado e dado pela variação da taxa Selic.

Toda vez que o Banco Central (BC) aumenta a Selic, a despesa do Tesouro com juros cresce imediatamente. Em 2002, quando o país enfrentou severa crise de confiança, as LFTs representavam 60,8% do estoque da dívida pública. Nos anos seguintes, com a estabilização, a participação caiu, sucessivamente, até chegar a 32,6% do total em julho deste ano. A ideia é reduzi-la ainda mais.

O plano, segundo fonte graduada, é chegar a 2014 com apenas 5% ou 6% de estoque de LFT. Trata-se de uma meta excessivamente ambiciosa. Uma das razões é que o estoque de operações compromissadas é de R$ 424 bilhões e está todo atrelado à Selic. O BC faz essas operações - venda de LFTs com compromisso de recompra - para enxugar liquidez no mercado. Grande parte do montante atual de compromissadas decorre da compra de reservas cambiais, seguro que o Brasil usa para enfrentar crises.

Eliminar simplesmente as LFTs seria abrir mão, em tese, do mecanismo que hoje dá conforto ao país em períodos de turbulência. Ainda assim, é possível, desde que a situação fiscal seja reforçada, reduzir o estoque de LFTs, se não para o nível mencionado, pelo menos a um patamar bem inferior ao atual.

"Vamos adotar estímulos à desindexação de curto prazo em títulos públicos e privados", contou um técnico. "Toda vez que o BC aumenta os juros, a potência da política monetária é menor que a de outros países, por causa da indexação dessa estrutura de papéis à Selic."

A travessia do Plano Dilma não é simples. Se fizer o que pretende, desagradará categorias fortes dos funcionários públicos, que já planejam greves em Brasília antes de conhecer as medidas. Depois, à própria base parlamentar de apoio ao governo, uma vez que é quase impossível conciliar austeridade fiscal com interesses fisiológicos e clientelísticos, típicos da coalizão que hoje apoia a presidente. Há ainda a caderneta de poupança, cuja mudança tende a ser explorada de forma populista pela oposição.

A presidente julga não agir no vácuo. Ela quer aproveitar o ganho de popularidade que vem obtendo junto à sociedade, graças à postura adotada em relação a malfeitorias cometidas por aliados no governo, para adotar neste momento as ações mais duras de seu mandato. Há, também, a justificativa da crise financeira mundial que se avizinha. Nas conversas que vem tendo, ela menciona o fato de que os países europeus que abriram a guarda na área fiscal estão agora sofrendo os piores efeitos da turbulência.

A presidente calcula que, como o país entrará agora em período pré-eleitoral, ela terá 18 meses para tocar uma agenda fiscal mais apertada. Seu objetivo é criar condições para o Comitê de Política Monetária (Copom) reduzir a taxa de juros. Estima-se que, se o governo der a musculatura fiscal necessária, o Copom poderá reduzir a taxa Selic real para 3% até 2014 -- hoje, está em torno de 6,18%. Com isso, o Tesouro Nacional diminuiria a despesa anual com juros em cerca de R$ 90 bilhões.

Ironicamente, em 2005, quando os então ministros Antônio Palocci (Fazenda) e Paulo Bernardo (Planejamento) propuseram ao presidente Lula um plano para zerar o déficit público em alguns anos, Dilma, então ministra da Casa Civil, torpedeou a proposta, classificando-a de "rudimentar".

"A presidente Dilma incorporou a ideia de que um fiscal forte é a base do sucesso", assegura um interlocutor frequente. "[Se ela fizer o que está prometendo], nos próximos 10, 15 anos, o Estado abrirá espaço para o desenvolvimento do país."

BOSTAS


ANCELMO GÓIS - Gatonet na DP


Gatonet na DP
ANCELMO GOIS
  O Globo - 31/08/2011

Acredite. O ouvidor do Ministério Público do Rio, Gianfilippo Pianezzola, descobriu, graças a uma denúncia, um gato da Net no gabinete de um... delegado da Polícia Civil. Trata-se de Anestor Magalhães, titular da 159a- DP (Cachoeira de Macacu).

Ferrari da Caixa 
O pessoal da Caixa tem bom gosto: adora Ferrari, o carrão italiano. O banco distribuiu release sobre o prêmio da Mega- Sena acumulada em que lista o que se poderia fazer com o prêmio de R$ 63 milhões. Diz lá que o ganhador poderia comprar... “uma Ferrari 599 GTB Fiorano F1 por R$ 2,6 milhões com menos de 5% do prêmio”.

Queijo coalho 
Pesquisa da consultoria Hay Group para a revista “Exame” com 296 grandes empresas revela que tem diminuído a distância entre os salários e os bônus recebidos por executivos do Nordeste em relação aos colegas do Sudeste. A diferença média era de 22%, há um ano. Caiu para 16%.

No mais 
A foto do líder petista Cândido Vaccarezza cumprimentando a deputada Jaqueline Roriz por sua absolvição (ela foi flagrada recebendo dinheiro sujo) mostra que não se faz Câmara como antigamente. Nem PT. Com todo o respeito.

Fagner e Paco
Raimundo Fagner, o cantor cearense que andou sumido, vai fazer uma turnê pela Europa. Dia 10, cantará em Lisboa. De lá, vai a Madri, onde fará show com Paco de Lucía para festejar 30 anos do LP (hoje CD) “Traduzir- se”, que gravaram juntos.

Dilma burguesa 
Dilma, quem diria, já atacou de... cantora e compositora. Numa reunião de militantes de esquerda, em 1969, em Teresópolis, RJ, a então ativista Dilma, em vez de discursar para os 60 colegas, cantou uma versão sua de “País tropical”, de Jorge Benjor: “Este/É um congresso tropical/Abençoado por Lênin/ E confuso por natureza...”

Segue... 
A história está no livro “O cofre do Adhemar - A iniciação política de Dilma Rousseff e outros segredos da luta armada” (Editora Jaboticaba), do coleguinha Alex Solnik. Será lançado na Bienal do Rio, que começa amanhã.

Aliás... 
Segundo Solnik, parte dos companheiros torciam a cara para Dilma, considerada burguesa, mas ela os ganhava, acredite, com seu... bom-humor.

Insensato coração 
Lembra aquele quiosque que serviu de cenário da novela “Insensato coração”, na Praia do Leme, no Rio? Tem faturado com o sucesso do point LGBT da novela. As vendas ali cresceram quase 50% depois da trama da TV Globo.

Fina estampa... 
Aliás, a Orla Rio, concessionária que administra 309 quiosques nas praias, prevê a valorização dos pontos na Barra. É que “Fina Estampa”, nova novela das 21h, também tem um quiosque em seu roteiro.

Fome de atleta 
Fabiana Murer, depois de conseguir a medalha de ouro inédita para o Brasil no salto com vara, saiu na madrugada de Daegu, na Coreia do Sul, à procura de um restaurante para matar a fome. Tudo fechado. Nossa campeã se fartou com um hambúrguer no... McDonald’s.

Que horas são?
O advogado carioca Nélio Machado foi fazer uma palestra sobre crime organizado, em São Paulo, e teve o relógio roubado. Foi vítima, segundo ele do “crime desorganizado”. É o quarto relógio do criminalista levado por ladrões: dois no Rio, dois em São Paulo.

Culpa do morto
O maestro Koellreutter, alemão que viveu no Brasil e foi mestre de toda uma geração de compositores, tinha uma frase favorita: - O culpado é o morto. Poderia ser aplicada à história do bondinho de Santa Teresa. Com todo o respeito.

ILIMAR FRANCO - Lavar as mãos


Lavar as mãos 
ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 31/08/11
 
Os líderes dos partidos governistas na Câmara decidiram ontem que vão votar a regulamentação da Emenda 29, a despeito de pedido da presidente Dilma. Lero-lero à parte, os deputados consideram que o Senado é quem deve encontrar fontes de receita para a Saúde. Foram os senadores que aprovaram o artigo, rejeitado pelo Planalto, que amplia os recursos para a Saúde dos atuais 7% para 10% da receita bruta da União. A palavra de ordem na Câmara é: quem pariu Mateus que o embale.

O Rio e os não produtores de petróleo

O governador Sérgio Cabral vai formalizar hoje, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, a proposta do Rio para a distribuição dos royalties do petróleo (nas áreas ainda não licitadas). O governador vai propor uma atualização do valor do barril de
petróleo, para cerca de US$ 111, para efeitos do pagamento de “participação especial” pela Petrobras e pelas empresas que exploram os 22 campos (de 313) tributados. A mudança, que pode ser feita por decreto presidencial, segundo o deputado Fernando Jordão (PMDB-RJ), vai gerar uma receita imediata, de cerca de R$ 5 bilhões, para os estados não produtores.

"O mercado quer transformar a América do Sul em uma fazenda; o Brasil, numa mina; e a Ásia, em uma indústria. A Europa vai ser um museu” — Fernando Pimentel, ministro do Desenvolvimento

VERGONHA! A Câmara dos Deputados rejeitou ontem proposta de cassação da deputada Jaqueline Roriz (PMN-DF), flagrada em vídeo recebendo dinheiro, que não foi declarado, para financiar suas atividades políticas e eleitorais. A cassação foi aprovada pelo Conselho de Ética, mas rejeitada pelo plenário em votação secreta. Com essa decisão, os deputados colocaram a Câmara no banco dos réus perante a opinião pública e os eleitores.

O troco

O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) pediu vista ontem, na Comissão de Constituição e Justiça, da proposta de prorrogação da DRU até 2015. Ele ficou insatisfeito por ter sido tirado da relatoria do novo Código de Processo Civil.

A reação
Senadores governistas se articulam para apresentar uma proposta de prorrogação da DRU até 2015, igual à que tramita na Câmara.
Querem aprová-la em tempo recorde no Senado, buscando esvaziar manobras protelatórias na Câmara.

Defensores da jogatina estão excitados
O presidente da Força Sindical, deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), defendeu, para a presidente Dilma, anteontem, a legalização dos bingos como fonte de financiamento para a Saúde (Emenda 29). Segundo ele, a medida renderia R$ 9 bi. A presidente teria reagido dizendo que isso desagradaria à bancada evangélica. O líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira (SP), acrescenta que há a posição contrária do Ministério da Justiça, alegando que os bingos ajudam na lavagem de dinheiro.

Correios
Há fortes resistências no Senado contra a MP dos Correios. A pressão vem dos bancos e do ramo de transportes. Uns dizem que os
Correios vão ampliar os serviços bancários. Os outros querem os Correios fora do serviço de encomendas. 

Mais barato
O custo da reforma do Maracanã vai cair de R$ 930 milhões para R$ 860 milhões. Hoje, o ministro do TCU Valmir Campelo deve apresentar seu relatório, com as adequações propostas pelo consórcio que executa a obra no estádio.

O GOVERNO fechou o valor do salário mínimo que constará da Lei Orçamentária de 2012 que chega hoje ao Congresso. O mínimo terá um reajuste de 13,6%, com seu valor indo de R$ 545 para R$ 619.
O PSOL decidiu apoiar formalmente a indicação do auditor Rosendo Severo para a vaga de ministro do TCU. Sua candidatura foi lançada pelo PPS. 
A SENADORA Marinor Brito (PSOL-PA) pediu ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), que revogue a licitação para terceirizar a frota da Casa e mantenha o emprego dos atuais motoristas.

SONIA RACY - DIRETO DA FONTE

Ainda OAB
SONIA RACY
O ESTADÃO - 31/08/11

Ao que tudo indica, a disputa pela OAB paulista terá oposição. Ante a insistência constante dos colegas de profissão, Alberto Toron teria aceitado concorrer contra Flávio D"Urso, configurando uma terceira chapa em formação.

A segunda, organizada por Antônio Mariz de Oliveira, ainda não se decidiu. Entre os que estão no páreo, Rui Fragoso e Roberto Podval.

Como está fica?

Apesar de a maior parte do mercado não acreditar em queda de juros hoje, resultante da reunião do Copom, há sempre o fator surpresa.

Mas a lógica pende para a manutenção. Entre as missões do BC está a de sinalizar qual o caminho que tomará, para evitar volatilidade. E a autoridade monetária preparou o mercado para acreditar que os juros ficarão onde estão.

No próximo encontro, os 500 serão outros.

Mui amigos

Jerôme Valcke, pelo que se apurou na Europa, não teria gostado da declaração de Joseph Blatter, sugerindo a abertura da Copa de 2014 no Maracanã. O episódio mostra o quão desunida anda a Federação...

A vida segue

Sergio Amaral, do Conselho Empresarial Brasil-China, escolheu o economista Cláudio Frischtak para coordenar estudo sobre investimentos de brasileiros no país. Antônio Barros de Castro, coordenador do estudo sobre investimentos chineses no Brasil, não está mais entre nós.

Em português

O SBT tem altas ambições. Pretende vender o Domingo Legal em Cannes. Na MipCom, maior feira de televisão do mundo, que começa sábado.

Baforada barbuda O QG lulista não respeita a lei de Serra. Nas reuniões que o ex-presidente faz com pré-candidatos à Prefeitura, há sempre gente fumando no Instituto de Cidadania.

Análise de caso

Carlos Vereza anda mais ácido do que o habitual desde que emprestou sua voz ao psicanalista Carl Jung na peça Nise da Silveira. O ator tem tido crises públicas de indignação à "cortina de mentiras que encobre a política nacional".

Herbert Richers

Glamour, obra de Diana Vreeland, ícone da moda internacional, ganha versão brasileira.

Editado por Charles Cosac e com prefácio de Marc Jacobs, o livro traz fotos peculiares de estrelas como Audrey Hepburn, Maria Callas e Marilyn Monroe.

Será publicado em novembro, pela Cosac Naify.

Desapego budista

Dalai Lama declinou da oferta do Sheraton São Paulo WTC. O hotel deixou a suíte presidencial à disposição de Sua Santidade. O quarto, de 510 m2, tem oito ambientes, além de acesso direto ao heliponto.

O líder religioso preferiu um cenário mais simples, sem ostentações... que não está sendo divulgado por questões de segurança.

Tipo importação

A Cavalera aderiu aos formatos europeu e americano na hora de vender para estrangeiros.

O gringo que apresentar passaporte por aqui terá o retorno simbólico do valor do ICMS.

On-line

Amigos dos arquitetos Bruno Chiarioni Thomé e Rafael Ramos, que sofreram agressões na Avenida Paulista no fim de semana, se mobilizaram.

Criaram "manifestação" via Facebook com o lema "Contra a Intolerância Homofóbica e Qualquer Tipo de Violência Gratuita".

Cerca de 8.500 pessoas já aderiram à causa.

Na frente

A Orquestra Juvenil da Bahia, que acaba de se apresentar em Berlim, toca dia 26 na Sala São Paulo. Parte do Projeto Mozarteum, de Sabine Lovatelli, que já levou nove jovens bolsistas brasileiros para o exterior.

Juan Alba se apresenta no Passatempo. Hoje.

Tania Bulhões arma festa na loja, amanhã. Comemoração dos 20 anos da marca.

Bianca Cutait abre exposição, hoje, no restaurante

A bela Sintra de Brasília.

Pedro Granato, cantor, sobe ao palco hoje, no Estúdio Emme. E mostra seu novo hit, Gasolina.

E entra no mercado a consultoria Arrumado, espécie de "personal-organizator" criado por Cinthia Apipi e Kelly Albernaz.

MONICA B. DE BOLLE - A terra desolada


A terra desolada
MONICA B. DE BOLLE
O Estado de S.Paulo - 31/08/11

Parafraseando T. S. Eliot, agosto é o mês mais cruel. O desgosto ficou mais do que evidente nos discursos e artigos apresentados durante a tão aguardada reunião do Fed em Jackson Hole, cujo tema central era como enaltecer o crescimento de longo prazo. Como? A economia mundial é, atualmente, uma grande terra desolada. O rei - os EUA - está ferido e as terras, inférteis em razão da sua impotência. "Eu lhes mostrarei o medo em um punhado de poeira" - foi um pouco isso o que fizeram Ben Bernanke e Christine Lagarde, com discursos sóbrios, sombrios e realistas.

O presidente do Fed não anunciou novas medidas de estímulo, mas não era razoável que o fizesse. Afinal, Jackson Hole é um simpósio acadêmico, e não uma reunião de política monetária. Mas Bernanke revelou que a próxima reunião do Fed em setembro será estendida, para que possam avaliar detalhadamente o estado da economia americana e os custos e benefícios de usar estímulos adicionais para auxiliar a recuperação - ou evitar uma recessão. O presidente do Fed declarou que a atividade crescerá menos do que imaginava e destacou a disfuncionalidade do crédito e do sistema financeiro como causas disso. Expressou sua preocupação com o desemprego de longo prazo e criticou o debate politizado em torno do ajuste fiscal e da elevação do teto da dívida, sugerindo que tenha sido parcialmente responsável pelo descarrilamento recente do crescimento. Por fim, disse que "a maior parte das políticas econômicas que sustentam o crescimento de longo prazo está fora do alcance dos bancos centrais". Não há sombra debaixo dos galhos nus; da pedra seca não se ouve o barulho da água.

A devastação do crescimento de longo prazo causada pelas dívidas avassaladoras foi um dos temas explorados em Jackson Hole. Um estudo específico mostrou que dívidas do setor público superiores a 80% do PIB secam as fontes de crescimento de longo prazo, ao aumentar o grau de fragilidade financeira e limitar certas funções essenciais dos governos. Governos muito endividados não têm margem de manobra para promover políticas que impulsionem a economia e tampouco podem dispor livremente dos recursos para recapitalizar instituições financeiras, se preciso.

A necessidade premente de recapitalizar bancos na Europa foi a principal mensagem da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde. Ressaltando que a crise europeia entrou numa fase perigosa nos últimos dois meses, ela disse que os bancos precisam ser urgentemente recapitalizados para evitar o alastramento da crise e os riscos de uma perniciosa falta de liquidez. O alarme contundente também refletiu os temores de que a Grécia, esquecida nas últimas semanas, ainda abale a higidez financeira. Mas a morte por falta de irrigação foi descartada por Jean-Claude Trichet, que disse não haver risco de paralisação no mercado interbancário europeu com as ações e o empenho do Banco Central Europeu em prover liquidez. Mas um trovão seco e estéril ruge nas montanhas de setembro. Será preciso escalar os montes das negociações para o programa futuro da Grécia, galgar as rolagens da dívida italiana, percorrer os resultados orçamentários das províncias espanholas, superar os picos dos parlamentos europeus, que terão de aprovar as mudanças previstas para o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira acordadas em julho...

Diante da desolação nas terras secas e fraturadas do dólar e do euro, o Brasil está cada vez mais próximo de viver, nas palavras de T. S. Eliot, "o terrível destemor de um instante de abandono, que não pode ser apagado por uma vida inteira de prudência". O discurso austero da presidente é bom, vem na hora certa, sinaliza que a faxina do governo é mais abrangente do que a simples remoção dos frutos apodrecidos em certos ministérios. Mas não serve como justificativa para que a política monetária mude de direção imediatamente. Ao contrário das lendas arturianas que inspiraram o autor de The Waste Land, não há um Santo Graal miraculoso para resolver as nossas mazelas inflacionárias. Nem mesmo fazendo promessas.

TÂNIA MONTEIRO - Abandono toma câmpus da era Lula no agreste


Abandono toma câmpus da era Lula no agreste
TÂNIA MONTEIRO
O Estado de S. Paulo - 31/08/2011

Enquanto Dilma inaugurava curso de medicina, universidade próxima é flagrada "na UTI"

Apenas cinco quilômetros separavam, ontem, duas cenas marcantes na vida dos pernambucanos. Numa sessão solene, na Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), a presidente Dilma Rousseff, carregando a tiracolo o ministro da Educação, Fernando Haddad, dava uma aula inaugural no curso de Medicina ao lado de ilustres autoridades, como o governador Eduardo Campos (PSB).

Naquele mesmo momento, professores e alunos do câmpus de Garanhuns da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE),anunciavam que a instituição, inaugurada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva como pioneira na interiorização do ensino superior no País, "está em coma profundo, na UTI, precisando de uma junta médica para salvá-la".

A paisagem no câmpus era, de fato, desoladora. Esgoto a céu aberto, falta de professores e servidores, de salas de aula e laboratórios, de ônibus, de água, um hospital veterinário fantasma - e, para completar, uma aula inaugural de Agronomia dada no auditório, por falta de sala.

"É tão grande a dificuldade para entrar aqui, e ao chegar vemos que a dificuldade para sair aprendendo alguma coisa é ainda maior", resumiu o calouro Hugo Amadeu. "Ela (Dilma) vai atender a um curso de elite e aqui falta laboratório", emendou outro, Lucas Albuquerque. No curso de ciências agrárias "não se dispõe de um único hectare para trabalho experimental", diz um professor.

Números. Professores, alunos e funcionários já encaminharam à Presidência um document0o de 26 páginas relatando os problemas no câmpus. Um dos professores, Wallace Telino, chama a atenção para a evasão - de alunos e de mestres. O governo, diz ele, "está preocupado com números, mas se esquece da qualidade". É que, embora a UFRPE já tenha dois câmpus problemáticos - além de Garanhuns, também o de Serra Talhada - a presidente Dilma anunciou um terceiro, em Cabo de Santo Agostinho.

A UFRPE tem nove construções suspensas e duas interrompidas, por problemas com as construtoras. Um mês atrás, o Estado noticiou que o de Serra Talhada foi definido pelos alunos como "museu de obras". O diretor da unidade de Garanhuns, Marcelo Lins, reconhece os problemas mas afirma que "um enorme esforço" está sendo feito para resolvê-los.

ROBERTO DaMATTA - Cafezinhos e parábolas


Cafezinhos e parábolas
ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo - 31/08/11

Visitei uma grande empresa no Rio Grande do Sul. Palestrei, aprendi e descobri. Sinto-me feliz ao ser recebido em Manaus do mesmo modo com que sou acolhido no extremo sul do Brasil. Na minha primeira vida, quando estudava sociedades tribais brasileiras, ficava abismado quando nos mais humildes lares sertanejos, e mesmo entre alguns indígenas, a conversa era interrompida em nome de um cafezinho hiperdoce com a seguinte observação: que não reparasse na xícara nem no bule - eram de pobre -, mas tomasse a bebida feita com gosto e amizade. O cafezinho é a prova de hospitalidade mais pungente da nossa sociedade. Ele é também e o obséquio mais trocado entre pessoas no Brasil.

Nesta ultramoderna empresa do Sul não foi exceção. Cheguei e, ato contínuo, ofereceram-me um cafezinho fresco e quente que tomei com o sentimento de estar usufruindo algo que faz o brasil, Brasil. O calor do café forte e doce sinaliza o afeto de quem o oferece. O doce tira do negrume da bebida o seu ar de mistério, dando-lhe o toque de inocência característico das coisas benévolas. O amor e a compaixão são doces como doce é a compreensão, a paz e a concórdia.

Na friorenta manhã do dia seguinte vou para o aeroporto muito cedo. Sou o primeiro a chegar. Meu pai, Renato, fazia o mesmo. Ele nos obrigava a sair de casa e seguir para as rodovias e estações de trem, quando viajávamos de Juiz de Fora e São João Nepomuceno para Niterói, nas férias de verão, muitas horas antes da partida. Ficávamos, meus irmãos e eu, brincando entre as malas, enquanto papai bufava de nervoso, olhando o seu relógio Omega de ouro ou acertando o seu chapéu que, como dizia meu amigo Mauricio Macedo, dava-lhe um ar de detetive de cinema.

No espaço público administrado pela Agência de Aviação Civil, fiquei a experimentar contrastes. O aeroporto é um mero nome, pois ele nada tem a ver com a modernidade dos aviões que despejam no seu espaço ridiculamente pequeno, dotado de algumas cadeiras desconfortáveis, um banheiro pífio e uma sala de embarque minúscula e sem forro, centenas de passageiros famintos (que, como condenados, comem uma sacolinha de biscoitos com gosto de creme de barbear), aturdidos pelo confinamento e pela ineficiência vergonhosa do lugar. Como tenho o tempo do pai, observo a chegada dos passageiros morrendo de frio. Numa sala de espera sem forro e com poucas cadeiras, tenho uma boa visão da pista e dos empregados que carregam malas e pacotes. Tudo realizado a braço - os carrinhos sendo empurrados pelos peões tal como faziam os escravos de um Brasil que continua tão presente quanto o meu iPhone que desligo. O que testemunho, protegido pelos vidros, é o trabalho desses mesmos escravos fazendo seu velho trabalho braçal em contraste com o moderno pássaro voador que estava para pousar vindo de fora e do céu.

Pavoroso e exemplar contraste entre a esfera privada onde tudo correu perfeitamente bem e a pública onde o tal "Estado" faz, mais uma vez, prova de um estilo de gerenciamento emperrado, partidarizado, sectário, ineficiente e, sobretudo, corrupto. Onde foram parar as tais "verbas" dos tais "planos" e "projetos" que são parte destes governos lulo-petistas? Somem pelo ralo dos laços de partido, família e amizade que sempre consumiram a esfera do poder público à brasileira...

* * * *

Milan Kundera conta o seguinte: uma comunista militante é julgada por crimes que não havia cometido. Sustentou sob tortura a sua verdade, demonstrando uma extraordinária coragem diante dos seus algozes. Condenada, cogita-se sobre seu enforcamento, mas, mesmo numa Praga stalinista, há misericórdia e ela segue para a prisão perpétua. Findo o comunismo, seu caso é revisto e, depois de 15 anos, ela sai da prisão e vai morar com o filho pelo qual, por toda a cruel separação, tem um apego desmesurado. Um dia, Kundera visita sua casa e a encontra chorando copiosamente. Apesar de ter 20 anos, ele é preguiçoso, diz. Kundera argumenta que esses são problemas menores. Mas o filho, indignado, defende a mãe com veemência: ela está certa, sou egoísta e desonesto, espero mudar... Moral da história: o que o partido jamais havia conseguido fazer com a mãe, ela realizou com o filho.

Num país em forma de presunto, grassa a praga de um estilo peculiar de corrupção. Não se trata de roubar somente pela "mais-valia" ou pelo engodo do mercado e da ganância. Isso também ocorre no país de Jambom, mas aqui o que explode como bombinha de São João é algo paradoxal: o roubo desmedido dos dinheiros públicos realizado precisa e legalmente pelas autoridades eleitas para gerenciar esses recursos. Trata-se do assalto ao Estado pelos seus funcionários mais graduados que loteiam suas repartições em nome de uma antigovernabilidade, pois como governar com os escândalos e as suspeitas de enriquecimento ilícito de ministros? Quando eu era inocente e de esquerda, a nossa luta era contra o "feudalismo brasileiro" encarnado pelos "coronéis". Com o PT veio a esperança de liquidar a corrupção. Afinal, eu testemunhei o então presidente do PT, José Genoino, repetir com orgulho: "O PT não rouba e não deixa roubar!". Era, vejo bem hoje, apenas um belo mantra que se desfez no mensalão e no que se seguiu.

Moral da história: o que a "direita" jamais havia conseguido fazer no Brasil - coalizão, distribuição de favores, aparelhamento do Estado, elos imorais entre instituições e pessoas, populismo em nome dos pobres - a "esquerda", acomodada no poder, institucionalizou.

FERNANDO DE BARROS E SILVA - O grito do Morumbi

O grito do Morumbi
FERNANDO DE BARROS E SILVA
FOLHA DE SP - 31/08/11

SÃO PAULO - Cerca de 2.500 pessoas se reuniram na praça Vinicius de Moraes, em frente ao palácio do governo do Estado, no Morumbi, para protestar no fim de semana contra a violência e clamar por segurança. Foi provavelmente o maior ato público (e talvez o primeiro) patrocinado pelos moradores dessa parte rica da cidade.
O Morumbi se consolidou como bairro nobre -ou bairro "mais esnobe"- de São Paulo entre o final de 1960 e o início de 1970. Foi para lá que correu uma certa elite, a "elite do Milagre", fugindo do convívio urbano e dos problemas da cidade.
Com seus palacetes escondidos atrás de muros altíssimos, fortalezas de morar, o bairro se desenhou como sintoma e reação à inviabilidade da vida civilizada em São Paulo. O sonho do exclusivismo, da ostentação e da segregação social tinha naquela arquitetura de novo-rico, ao mesmo tempo monumental e sombria, a sua materialização.
É até irônico que a primeira residência do bairro tenha sido a Casa de Vidro, projetada por Lina Bo Bardi no início dos anos 1950 -um marco da arquitetura moderna paulistana e da sua ambição de se integrar simbioticamente à natureza. A evolução do Morumbi pós-1970 tratou de moer essa pequena utopia privada e outras ilusões.
O fato é que o bairro também já deixou faz tempo de ser a ilha da fantasia do novo-riquismo paulistano. A cidade real, com suas tensões e mazelas, o engolfou em poucas décadas: o trânsito local é muito ruim, a região foi povoada por favelas, as ruas sinuosas onde se enfileiram mansões à venda parecem mais inóspitas do que pacatas.
Muito longe de estar entre os lugares mais violentos da cidade, o Morumbi também não está no topo dos mais seguros. Até julho, registrou mais roubos de carros e roubos em geral do que Pinheiros e Perdizes, para citar dois exemplos.
A ascensão e a decadência histórica do bairro -à luz daquilo que aspirava- não deixam de ser um retrato do progresso à paulistana.

ALON FEUERWERKER - Estado cansado?



Estado cansado?
ALON FEUERWERKER
CORREIO BRAZILIENSE - 31/08/11


O Estado dirige bem a Petrobras mas não consegue fazer aeroportos funcionarem bem. Mistério. Nos bons tempos alguém falaria em sucateamento proposital para fins de privatização.
A fala sobre a superioridade do Estado dá sinais de cansaço



Causou pouco ruído dias atrás o leilão de privatização do aeroporto de Natal (RN), 100% repassado a particulares. Teve até a foto tradicional do martelo batido a muitas mãos, mas não despertou maiores emoções. 

O governo não fez firula. Não é Parceria Público-Privada (PPP), não resta participação da Infraero, nada. O ativo foi integralmente repassado a quem pagou mais. O governo caiu fora e ponto final. 
Natal é um filé. Se na Segunda Guerra Mundial ficou conhecida como "trampolim da vitória", pela localização estratégica para o controle da circulação em mar e ar no Atlântico Sul, agora é ponto de altíssimo potencial turístico. 
Fica pertinho da Europa mas está fincada na América do Sul. E num lugar paradisíaco. Com as vantagens decorrentes da tripla situação. 
Daí o belíssimo ágio obtido na venda. Os compradores pagaram mais de três vezes o preço do edital. Fossem outros os tempos, as autoridades seriam suspeitas de ter tentado vender o patrimônio público a preço de banana. 
A privatização dos aeroportos foi uma isca política descoberta para atenuar as críticas ao governo nos sucessivos episódios do assim chamado "caos aéreo". Mas não é só isso. É antes de tudo um excelente negócio. 
Aeroporto é atividade monopolista. Se o sujeito não está satisfeito com o serviço, não dá para simplesmente procurar a concorrência. Tem que usar o dito cujo e ponto final. A receita do empreendimento é garantida. 
Daí o sucesso na privatização de Natal, e deve repetir-se quando forem a leilão os aeroportos maiores. 
Mas fica a dúvida. Por quê, afinal, privatizar? Da maneira como o governo põe a questão, acaba parecendo confissão de incompetência. As autoridades confessam ser incapazes de tocar o negócio como se deve. 
É uma admissão e tanto para quem atravessou os últimos anos montado no discurso sobre a superioridade do Estado. Se este não consegue nem conduzir um monopólio de receita garantida, vai tocar o quê? 
O Estado dirige bem a Petrobras mas não consegue fazer aeroportos funcionarem bem. Mistério. Nos bons tempos alguém falaria em sucateamento proposital para fins de privatização. 
A fala sobre a superioridade do Estado dá sinais de cansaço. O anúncio do superavit primário excedente foi emblemático. 
O governo sempre soube que iria sobrar receita em 2011, mas em vez de acelerar o investimento no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) " ou repassar aos mais pobres e dependentes de políticas públicas de redistribuição de renda ", prefere redirecionar aos investidores. 
Em vez de suprir necessidades prementes, prefere abater dívida. 
A teoria é redonda. Ao diminuir a demanda por recursos para rolar a própria dívida o governo reduz a pressão sobre os juros. Juros menores significam mais consumo e mais investimento. E portanto mais crescimento e empregos. 
Mas a teoria embute uma renúncia. Diga o que disser, o governo admite confiar mais na capacidade de os capitalistas fazerem acontecer no que na aptidão dele próprio. 
Os sinais de cansaço estão por toda parte. As autoridades da Saúde puseram na agenda as tais fundações estatais de direito privado. Estatais na garantia dos recursos e privadas na liberdade para contratar (e demitir) pessoal e comprar bens e serviços. 
Quando Paulo Maluf e Celso Pitta implantaram algo parecido em São Paulo nos anos 1990, foi um escândalo, mas eram outros tempos. Agora, a privatização na Saúde só não vai adiante devido à resistência sindical-corporativa. 

FronteirasAproxima-se o debate na ONU sobre a formalização do Estado Palestino. Os palestinos pretendem proclamar sua soberania no território entre o Jordão e o Mediterrâneo que, antes de 1967, estava sob controle da Jordânia (Cisjordânia) e do Egito (Gaza). 
Quando um país define suas fronteiras, define também as dos vizinhos. Automaticamente, renuncia a reivindicações territoriais. A não ser que ambicione anexações. 
O Brasil poderia propor que todos os países participantes na Assembleia Geral da ONU reconhecessem esse status quo definitivo: o Estado Palestino em suas fronteiras declaradas e o Estado de Israel nas terras remanescentes. 
Poderia até haver depois alguma troca territorial por critérios demográficos, como propôs Barack Obama. Mas seria detalhe. 
Pois o princípio estaria estabelecido. E cada um cuidaria da vida na sua casa. Soberanamente. 

GOSTOSA


MÍRIAM LEITÃO - Três espantos


Três espantos
MÍRIAM LEITÃO
O GLOBO - 31/08/11 

O político que na Presidência cometeu a maior violência econômica já feita ao país, que foi deposto por impeachment e perdeu direitos políticos, está agora com poder de decidir como a sociedade terá acesso a informações públicas. O Brasil não se espanta com fatos estarrecedores, como o de que Fernando Collor, hoje senador, é relator do projeto que decidirá sobre a divulgação de dados oficiais.
Não é o único fato bizarro da vida brasileira atual. Falemos de três. No Congresso, políticos nos quais a população tem cada vez menos razão para confiar conspiram para que o voto brasileiro deixe de ser no candidato, para passar a ser em uma lista que os líderes dos partidos fazem. As direções partidárias ficariam com nosso direito de escolha. Quem estiver nos primeiros lugares da lista tem mais chance de ser eleito, e quem faz a lista são eles. Uma alternativa confusa está sendo pensada. Merval Pereira a chamou de "jabuticaba". Elio Gaspari a definiu como uma "jararaca de muitas bocas". O eleitor tem que votar duas vezes, no candidato e na lista, e aumenta-se o dinheiro público que os partidos recebem. "A choldra pagará a conta, mas só escolherá metade dos candidatos", escreveu Elio na coluna do dia 21 de agosto. O problema da democracia brasileira não é como se vota, é como se comportam os políticos que recebem a honra do nosso voto; não é uma questão de dar mais dinheiro público do que já é dado para as campanhas, mas sim como ter mais transparência sobre quem contribui e como o dinheiro é usado.
O GLOBO de ontem trouxe reportagem de Evandro Éboli informando que o grupo criado em 2009 para tentar localizar restos mortais de desaparecidos políticos encontrou mais uma ossada na região do Araguaia. O grupo tem feito esforços de arqueologia dos crimes políticos, e o governo se comporta como se seres incorpóreos é que tivessem matado as pessoas desaparecidas. A presidente Dilma é avisada de cada passo da apuração, e o assunto é guardado a sete chaves. Assim, secretamente, o país procura ossos da verdade histórica. A presidente é a Comandante em Chefe das Forças Armadas. Tem o poder para determinar que a informação seja prestada por quem a detém, e pode recusar, por absurda, a desculpa de que todos os documentos foram queimados. Não há oração sem sujeito numa organização hierarquizada. Alguém mandou queimar. Que país é este que aceita vasculhar de forma quase clandestina as informações sobre seu passado, tendo direito a elas?
Collor nomeou-se relator do Projeto de Lei de Acesso à Informação Pública, o PLC 41, de 2010. O projeto passou pela Câmara, está no Senado, atravessou três comissões e parou na Comissão de Relações Exteriores. Lá, o senador Collor mudou integralmente o projeto. Há, segundo o jornalista e blogueiro Fabino Angélico, mais de 90 países com leis de acesso à informação que permitem ao cidadão buscar dados do setor público com facilidade. O Brasil não terá uma lei assim se prevalecer a proposta de Collor. Com supressão de parágrafos, rejeição de ideias inovadoras e alterações no texto, Collor está minando o avanço democrático brasileiro. Uma das propostas da lei era a de obrigar o setor público a prestar informações, pôr à disposição de qualquer cidadão os dados necessários à fiscalização do governo. O parecer retira a expressão "independentemente de solicitações", sob argumento de que custa caro prestar contas, que o governo ficaria "sobrecarregado". No artigo sétimo, Collor excluiu vários itens simplesmente dizendo que não deveriam estar na lei. Ele retira a obrigatoriedade de divulgação de informações do governo pela internet, "transformando-a em uma possibilidade", como o próprio senador explica em seu parecer.
Leis como esta têm sido fundamentais para que qualquer cidadão, seja da imprensa ou não, requeira informações ao governo, ou possa fiscalizar atos das autoridades públicas. Nos Estados Unidos, a Freedom of Information Act tem sido acionada em casos importantes de informação ao público. Na Inglaterra, parte do que se soube do escândalo do grupo de Murdoch foi conseguido através dessa lei. Nos EUA, no caso mais recente, o Fed confirmou que concedeu empréstimos secretos para os bancos que pertencem à aristocracia de Wall Street. Aqui, o projeto foi descaracterizado na atual versão por Collor de Mello.
O que há de comum nos três casos é que o Brasil terá menos informação do que tem direito de ter. Collor está criando obstáculos ao acesso de dados sobre como funcionam os governos municipal, estadual e federal. As Forças Armadas continuam impondo sobre o poder civil uma humilhante procura às cegas de rastros dos crimes da ditadura. Os políticos querem impor aos eleitores menos transparência sobre quem nós estamos elegendo. Os três casos apequenam a democracia e com estes três absurdos temos convivido.
Com Alvaro Gribel

JOSÉ NÊUMANNE - Agora nem confissão condena malfeitor


Agora nem confissão condena malfeitor
JOSÉ NÊUMANNE
O Estado de S. Paulo - 31/08/2011

Ao pretender livrar-se de um questionamento insistente sobre a faxina que andou fazendo em seu primeiro escalão, demitindo às pencas funcionários de dois ministérios, dos Transportes e da Agricultura, os ministros inclusive, a presidente Dilma Rousseff decretou para pôr fim à conversa: "Combater a corrupção não pode ser programa de governo". Trata-se, ao mesmo tempo, de uma obviedade e de um truísmo. Seria, de fato, absurdo tornar a demissão de gatunos no governo um objetivo estratégico programado. Lutar contra a corrupção, contudo, é uma rotina que nunca deve ser abandonada por um bom gestor. A cada descoberta de qualquer malfeito, o malfeitor tem de ser punido com rigor, para impedir que a exceção se torne regra e o intolerável passe a ser inexorável. A prioridade, ela garantiu, será sempre "combater a miséria". A menos que a miséria à qual se referiu seja a pobreza de quem ocupa cargos públicos para se locupletar, uma coisa nada tem que ver com a outra: a probidade administrativa não é inimiga da exclusão social. Ao contrário, quanto menor for a rapina do Tesouro, mais recursos públicos haverá para financiarem programas de inclusão social.

Sua Excelência só deveria ter feito tal afirmação se pudesse apoiá-la não na confiança ou na esperança, nem mesmo na convicção, mas na certeza de que os focos de furto de seu governo se limitassem às áreas que se pensa que ela saneou expulsando da Esplanada dos Ministérios Alfredo Nascimento, do PR, e Wagner Rossi, do PMDB, na companhia de vários asseclas. Tudo indica que não é bem assim. Seu ministro do Turismo, Pedro Novais (PMDB-MA), aquele que pagou uma conta de motel com dinheiro público em São Luís, encontrou uma boa justificativa para fazer vista grossa ao que se faz de errado nas proximidades de seu gabinete, ao reconhecer num de seus depoimentos no Congresso a probabilidade de haver irregularidades na gestão orçamentária de sua pasta sem que ele saiba. Acatou, com isso, o exemplo do macaquinho que não vê, não ouve nem fala e radicalizou a convicção do antecessor e padrinho da presidente, Lula da Silva, que nunca soube e, por isso, jamais puniu. A lei Novais é mais abrangente: nenhum subordinado cometeu delito algum se o chefe dele não tomou conhecimento.

Mas - como, infelizmente, tem ocorrido no Brasil nesta quadra - a sentença de Novais logo perdeu sentido quando assomou à cena o baiano Mário Negromonte, correligionário do paulista Paulipetro Maluf. Ele trava uma encarniçada luta pelo poder não nos corredores palacianos, como se deveria esperar num regime presidencialista que um dia já foi qualificado de monárquico, mas, sim, nos intestinos da bancada de seu partido governista, o PP. Acusado publicamente de ter criado uma versão pepista do episódio alcunhado de "mensalão", ou seja, de propor cargos ou mesada de R$ 30 mil a colegas da bancada federal em troca do apoio deles a seu pleito de impedir que seus adversários internos lhe arranquem da mão a pasta conquistada, o ministro não se limitou à óbvia negação como defesa: partiu para o ataque em entrevista a O Globo na qual recorreu ao exemplo bíblico de Caim contra Abel, avisando que, "em briga de família, irmão mata irmão e morre todo mundo" e profetizando: "Isso vai virar sangue". Pior ainda: acusou vários colegas de partido de não terem currículo ou carreira, mas "folha corrida".

Ninguém protestou ou desmentiu o desabafo do ministro, que se esqueceu de uma premissa básica: ele não foi convocado para a pasta por seu notório saber sobre urbanismo nem pela eventual admiração de Dilma, tida como "gerentona" e assim vendida por Lula ao eleitorado, por sua capacidade de gestor. Nada disso. Negromonte é mais um dos frutos do pomar da governabilidade. Ele está no primeiro escalão do governo para que a chefe deste possa contar com seus colegas de partido nas votações de projetos que interessem ao governo federal no Congresso. Em nosso presidencialismo de coalizão, o ilustre baiano representa exatamente aqueles seus companheiros que ele acusa de serem fichados pela polícia. Não será, por isso, fora de propósito considerar a afirmação de Sua Excelência uma confissão. Ainda assim, contudo, a chefe não o demitiu. Nem sequer lhe puxou as orelhas.

Nos últimos dias especulou-se muito sobre a possibilidade de nas hostes do lulismo explícito reinar a desconfortável sensação de que a propalada faxina de Dilma, cujo ímpeto de limpeza despertou o apaixonado apoio do senador Pedro Simon (PMDB-RS) e de mais alguns gatos-pingados no Congresso, causaria danos à imagem do paraninfo da presidente. Algumas evidências explicavam a futrica: três dos quatro ministros demitidos este ano por suspeitas de corrupção, Antônio Palocci, da Casa Civil, além de Alfredo Nascimento e Wagner Rossi, foram herdados do padrinho pela afilhada. Aliás, o quarto, que não foi acusado de furto, mas de excesso de sinceridade, ou seja, escassez de hipocrisia, Nelson Jobim, da Defesa, também fazia parte do mesmo legado.

Fosse futrica ou verdade, certo é que o súbito abandono da vassoura surpreende. E aponta para um avanço nefasto. Muito se furtou em governos anteriores a Lula, inclusive nos que se apresentaram como faxineiros, Jânio Quadros, Fernando Collor e os generais do Almanaque. Mas "nunca antes na história deste país" nenhum chefe de governo se atribuiu com tanto entusiasmo o papel de "perdoador-geral da República" como o fez o ex-dirigente sindical. Se Negromonte não for demitido, ficará a impressão de que a gestão de Dilma tornará inócua a única atitude que tem levado delinquentes à condenação. Antigamente só os réus confessos eram condenados. Tendo Negromonte confessado de forma indireta ao acusar seus pares, agora nem mesmo a confissão levará alguém para trás das grades. É a impunidade plena, geral e irrestrita?

ELIO GASPARI - Dilma quer que esqueçam o que disse

Dilma quer que esqueçam o que disse
ELIO GASPARI 
FOLHA DE SP - 31/08/11

A agenda do governo para a saúde é a de sempre, quer mais dinheiro, sem mudar coisa alguma


RODOLFO FERNANDES, diretor de redação de "O Globo", morreu no sábado, aos 49 anos, e foi lembrado por colegas e políticos. Há ocasiões em que alguém diz alguma coisa que simplesmente recomenda sua repetição. Isso se deu com o que disse Fernando Henrique Cardoso: "Rodolfo era um príncipe. No jornalismo e na amizade."

Durante a campanha eleitoral, Dilma Rousseff prometeu regulamentar, "logo no início do mandato", a emenda constitucional que demarca os recursos destinados à saúde pública. Prometeu também não patrocinar aumentos da carga tributária. Passaram-se oito meses e apareceu uma nova agenda. Enquanto obstrui a votação da Emenda 29, o Planalto pede ao Congresso um debate para que se busquem novas fontes de financiamento para a saúde. Há três ideias em circulação: uma aumenta a carga de impostos, recriando a CPMF; outra incentiva a tavolagem, legalizando os bingos; e a terceira busca o dinheiro nos royalties do petróleo. Como sempre, a solução para um problema, seja ele qual for, está em engordar a caixa do palácio.
No mesmo dia, a presidente mostrou que acredita na onipotência das canetadas. O exemplo disso está na nova legislação que altera o mecanismo de ressarcimento, ao SUS, do que ele gasta com clientes dos planos de saúde.
Nela, a boa ideia é cobrar pelos atendimentos ambulatoriais e por alguns procedimentos custosos. A má é trocar o destinatário do ressarcimento. Em vez de o dinheiro ir (em tese) para quem cuidou do paciente, irá para os comissários de Brasília que controlam o Fundo Nacional de Saúde. Numa conta da Controladoria-Geral da União de janeiro passado, os repasses irregulares do FNS iam a R$ 663 milhões.
Em vez de se discutir o fracasso da Agência Nacional de Saúde, que em 2010 empulhou a patuleia anunciando um novo sistema de cobrança quando nem sistema havia em operação, oferece-se uma nova visão do paraíso. Entre 2006 e 2010 a agência recebeu das operadoras R$ 37,7 milhões. A estrutura burocrática da cobrança custou mais que o valor arrecadado.
Os brasileiros acompanharam com mais detalhes o debate da saúde pública na administração de Barack Obama do que nos governos de Lula e Dilma. Numa vinheta ilustrativa dos interesses privados nesse silêncio, vale lembrar que na galeria dos 30 bilionários nativos listados pela revista "Forbes" entraram, com US$ 3,9 bilhões, dois controladores da Amil. Noutra cena, há uns dias o presidente da Câmara, Marco Maia, voou de favor num helicóptero e num avião da Uniair, empresa da operadora Unimed. A bancada dos planos de saúde no Congresso senta-se, majoritariamente, na base de apoio do Planalto.
A repórter Beth Koike mostrou que entre 2000 e 2009 o número de clientes dos convênios médicos cresceu 40%, atingindo 42 milhões de pessoas. Segundo o IBGE, entre 1999 e 2009 o número de leitos oferecidos pela rede privada encolheu 18%. Foram fechados 400 hospitais, com 11 mil leitos.
O sistema de financiamento da saúde pública brasileira está bichado. Esse debate ultrapassa, de muito, a simples discussão da Emenda 29 ou a busca de novas fontes de arrecadação. Se o governo não quer obrigar os Estados a suspender as maquiagens com as despesas de saúde, vive-se o pior dos mundos.

VINICIUS TORRES FREIRE - Lei da saúde e da doença no gasto

Lei da saúde e da doença no gasto
VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 31/08/11 

Votação da lei que regula gastos com saúde pode se tornar crise maior do que a imaginada pelo governo


FAZ 11 anos está para ser votada no Congresso a norma sobre aplicação de recursos públicos na saúde. Trata-se da regulamentação da emenda constitucional 29, aprovada em 2000. A lei não foi votada devido a arranjos entre governo e Congresso, por vezes em acordo com governadores.
Por que tanta demora, além da desordem e da leseira parlamentares de costume? O projeto pegou poeira porque ou não havia dinheiro para pagar o aumento de gastos ou porque governo e Congresso jamais se organizaram a fim de conter despesas em outras áreas.
Um desacordo do governo Dilma Rousseff com sua coalizão pode fazer com que a lei seja enfim aprovada -mais por pirraça do que por inspiração séria de chefes de bancadas, que querem se vingar da dita "faxina" da presidente.
O projeto prevê aumento da vinculação da receita com gastos em saúde, um tanto mais, um tanto menos, a depender de sua versão, que mudou ao longo dos 11 anos.
Na redação atual, terá maior impacto sobre Estados e municípios. Como especifica o que seriam de fato despesas com saúde, a lei vai impedir que se ponha nessa rubrica gastos com segurança, pensões, cemitérios, asfalto, merenda etc.
Pelas normas, há Estado que hoje aplica em saúde apenas 40% de sua receita. Na média dos Estados, cerca de 10% dos gastos são fajutos. A situação geral dos municípios é mais obscura, embora alguns estudos afirmem que haveria mais correção no uso do dinheiro.
Na média, porém, ou Estados deverão cortar despesas em outras áreas que não a saúde ou vão entrar em deficit feios. Pode cair um tanto o superavit primário dos Estados, que entra na conta do superavit total do setor público.
A responsabilidade por fechar a conta da meta do superavit total é do governo federal, que então deveria poupar mais um pouco, a fim de bancar a diferença. Como ainda podem ser modificados percentuais de aplicação dos recursos federais no setor, se desconhece o impacto nas contas do governo central, por ora pequeno ou nenhum.
Lembre-se de que o governo federal é obrigado a elevar anualmente a verba da saúde de acordo com o aumento nominal do PIB (crescimento real da economia mais inflação implícita). Como as receitas federais crescem mais do que o PIB, por ora isso não parece um problema. Mas pode vir a ser um assunto grave. Ou melhor, até deveria ser. O aumento da arrecadação de tributos não pode superar indefinidamente o crescimento da economia.
Pirraça de chefetes parlamentares ou não, a votação da emenda 29 vai impor uma discussão sobre limites de gastos com salários, previdência e desperdícios. Ou vai exigir aumentos adicionais da carga tributária, via invenção de tributos ou de aumento de alíquotas.
No Congresso, já se discutia ontem tal coisa. Pensava-se em ressuscitar uma sucessora da CPMF, entre outros aumentos de tributos ou sequestros de receita (como a de royalties do pré-sal). Eram pensados até contrabandos bandidos, tal como regularizar o jogo (bingo) para fazer receita tributária, uma piada.
Dados os limites fiscais, de gasto, e a querela politiqueira, a votação da emenda 29 pode ser uma crise muito maior do que a imaginada pelo governo Dilma.

GOSTOSA


MARTHA MEDEIROS - Entre ser feliz e ser livre

Entre ser feliz e ser livre
 MARTHA MEDEIROS
ZERO HORA - 31/08/11

Dizem que ainda vai chover muito no Sul e fazer frio até outubro. Meleca. O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra.

Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein e o casal Fitzgerald, e driblavam a lei seca com litros de uísque, vinho e absinto. O espírito é parecido com o do último filme de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no registro de época. Um prosa escrita em tom de pileque, com direito a uma ressaca braba no final.

Hemingway era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo tempo, demonstrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus sonhos, e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse.

Amava os amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa. Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma. Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.

Hadley acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais, arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como ele definia a resignação. Logo, sua primeira esposa viveu no melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.

O livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser feliz.

Fácil para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway, ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem que segue lutando para não entregar sua alma em nome das conveniências, e uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que vier a sofrer.

Quem ganha é o leitor.

MERVAL PEREIRA - Falta de respeito


Falta de respeito 
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 31/08/11

Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu, com o voto decisivo do recém-nomeado ministro Luiz Fux, que a Lei da Ficha Limpa só valeria para a eleição de 2012, não podendo ser aplicada na de 2010, a senadora Marinor Brito, do PSOL, considerada eleita porque dois candidatos - Jader Barbalho e Paulo Rocha - foram enquadrados na nova lei, perguntou, indignada, temendo perder o mandato: "A Constituição diz que pode ser corrupto em 2010 e não pode em 2012?"
A mesma pergunta pode ser feita hoje, diante da decisão da Câmara de não cassar a deputada Jaqueline Roriz, flagrada em fita de vídeo recebendo dinheiro em 2006 do esquema do ex-governador José Roberto Arruda em Brasília.
O que os senhores deputados decidiram, em última instância, é que um político pode ter matado ou roubado antes de ser eleito que estará protegido pelo seu mandato se tiver conseguido esconder o crime até ter sido eleito.
Foi uma decisão de uma Câmara que não respeita o eleitor. E não se respeita.
Marinor Brito, do PSOL, continua sendo senadora, graças aos diversos recursos que podem ser feitos, entre a Justiça do Pará e a Federal, subindo até o Supremo Tribunal Federal, em mais um exemplo de como nossa Justiça pode ser manipulada para o bem e para o mal.
A votação de ontem na Câmara colocou de maneira inequívoca uma estaca no coração da Lei da Ficha Limpa, que corre o risco de não valer também para a eleição de 2012 e nem para qualquer outra.
O Supremo vai debater brevemente se a lei está de acordo com a Constituição, mesmo que, na votação anterior, nenhum dos ministros - mesmo os que entenderam que ela não poderia valer na eleição de 2010 por não ter sido editada um ano antes do pleito - tenha questionado sua legalidade.
Mas, como bem lembrou o ministro Ricardo Lewandowski, "o Supremo não se pronunciou sobre a constitucionalidade da lei."
Essa constitucionalidade, em relação aos seus vários artigos, será debatida durante o julgamento conjunto de três processos: duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) e uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin).
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional e o PPS pedem que o tribunal determine a constitucionalidade da lei. E a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) quer que o STF declare inconstitucional o dispositivo que determina que são inelegíveis as pessoas excluídas do exercício de profissão em razão de "infração ético-profissional".
Há também diversos outros questionamentos, como por exemplo a velha discussão de que não se pode punir um candidato com a inelegibilidade antes de uma condenação definitiva da Justiça, o chamado "trânsito em julgado", pois estaria sendo ultrapassado o princípio constitucional da presunção da inocência.
Para além da discussão técnica sobre prazos para a aplicação da lei, os cinco juízes que votaram pela imediata vigência da Ficha Limpa se utilizaram do princípio da moralidade que deve reger o serviço público, previsto na Constituição, para aprovar a nova legislação.
Se não bastasse representar um avanço democrático fundamental, por ter nascido de uma petição pública com milhões de assinaturas, a Lei da Ficha Limpa teve uma qualidade suplementar, a de ultrapassar a exigência do "trânsito em julgado" dos processos, prevista na lei complementar das inelegibilidades e que protegia os candidatos infratores eternamente, na miríade de recursos que a Lei brasileira permite.
Desde 2006, há um consenso entre os presidentes de Tribunais Regionais Eleitorais de todo o país, de fazer prevalecer a interpretação de que não se pode deferir registro de candidatura quando existe prova de vida pregressa que atenta contra os princípios constitucionais.
E sempre esse princípio era derrubado pelo Tribunal Superior Eleitoral por uma margem mínima. O voto do ministro Carlos Ayres Britto naquela ocasião é exemplar dessa posição. A certa altura, disse ele que "o cidadão tem o direito de escolher, para a formação dos quadros estatais, candidatos de vida pregressa retilínea", ressaltando a importância do artigo 14 da Constituição Federal, que prega a moralidade na vida pública.
Outro ponto levantado contra a Lei da Ficha Limpa é de que a Constituição estabelece que nenhuma lei pode retroagir no tempo, a não ser para beneficiar o réu, isto é, ninguém pode ser condenado com base numa lei aprovada depois da data em que o crime foi cometido.
A Lei da Ficha Limpa fixou limites à elegibilidade, ampliando o alcance da punição de crimes que tornam um candidato inelegível pelo prazo de oito anos, até mesmo a renúncia ao mandato para escapar da cassação torna-se motivo para tornar esse candidato inelegível, e em muitos casos fazendo com que ele não possa concorrer até o fim do mandato a que renunciou.
O Supremo pode entender que uma lei de 2010 não pode retroagir no tempo para punir um candidato por crimes cometidos no passado, e esse é um dos argumentos, por exemplo, do ex-senador e ex-governador Joaquim Roriz, de Brasília, que está tentando se tornar elegível para 2012.
Roriz, como se sabe, é pai de Jaqueline. Ambos tentam limpar as respectivas fichas e estão tendo êxito. O que diz bem de nosso estágio político.

MARCIA PELTIER - Nas alturas


Nas alturas 
MARCIA PELTIER
JORNAL DO COMMÉRCIO - 31/08/11

Oportunidade que honraria as melhores companhias de balé do mundo, caberá a uma ONG carioca, sediada na Tijuca, abrir a apresentação do Ballet Kirov, no espetáculo gratuito que será feito dia 7 de Setembro, na Quinta da Boa Vista. Jorge Texeira, diretor da Cia Brasileira de Ballet, apresentou ontem, aos russos, três números para que eles escolham o que melhor se adapta à ocasião: a Valsa do 1º Ato do Lago dos Cisnes, Capricho Espanhol ou Raimunda.

Suor do rosto 

A companhia é a única que vem representando o Brasil no exterior, em repertório clássico. Em 2012, será o primeiro corpo de baile clássico nacional a se apresentar em Israel. Vinte e dois bailarinos formados na CBB estão atuando no exterior. O mais surpreendente de tudo é que eles não contam com patrocinador permanente. Jorge Texeira mantém as atividades da escola com o que recebe em consultorias para escolas de dança espalhadas pelo país e com o trabalho na comissão de frente das escolas de samba do Rio. Ano que vem, ele estará na dianteira da Grande Rio.

Estatística 

Em crise, assim como muitos de seus pares na Europa, a Espanha continua a hostilizar turistas brasileiros. Em viagem ao país para visitar o marido, que está há dois meses a trabalho pela Michelin, uma brasileira foi detida no Aeroporto de Madri. Nem mesmo a intervenção da empresa demoveu as autoridades da imigração. Ela será deportada esta semana.

Na rede 
A advogada Flávia Sampaio, dona de um dos guarda-roupas mais elogiados do país, resolveu ampliar seus negócios e se prepara para lançar um e-commerce com as melhores grifes internacionais e nacionais. O Powerlook vai ser um site de vendas online com garimpos vintage e peças novas. Parte da renda será revertida para o Instituto Consciência, que combate o analfabetismo no Morro dos Cabritos, em Copacabana. Para o lançamento, a namorada do empresário Eike Batista ataca de modelo e será estrela de um editorial assinado pelo fotógrafo Vicente de Paulo. Os looks terão peças Lanvin, Blumarine e Emilio Pucci, entre outras.

Cotas 
Desembarca, pela primeira vez no Brasil, uma delegação dos Historically Black Colleges & Universities (HBCUs), grupo de 105 universidades norte-americanas criadas exclusivamente para atender a comunidade negra. A partir de sexta-feira, eles visitam a Universidade Zumbi dos Palmares, em SP, e, no dia seguinte, é a vez de UERJ e PUC, no Rio. O propósito é desenvolver parcerias e intercâmbios para estudantes brasileiros negros. Os representantes vêm da Xavier University of Louisiana, Hampton University, Morgan State University, Florida A&M e North Carolina A&T University.

Aliás… 
Esta visita é um desdobramento da passagem de Barack Obama ao Brasil, quando os governos dos EUA e Brasil fecharam uma série de acordos em diversas áreas, incluindo educação. O projeto também faz parte do programa Eliminação do Racismo e Promoção da Igualdade ou Japer, na sigla em inglês.

Legendado 
Os atores Wagner Moura e Alinne Moraes vão carimbar seus passaportes na próxima semana. A dupla protagonista do filme O Homem do Futuro, de Claudio Torres, dará as boas vindas à terceira edição do Festival de Cinema Brasileiro em Londres, que agita, de 6 a 10 de setembro, o Odeon Covent Garden. Na lista de exibição, que reflete o bom momento das produções nacionais, as obras Elza, Além da Estrada, Como Esquecer, 180 graus, Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, A Suprema Felicidade e De Pernas pro Ar. Os ingressos, em libras, vão custar cerca de R$ 27.

À prova de tombos 

Será lançada, hoje, no MAM, uma cadeira projetada por Guto Índio da Costa, releitura das cadeiras de bar de plástico injetado. A nova versão é feita de polipropileno reforçado com fibra de vidro e suporta até 160 kg.

Modernos, mas nem tanto 

Ontem, durante o 6º Seminário Internacional de Comportamento e Consumo, no Copacabana Palace, a plateia ouvia atenta à exposição do arquiteto Guto Requena. Ao falar sobre os novos núcleos familiares que estão sendo formados e os reflexos que surgirão no desenho do espaço familiar, eis que é projetada uma imagem de dois barbudões num beijo de língua. Os homens emudeceram e muitas das fashionistas balançaram a cabeça em reprovação.

Dia decisivo 

Promete ser animada a final, hoje, no Espaço Tom Jobim, do concurso da música-tema dos 80 anos do Cristo Redentor. Na semifinal de segunda, causou furor o hip hop do DJ MAM e do saxofonista Rodrigo Sha, intitulado Redentor, e o quase samba-enredo do bloco Empolga às 9h, que levou até torcida organizada. A composição vencedora fará parte do grande show do dia 12 de outubro e entrará para o CD do espetáculo.

Livre Acesso

Cláudia e Guilherme Sampaio Ferraz são avós pela primeira vez: nasceu ontem, em São Paulo, Jorge, filho de Ana Carolina Fialho de Sampaio Ferraz e Eduardo de Jesus.

A estilista paulista Cris Barros apresenta, hoje, para as cariocas, a sua coleção primavera-verão 2012, inspirada no balé russo, com um almoço no Hotel Fasano.

O arquiteto Chico Vartulli faz palestra, amanhã, sobre sustentabilidade na decoração na Universidade Federal de Gôiania (UFG), para alunos do curso de arquitetura.

Silvia Fraga, relações-públicas da Orlean, abre, hoje, sua casa no Leblon para coquetel em homenagem a Patrícia Mayer, Patrícia Quentel e toda a equipe da 3Plus, em comemoração aos 21 anos do Casa Cor.

Profissionais da área jurídica e estudantes de direito ganham, hoje, a primeira publicação para incentivar a criação de práticas inovadoras na justiça brasileira. O lançamento da revista Innovare acontecerá no Hall dos Bustos do STF, em Brasília, e contará com a presença do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, entre outros.

Claudio Crispi fala sobre novas técnicas em cirurgia de endometriose, em congresso mundial em Montpellier, na França, de 4 a 7 de setembro.

O ex-presidente do BC Gustavo Loyola recebe hoje a medalha Pedro Ernesto, na Câmara Municipal do Rio. A homenagem será estendida a todos os formuladores do Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional).

Paulo Renato Barreiros da Fonseca, da COI, Clinicas Oncológicas Integradas, fala sobre manuseio da dor aguda e crônica, sexta-feira, no 10º Congresso da AMIL.

Com Marcia Bahia, Cristiane Rodrigues, Marcia Arbache e Gabriela Brito

MARCELO COELHO - Familinhas


Familinhas
MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 31/08/11

"Famílias, eu vos odeio", escreveu André Gide, em 1897. "Lares circunscritos; portas bem trancadas; ciumentas apropriações da felicidade."
O narrador de "Os Frutos da Terra" tinha razões claras para tanto ódio. Queria, em primeiro lugar, uma vida sem compromissos que se lançasse pelo mundo em busca do prazer sensorial."
Queria, também, arrancar da proteção dos pais o adolescente que se dispusesse a acompanhá-lo na aventura. "Por vezes, oculto pela noite, eu ficava longamente à espreita na vidraça, contemplando os hábitos da casa. O pai estava ali, perto de uma lamparina; a mãe costurava; um menino, perto do pai, estudava -e meu coração se inchou do desejo de levá-lo comigo pelas estradas."
"No dia seguinte", prossegue o narrador, "eu o revi; no dia seguinte falei com ele; quatro dias depois, ele largou tudo para me seguir". Era bastante ousado para 1897.
Diga-se, pelo menos, que Gide não traça um quadro totalmente negativo das famílias odiadas. Não fala de opressão, de desajuste ou de tragédia. Eram famílias "burguesas", pacíficas, felizes, cujo maior pecado estava no fato de se fecharem no vasto mundo. Em São Paulo, a moda agora é colar na traseira do carro uns adesivinhos retratando o ideal de "família feliz".
Lá vai, grudado na Zafira prata, o desenhinho infantil do pai, da mãe, dos filhos pequenos de mãos dadas. Na banca de jornal, pode-se encontrar também adesivos da vovó, do vovô, do cachorro, do gato, do peixe no aquário.
Gosto de vê-los. Também as famílias, em parte contrariando Gide, lançam-se pelas estradas; o carro é um lar que se move a caminho do Hopi Hari -e as mães não costuram mais. Há quem exagere, claro. Algumas famílias se transformam em verdadeiros times de futebol. Unem-se, pela extensão toda da traseira, pais, filhos, tios, avós, empregadas, primos; não caberiam em duas Kombis, quanto mais no Corsa preto à minha frente.
Acho que com isso se desvirtua um pouco o espírito da coisa. A familinha no adesivo deveria representar exatamente as pessoas que vão dentro do carro. Sugere-se, com isso, algum respeito e mesmo carinho no ambiente selvagem do trânsito.
Provavelmente, a iniciativa de colar as figurinhas não partiu dos adultos. Comigo, pelo menos, foram as crianças que quiseram. Natural que, numa mistura de generosidade e posse, façam questão de ter o máximo de personagens presentes.
Provém das crianças, sem dúvida, o maior desejo de que suas próprias famílias sejam assim, irmanadas, fixas, grudadas para sempre, nem que seja só na traseira do automóvel.
Há também o impulso de toda felicidade, que é o de proclamar-se a si mesma, como fazem, em média, os passarinhos. Mudou bastante, em todo caso, o espírito dos adesivos de automóvel. No começo, serviam para as campanhas eleitorais. Com o tempo, a maioria das pessoas começou a sentir que havia algo de otário nesse comportamento.
Nada pior do que os adesivos de "Collor Presidente", persistindo no vidro de trás, a despeito dos esforços para arrancá-los. Tripas e frangalhos desbotados continuaram em circulação, anos depois do impeachment. Veio depois a moda das grifes, das lojas, das universidades americanas. O motorista informava aos interessados ter sido aluno da Columbia University, ou que comprava seus sapatos na Side Walk.
Fora uma ou outra camisa de futebol, o interessante das novas familinhas adesivas é que não procuram afirmar nenhuma identidade por enquanto.
Ninguém quer se diferenciar pelo fato de consumir isso ou aquilo, de ter estudado neste ou naquele lugar. Afirma-se, antes de mais nada, o fato de ser uma família "como todas as outras".
"Eu não sou como os outros, eu não sou como os outros", chorava o pequeno André Gide, ao voltar da escola, nos braços de sua mãe. Ninguém é. Ele teve, pelo menos, o consolo de que sua mãe, naquele momento, foi como todas as outras.
Segue então o seu caminho, no sinal verde, o carro à minha frente, com sua fileira de pessoinhas de braço dado. À direita, outro carro também vai com sua familinha igual; outro, à minha esquerda. Vem-me o desejo, infantil também, de que todos esses adesivos, esticando-se de carro a outro, se juntem e se deem as mãos. Seria um belo congestionamento, pelo menos.

ANTONIO PRATA - Às vezes uma broca é só uma broca


Às vezes uma broca é só uma broca
ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 310811

"Pode parecer bobagem e talvez seja -claro que é, é uma tremenda bobagem-, mas não admito que outra pessoa pendure os quadros em minha casa. Tenho amigos, decerto mais bem resolvidos do que eu, que conseguem delegar a função a um cunhado, ao zelador ou a outro profissional habilitado sem sentirem, com o descumprimento das obrigações conjugais, sequer uma comichão em suas masculinidades. Um deles chega até a sugerir, sempre que a mulher exige algum reparo doméstico: "Chama um homem, meu bem". Eu não sou assim. Sinto-me pusilânime como um corno rodrigueano só de pensar em abrir a porta de meu próprio lar para que outro marmanjo meta a broca em minhas paredes.Fiz anos e anos de psicanálise, sei bem que minha relação com a furadeira é apenas uma manifestação ridícula de antigos fantasmas: nunca ter aprendido a jogar futebol, ser baixinho, estar mais para Woody Allen (no mau sentido) do que para Humphrey Bogart (no único sentido), mas pouco importa. Uma hora a gente desiste de iluminar as minhocas escondidas embaixo de cada pedra, simplesmente admite que a vida é assim mesmo e toca pra frente, transformando neuroses em convicções -eis aqui uma delas, sólida como uma viga: na minha casa, quem fura sou eu!
Minha insistência no monopólio da furadeira talvez não fosse um problema se a ela não se somasse outra, digamos, idiossincrasia: uma tendência à procrastinação das tarefas domésticas que chega a ser enlouquecedora. "Enlouquecedora" para minha mulher, evidentemente. Afinal, após duas semanas na casa nova, as roupas de cama já estão no roupeiro, os sabonetes nas saboneteiras, o sal no saleiro -só os quadros continuam pelos cantos, esperando, como aviões num aeroporto fechado pelo mau tempo.
As tormentas que alego para meu renitente atraso são o trabalho, que anda puxado, e a necessidade de priorizar tarefas mais urgentes: passar a conta de luz para nosso nome, instalar a máquina de lavar, marcar a dedetização. Diante de uma das legítimas queixas de meu amor, cheguei até a usar de um golpe baixíssimo, desses que devem ser evitados mesmo em momentos de MMA conjugal: "Decida, o que você prefere ver pelas paredes, quadros ou baratas?". Não colou. Este fim de semana receberemos alguns amigos e eu recebi um ultimato, ou faço aquilo a que me proponho ou ela tomará medidas extremas: chamará um "Marido de Aluguel".
Ora, meus caros, vocês podem dizer que sou neurótico, louco de pedra, caso de hospício, mas convenhamos: se não houvesse nos pequenos reparos domésticos toda uma simbologia, se não residisse nos pregos, parafusos, courinhos e trincos uma das últimas reservas de nossa acuada masculinidade, teriam esses trabalhadores o nome que têm? Evidente que não. Maridos de aluguel, especuladores de curto prazo, saqueadores de pirâmides, hienas: todos eles ganhando a vida às custas da desgraça alheia. Ela que experimente chamar aqui um desses larápios. Será recebido com broca 12 -função martelete-, lança-pregos e maçarico. Na minha casa, quem fura sou eu! (Mesmo que demore um pouquinho)".