sexta-feira, março 30, 2018

Exemplo a evitar - ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

ESTADÃO - 30/03

Acusações e alegações não deviam vir a público antes da certeza jurídica do crime praticado


Dias atrás, sem o merecido destaque, os jornais, rádios e televisões veicularam a notícia de que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito que investigava o senador José Serra. Em casos como esse, quando o próprio Ministério Público desiste de formular a denúncia, pode-se concluir que a acusação era infundada e o acusado sofreu prejuízo irreparável, uma vez que foi enorme a publicidade da acusação e bastante discreta a divulgação da ausência de culpa.

Aquela acusação, partida do malfeitor Joesley Batista, relatava irregularidades que envolveriam a prestação de contas à Justiça Eleitoral durante campanha do senador à Presidência da República. Serve o episódio para demonstrar o risco de lançar na fogueira pessoas acusadas de delitos que dependem de comprovações futuras, as quais podem ser confirmadas ou não.

Espera-se uma reflexão mais apurada das autoridades encarregadas das acusações de crimes de colarinho-branco, os quais provocam justificado repúdio da população. A divulgação desses crimes (que ainda serão apurados) acende os refletores e projeta os acusadores, vistos muitas vezes como exemplo. Mas tal conduta merece ponderação, porque não deveriam ser tornadas públicas acusações envolvendo pessoas quando a comprovação dos fatos no inquérito depende da obtenção de provas que nem sempre estão à mão.

A rigor, acusações e alegações não constituem meios de prova e não deveriam, portanto, vir a público antes de haver certeza jurídica do crime praticado pelo acusado. Isso, infelizmente, vem se verificando e causando prejuízos irreparáveis, como o sofrido pelo senador José Serra.

O objetivo de investigar e apontar o autor de um delito sempre teve por base, em nosso país, a segurança da ação da Justiça e do próprio acusado. Mas nos últimos tempos tal atividade acabou assumida, de forma misturada, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, de tal sorte que com frequência vazam informações que parecem de encomenda, ou seja, aparentam ser destinadas a atingir esta ou aquela pessoa. Não se pode perder de vista que a polícia judiciária tem o dever de reunir as provas preliminares e suficientes para apontar, com a necessária segurança, a ocorrência do crime e o seu autor.

Essa atividade é regulamentada por leis penais e pela Constituição federal, motivo suficiente para que seja exercida com equilíbrio e moderação, uma vez que o eventual ajuizamento de ação penal contra alguém provoca um dano, muitas vezes irreparável, à pessoa. Não se deve aceitar essa conduta leviana, talvez estimulada por vaidades ou inconformismos pessoais, que resulte no lançamento de denúncias e mais denúncias, que podem ser comprovadas ou não.

A investigação realizada pela polícia judiciária não pode correr o caminho equivocado de basear-se em exame pré-constituído de legalidade e permitir que os fatos ali em apuração se tornem públicos e atinjam a moralidade de uma pessoa, mesmo em se tratando de uma espécie de seres hoje em baixa – os políticos.

Da mesma forma como José Serra foi acusado e praticamente absolvido, imagine-se como ficará o Ministério Público Federal caso a quebra do sigilo bancário do presidente Michel Temer chegue ao mesmo desfecho, ou seja, que a denúncia seja considerada um erro. Não se devem nunca imaginar desfechos para inquéritos em curso, mas é forçoso reconhecer que Michel Temer, após longa carreira na política e como jurista, provavelmente não teria a ingenuidade de deixar em suas contas bancárias evidências de conduta inadequada e até mesmo criminosa.

A denúncia provocou-lhe forte abalo, mas não somente ele sofreu com sua divulgação: também o País acabou atingido, com reflexos negativos na economia. É possível imaginar que nem mesmo provas seguras, irrefutáveis, seriam suficientes para permitir a quebra do sigilo nos autos e o enxovalhamento prévio de um presidente da República. Será que existem essas provas? E se existem, tratando-se de assunto de tanta relevância, por que não foram claramente expostas?

A rigor, os juízes, e também os ministros dos tribunais superiores, confiam nas provas produzidas em juízo porque o inquérito policial, não estando submetido ao contraditório, presta-se muitas vezes a concluir por acusações injustas e temerárias, ao gosto de quem o está presidindo. Já perante o juiz o panorama é outro, porque as provas são produzidas à sua frente, de conformidade com o devido processo legal e a ampla defesa. Essas as razões pelas quais os juízes, fundados no contraditório, não deixam vazar informações tão relevantes como a quebra de sigilo bancário, sobretudo quando o vazamento incompleto não permite à população saber o que realmente acontece, além de causar prejuízo moral a quem é atingido.

O Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que a ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário em situações excepcionais. Mas, como implica a restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar previamente a necessidade das informações solicitadas, com o estrito cumprimento das condições legais autorizadoras.

A Constituição federal acolheu o princípio da vedação da dupla punição pelo mesmo fato – enfim, não se pode impor ao mesmo réu uma segunda condenação. No caso da denúncia feita contra o presidente Michel Temer, a ofensa moral representada por tornar pública a quebra de seu sigilo bancário, assunto que por sua natureza deveria ser reservado aos olhos apenas do juiz, equivale a uma condenação das mais graves, dada a enorme repercussão pública.

*DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

Quando cessa o diálogo com as forças de conservação, sobram paus, pedras, ovos e tiros - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 30/03

Estamos à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando nos conduza a uma tragédia catártica


Na vida pública, a violência se torna protagonista quando se interditam os caminhos da interlocução política ou quando atores beligerantes não reconhecem a legitimidade do Estado legal e de seus agentes, ainda que se viva num regime democrático. Nos “Anos de Chumbo”, na Itália, por exemplo, extrema esquerda e extrema direita mataram a esmo. Não é que o statu quo recusasse o diálogo. Os extremistas é que não admitiam como interlocutores os que falavam em nome da ordem. Ou por outra: cada bando armado, à sua moda, via na democracia a tibieza e a inutilidade de uma força procrastinadora, incapaz de responder aos anseios de sua particularíssima visão de justiça.

Também a França e a então Alemanha Ocidental assistiram ao surgimento dessas virulências, que um porra-louca como Slavoj Zizek, hoje, chama de “disruptivas”. Não por acaso, ao cantar em livro as glórias do jacobinismo, a despeito de sua tara homicida, o doutor nos convida a considerar uma tradição da esquerda que remonta, com efeito, ao tempo em que a guilhotina se tornou o melhor argumento: a construção de um novo homem implica a amoralidade da utopia.

Como esquecer o Trótski de “A Nossa Moral e a Deles” a indagar, ainda que de modo oblíquo, se a luta contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola poderia poupar mulheres, velhos e crianças. Não lhe ocorreu que se pode enfrentar o inimigo de modo escrupuloso.

Falemos do ambiente nativo. Ainda hoje, boa parte da “intelligentsia” universitária brasileira, de esquerda, entende que o padrão necessariamente conservador de um regime democrático —conservador de instituições, não de iniquidades— trapaceia como elemento de coesão a abrigar as diferenças. Ela o vê como força dissuasiva da disposição de luta dos deserdados, que, na escatologia desses bambas, ainda herdarão a Terra. É uma mistura de marxismo com cristianismo, de Lênin com água benta.

A extrema direita, por sua vez, repudia as forças de coesão, pespegando-lhes a pecha de tolerantes com a desordem, com os bandidos, com os agressores dos “valores da família”, com os corruptos.

Apelo a momentos um tanto dramáticos e a alguma literatura política porque a vulgaridade ágrafa ameaça sufocar qualquer pensamento complexo. Estamos, para ainda continuar nas alturas, vivendo dias de sonâmbulos, aqueles de Christopher Clark, à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando qualquer, nos recônditos de uma Sarajevo qualquer, nos conduza a uma tragédia catártica. E, depois de tudo, talvez então nos perguntemos: “Como foi que fizemos isso?”

A Lava Jato poderia ter sido a frente saneadora do sistema, combatendo os elementos patogênicos nele infiltrados, de tal sorte que a força coatora do Estado atuasse em favor do que chamo de “elemento de coesão”.

Em vez disso, procuradores e policiais federais deixaram de produzir provas —e juízes deixaram de exigi-las— e passaram a produzir teoria política, ainda que seu projeto de poder não alcance além das cercanias das forças de repressão. E, nessa perspectiva, o Estado de Direito se tornou a sua principal vítima. Os bandidos até podem sobreviver sob a nova ordem que se pretende implementar —sobretudo se fizerem delação —, mas não a presunção de inocência, o habeas corpus e o devido processo legal.

À esquerda, o PT e seus satélites repetem o mantra mentiroso de que está em curso uma conspiração para obstar as tais forças disruptivas. À direita, uma miríade de oportunistas e de grupelhos de pressão —são tão estranhos ao liberalismo como é o carvão ao diamante—reivindicam o Estado Leviatã, pouco importando o direito de defesa e as garantias legais, tomados como atentados aos anseios da maioria e à segurança da sociedade. Temos uma direita impregnada de coletivismo tóxico.

O diálogo com as forças de conservação de instituições e de coesão está interditado, e o único protagonista reconhecido como legítimo, inclusive por amplos setores da imprensa, é o “Partido da Polícia”.

Quando isso acontece, desaparecem as categorias políticas. Em seu lugar, entram paus, pedras, ovos. E tiros.

Reinaldo Azevedo

Jornalista, escreveu, entre outros, 'O País dos Petralhas' e 'Máximas de um País Mínimo'.