ZERO HORA - 24/02
Uma vez, em uma conversa entre amigos, alguém comentou que jamais conseguiria casar com quem ouvisse Celine Dion. Casar? Eu não conseguiria pegar uma carona com alguém que ouvisse Celine Dion, retruquei, exagerando. E foi nesse tom de brincadeira que continuamos falando sobre nossos eu nunca poderia me relacionar com alguém que....
Puro blábláblá, pois, na hora em que a paixão se apresenta, nossos gostos se adaptam rapidinho, e a gente se pega dançando forró quando queria mesmo era estar num show do Pearl Jam. Ainda assim, essa questão de ter afinidade musical não é absolutamente tola. Gostar de gêneros musicais diferentes não impede um relacionamento, mas, quando há compatibilidade, dois amantes evoluem e transformam-se em dois cúmplices.
Tudo porque a música não é uma forma de ocupar o silêncio, simplesmente. Ela provoca uma experiência física e sensorial. Ela vai buscar você onde você se esconde. E compartilhar isso com quem amamos é roçar no sublime.
Se aquilo que gosto de ouvir estimula as mesmas sensações em quem convive comigo, cria-se um diálogo sem palavras, à prova de mal-entendidos. A música invade e captura o que há de melhor em nós, nossa essência primeira, a que não foi corrompida por racionalizações. E essa sensibilidade refinada, ao ser despertada simultaneamente em um homem e em uma mulher (ou numa plateia inteira, no caso de um espetáculo) gera uma comunhão tão rara quanto mágica.
Muitos filmes já demonstraram como a música pode ser um fator de aproximação entre casais. Para citar dois que concorrem ao Oscar neste domingo, no belíssimo Amor, os protagonistas idosos não eram apaixonados apenas um pelo outro, mas igualmente por música erudita, o que reforçava o laço. Em O Lado Bom da Vida, duas vítimas de perturbações psíquicas encontram uma forma de serenizar sua ansiedade descontrolada através da dança, fazendo com que seus corpos obedeçam a um ritmo, e sua alma também. A música facilita que identifiquemos um “igual”, ou alguém razoavelmente parecido conosco. E ajuda a fazer esse encontro perdurar.
Não que tenha sido descoberta a fórmula do sucesso das relações – elas se desfazem, mesmo quando há gostos afins.
Mas, entre os momentos que ficarão na lembrança, estarão aqueles em que ambos sabiam com certeza o que o outro estava sentindo quando conectados pela música, uma música que, às vezes, nem estava sendo tocada, mas escutada por dentro, como na hora exata do parto do filho, em que se ouve internamente uma orquestra, ou na hora da decolagem de um voo, quando se ouve internamente uma ópera, ou durante o primeiro beijo, quando se ouve internamente... sinos? Humm, eu escolheria uma trilha sonora menos óbvia, mais inspiradora.
Coisa mais triste quando, ao recordar um amor, a gente tenta lembrar: qual era a nossa música? E não havia.
domingo, fevereiro 24, 2013
Nordeste sangrento - ANCELMO GOIS
O GLOBO - 24/02
Só que...
O aumento maior foi nas regiões Norte e Nordeste, onde a taxa de homicídios saltou de 15 para mais de 35 assassinatos por 100 mil habitantes: mais de 100% de aumento entre 1999 e 2010. Segundo dados do Ipea, entre 2001 e 2011, a renda no Nordeste subiu 72,8%, enquanto no Sudeste cresceu 45,8%.
Pais e filhos
A Quarta Turma do STJ abriu, quinta passada, um precedente. Definiu que os pais não são obrigados a dar pensão aos filhos depois que eles terminam o curso de graduação, ainda que estejam desempregados.
Mar não está pra peixe
A Cedae suspendeu, por enquanto, o processo de abertura de seu capital que previa arrecadar uns R$ 3 bilhões. A estatal concluiu que o mercado financeiro anda mal-humorado com o Brasil depois da paulada que tomou no setor elétrico.
Ai, que calor!
De Paula Toller, a cantora, sexta passada, no Twitter:
— Fui à praia para um rápido mergulho sem nenhum, nenhum equipamento, livre, sem frescura. Hoje sequer usei um biquíni. Shprimenta (sic)!
O DOMINGO É DE...
... Deborah Secco, a linda atriz carioca de 33 anos que comprova seu talento a cada novo desafio. Agora, além de interpretar no cinema uma mulher com o vírus da Aids, na telinha ela vive a leve Giovana, no seriado “Louco por elas”, da TV Globo. No próximo episódio, terça agora, ela usará este vestido preto bordado para oficializar a sua solteirice durante uma festa de “descasamento” com Léo, personagem vivido por Eduardo Moscovis. Casa com eu?
Invasão brasuca
Os brasileiros estão comprando mais do que nunca em outlets europeus. Segundo dados da McArthurGlen, uma das maiores redes de outlets de luxo da Europa, houve, pelo menos, 16% mais clientes brasileiros em 2012 do que em 2011.
Só no LA Reggia Designer Outlet, centro de compras da McArthurGlen próximo a Nápoles, foi de 94% o aumento do volume de compras feitas por brasileiros.
Papo de pelada
Sílvio Cesar convocou os amigos de pelada no Politheama para cantar no CD “Agosto”. Vão participar Chico Buarque, dono do campo, Carlinhos Vergueiro, Sombrinha e Hyldon. Sílvio é o autor daquele sucesso “Pra você”. Um trecho: “Ah, se eu fosse você, eu voltava pra mim.”
O mundo de Mautner
Jorge Mautner, o poeta e filósofo, veja só, vai virar professor. Irá dar aula de História Geral no Midrash, o centro de estudos judaico sem março. Vai ensinar o mesmo programa que montou exclusivamente para a filha, a diretora Amora Mautner, quando ela era adolescente.
É da família
Um camelô no Centro do Rio anuncia a venda das “primas das Havaianas”, veja na foto. Enquanto uma Havaiana custa mais de R$10, a dele, que não é legítima, mas é “da mesma família”, custa R$ 4. Ah, bom!
Águia verde e rosa
A lista de beneméritos da Portela surpreende pela quantidade de... mangueirenses. Estão nela o governador Cabral, Elmo José dos Santos e Álvaro Luiz Caetano, ex-presidentes da escola, e o deputado Chiquinho da Mangueira. Todos com direito a voto na próxima eleição da azul e branco.
Já...
Paulinho da Viola, acredite, não é benemérito.
Transplante de rins
O Centro Estadual de Transplante do Hospital São Francisco de Assis, inaugurado quinta passada, já fez dois transplantes de rim e um de fígado. Em 2012, por falta de lugar para fazer transplante no Rio, 72 rins foram enviados para fora do estado. E, em dezembro, três fígados.
A volta da bandeira
Rogério Dornelles e Lucinha Nobre, um dos mais importantes casais de mestre-sala e porta-bandeira da atualidade, estão de volta à Mocidade Independente de Padre Miguel.
‘Playboy’ da Mangueira
Do querido Nelson Sargento, 88 anos, depois de folhear a revista da Mangueira:
— Parece a “Playboy”. Só tem mulher pelada. Só no meio da revista tinha um retrato 3x4 meu e de outros antigos.
MULHERES PERERECAS
Excesso de magreza de um lado. Músculos demais do outro. Luiza Brunet, 50 anos, monumento de beleza, anda intrigada com os corpos femininos exibidos nos desfiles de moda e na passarela do samba. A modelo trocou dois dedos de prosa com Márcia Vieira, da turma da coluna.
Falou sobre a sua biografia que está escrevendo ao lado da amiga Laura Malin e elegeu as rainhas de bateria mais bonitas do carnaval que passou. Veja a seguir:
O que está acontecendo com o corpo das madrinhas de bateria?
Elas perderam a mão. Acho feio este tipo de corpo musculoso como o da Gracyanne Barbosa (rainha na Mangueira). Há um excesso de musculatura. São mulheres pererecas: cintura fina, coxa grossa e perna fina. Antes, os corpos eram mais femininos.
De quais madrinhas você mais gostou este ano?
Sabrina Sato e Quitéria Chagas. A Sabrina é um tipo mais feminino, tem um corpo belíssimo. Ela tem carisma, é simpática, trabalha pra caramba. Acho ela mais parecida com as rainhas da época em que eu comecei. E a Quitéria é uma mulata linda. Ela tem uma leveza quando samba! Ela flutua no ar, tem gestos femininos.
E, na moda, a tendência à magreza vai passar?
Eu torço para que passe porque as meninas estão cada vez mais magras. Elas têm acesso a tudo que não é legal para ficar nesse padrão. O que me deixa mais triste é ver as agências tratando modelo como produto e não como ser humano.
Quando você desfilava, não era assim?
Não. Eu sobressaí porque era gostosa. Tinha um corpo bem brasileiro.
Este foi o primeiro ano em três décadas que você ficou longe da Sapucaí. Foi difícil?
Eu amo carnaval, mas decidi fazer uma coisa totalmente diferente. Fugi deste calorão e fui para o frio de Nova York.
Na biografia que você está escrevendo, vai ter referência à sua saída da Dijon, do Humberto Saade?
Claro. Eu tinha 22 anos, queria sair, e o Humberto não aceitou. Ele queria o direito sobre o meu nome. Foi um momento muito difícil, mas eu devo muito a ele. A partir daquela confusão, fiquei esperta com os contratos. Não assino nada que, no futuro, possa me dar uma rasteira.
Yoani e a ‘Senhor’ - CAETANO VELOSO
O GLOBO - 24/02
Nossos esquerdistas mereceriam mais confiança se tratassem Yoani com respeito
É difícil aceitar como progressista a atitude dos que agrediram Yoani Sanchez em sua chegada ao Brasil. E logo em minhas duas terras, Bahia e Pernambuco (ganhei cidadania da Assembleia Legislativa Pernambucana, a Casa de Joaquim Nabuco). Se um indivíduo eleva voz dissidente num país que mantém presos políticos por décadas, deveria receber o apoio dos que lutam pela justiça. Quando Marighella ficou sabendo o que se passava na União Soviética sob Stalin (pelas revelações que Nikita Kruschev, num esboço de perestroica-glasnost, incentivou), ficou semanas a fio em pranto. Para ser sincero, não me surpreenderam as revelações kruschevianas: meu pai, apesar de ser simpatizante de esquerda, sempre comentava que a Rússia stalinista podia esconder opressões brutais. Mas o pasmo entre comunistas foi grande. O chororô de Marighella pareceu desproporcional a alguns de seus companheiros, mas diz algo de profundamente bom sobre ele.
Não desconheço a possibilidade de interpretar os fatos políticos a partir de uma perspectiva que submeta o sentido moral do caso Yoani à crítica do desequilíbrio mundial. A força americana pode ser sentida a ponto de neguinho pôr sua capacidade de solidariedade abaixo de uma visão geral da luta. Aí Fidel pode ser visto como o herói que enfrenta o Dragão da Maldade, qualquer relativização desse enfrentamento sendo suspeito. Por que Obama não acaba com o bloqueio a Cuba? Yoani pode aparecer nesse quadro como uma colaboracionista. Mas como, se ela própria declara repúdio ao embargo?
Tive a honra de ser atacado juntamente com Yoani por Fidel em pessoa. Fidel escreveu o prefácio a um livro sobre Evo Morales (que nome! Sempre paro quando ouço ou leio o nome de Eva no masculino) e, nesse prefácio, me desancou por eu ter dito em entrevista que minha canção “Base de Guantánamo” não significava apoio à política de Estado cubana. Ali, o herói caribenho me equiparava à blogueira de milhões. Éramos, os dois, agentes do imperialismo americano. Inocentes úteis da potência capitalista. Gosto dos textos de Yoani. Fui a Havana em 1999 e sinto a presença da vida cubana neles. Eu teria mais confiança em nossos esquerdistas se eles a tratassem com respeito.
Gente próxima e distante estranhou que eu escrevesse que estou triste. Minha mãe morreu. Senti a passagem do tempo com violência. Mas leio “Porventura”, de Antonio Cicero, e a força (qualidade) dos poemas me revigora. Filósofo e poeta, Cicero é um dos grandes.
Recebi de presente essa maravilha que é o livro-antologia da revista “Senhor”. Gracias Ana Maria Mello e Ruy Castro. Em 1959, um vendedor de enciclopédias bateu à nossa porta em Santo Amaro. Ele oferecia a assinatura de uma revista cujos primeiros números trazia consigo. Meu irmão Rodrigo, a quem devo tanto, ficou impressionado com o que via e me chamou para que eu tomasse conhecimento da novidade. Ele sabia que eu ia gostar. Fiquei extasiado com as capas e os títulos das matérias: contos de grandes autores conhecidos e desconhecidos, cartuns geniais, comentários inteligentes e cheios de humor sobre assuntos diversos. Suponho que contei longamente sobre o efeito que tiveram sobre mim o primeiro LP de João Gilberto (que saiu em 1959) e, já a partir de 1960, as atividades culturais da Universidade da Bahia sob o reitor Edgard Santos. Devo ter mencionado a “Senhor” também. Mas não creio que tenha dito com todas as letras que essa revista desempenhou papel no mínimo igualmente determinante em minha formação. E estou certo de tê-la conhecido antes de ouvir João. O impacto foi enorme. Tudo o que eu adivinhava nas páginas de Millôr em “O Cruzeiro” (que eu guardava numa caixa) e nos contos de William Saroyan — a modernidade — aparecia desenvolvido nessa publicação. É emocionante para mim rever os desenhos de Glauco Rodrigues, Bea Feitler, Carlos Scliar; os artigos de Paulo Francis; as charges elegantíssimas de Jaguar (que traço!, que ideias!); os contos de Clarice. Curioso ler o texto de Ivan Lessa sobre justamente a nascente bossa nova. Ele, informadíssimo, no calor da hora já falava em Chet Baker. Mas reagia à Rolleiflex do “Desafinado” (e à canção como um todo) com rejeição semelhante à sofrida por imagens e sons tropicalistas poucos anos depois. Eu, que dependia da elegância da Bossa e da “Senhor”, já aprovava a liberdade da menção à marca de câmera e o humor do jogo com o verbo “revelar”. Lessa (que tem um texto engraçadíssimo e muito bem escrito no livro paralelo “SR, uma senhora revista”) censurava. Revelava sua enorme ingratidão. Mas ele saúda o surgimento de Carlos Lyra e Roberto Menescal (embora, como Bob Dylan, por cima de Jobim!).
Nossos esquerdistas mereceriam mais confiança se tratassem Yoani com respeito
É difícil aceitar como progressista a atitude dos que agrediram Yoani Sanchez em sua chegada ao Brasil. E logo em minhas duas terras, Bahia e Pernambuco (ganhei cidadania da Assembleia Legislativa Pernambucana, a Casa de Joaquim Nabuco). Se um indivíduo eleva voz dissidente num país que mantém presos políticos por décadas, deveria receber o apoio dos que lutam pela justiça. Quando Marighella ficou sabendo o que se passava na União Soviética sob Stalin (pelas revelações que Nikita Kruschev, num esboço de perestroica-glasnost, incentivou), ficou semanas a fio em pranto. Para ser sincero, não me surpreenderam as revelações kruschevianas: meu pai, apesar de ser simpatizante de esquerda, sempre comentava que a Rússia stalinista podia esconder opressões brutais. Mas o pasmo entre comunistas foi grande. O chororô de Marighella pareceu desproporcional a alguns de seus companheiros, mas diz algo de profundamente bom sobre ele.
Não desconheço a possibilidade de interpretar os fatos políticos a partir de uma perspectiva que submeta o sentido moral do caso Yoani à crítica do desequilíbrio mundial. A força americana pode ser sentida a ponto de neguinho pôr sua capacidade de solidariedade abaixo de uma visão geral da luta. Aí Fidel pode ser visto como o herói que enfrenta o Dragão da Maldade, qualquer relativização desse enfrentamento sendo suspeito. Por que Obama não acaba com o bloqueio a Cuba? Yoani pode aparecer nesse quadro como uma colaboracionista. Mas como, se ela própria declara repúdio ao embargo?
Tive a honra de ser atacado juntamente com Yoani por Fidel em pessoa. Fidel escreveu o prefácio a um livro sobre Evo Morales (que nome! Sempre paro quando ouço ou leio o nome de Eva no masculino) e, nesse prefácio, me desancou por eu ter dito em entrevista que minha canção “Base de Guantánamo” não significava apoio à política de Estado cubana. Ali, o herói caribenho me equiparava à blogueira de milhões. Éramos, os dois, agentes do imperialismo americano. Inocentes úteis da potência capitalista. Gosto dos textos de Yoani. Fui a Havana em 1999 e sinto a presença da vida cubana neles. Eu teria mais confiança em nossos esquerdistas se eles a tratassem com respeito.
Gente próxima e distante estranhou que eu escrevesse que estou triste. Minha mãe morreu. Senti a passagem do tempo com violência. Mas leio “Porventura”, de Antonio Cicero, e a força (qualidade) dos poemas me revigora. Filósofo e poeta, Cicero é um dos grandes.
Recebi de presente essa maravilha que é o livro-antologia da revista “Senhor”. Gracias Ana Maria Mello e Ruy Castro. Em 1959, um vendedor de enciclopédias bateu à nossa porta em Santo Amaro. Ele oferecia a assinatura de uma revista cujos primeiros números trazia consigo. Meu irmão Rodrigo, a quem devo tanto, ficou impressionado com o que via e me chamou para que eu tomasse conhecimento da novidade. Ele sabia que eu ia gostar. Fiquei extasiado com as capas e os títulos das matérias: contos de grandes autores conhecidos e desconhecidos, cartuns geniais, comentários inteligentes e cheios de humor sobre assuntos diversos. Suponho que contei longamente sobre o efeito que tiveram sobre mim o primeiro LP de João Gilberto (que saiu em 1959) e, já a partir de 1960, as atividades culturais da Universidade da Bahia sob o reitor Edgard Santos. Devo ter mencionado a “Senhor” também. Mas não creio que tenha dito com todas as letras que essa revista desempenhou papel no mínimo igualmente determinante em minha formação. E estou certo de tê-la conhecido antes de ouvir João. O impacto foi enorme. Tudo o que eu adivinhava nas páginas de Millôr em “O Cruzeiro” (que eu guardava numa caixa) e nos contos de William Saroyan — a modernidade — aparecia desenvolvido nessa publicação. É emocionante para mim rever os desenhos de Glauco Rodrigues, Bea Feitler, Carlos Scliar; os artigos de Paulo Francis; as charges elegantíssimas de Jaguar (que traço!, que ideias!); os contos de Clarice. Curioso ler o texto de Ivan Lessa sobre justamente a nascente bossa nova. Ele, informadíssimo, no calor da hora já falava em Chet Baker. Mas reagia à Rolleiflex do “Desafinado” (e à canção como um todo) com rejeição semelhante à sofrida por imagens e sons tropicalistas poucos anos depois. Eu, que dependia da elegância da Bossa e da “Senhor”, já aprovava a liberdade da menção à marca de câmera e o humor do jogo com o verbo “revelar”. Lessa (que tem um texto engraçadíssimo e muito bem escrito no livro paralelo “SR, uma senhora revista”) censurava. Revelava sua enorme ingratidão. Mas ele saúda o surgimento de Carlos Lyra e Roberto Menescal (embora, como Bob Dylan, por cima de Jobim!).
Geração ritalina - ROSELI FISCHAMANN
O ESTADÃO - 24/02
O aumento do consumo de ritalina e congêneres sinaliza como a medicalização de crianças e adolescentes, em substituição a processos educacionais mais plenos, tem sido um caminho "confortável" para famílias, escolas e sociedade, apesar de ser apenas aparente solução para situações vividas.Em nada auxilia o trabalho educativo dos pais, o que se verifica nas estruturas domésticas, qual seja, a passagem dos sistemas tribais (em que todos são responsáveis por todas as crianças do clã, vivendo em amplos espaços compartilhados) para sistemas de unidades familiares (alojadas em imóveis urbanos exíguos). Mesmo se não pensarmos em clãs, há o fato de essas famílias nucleares serem cada vez menores, contrapondo-se ao tempo não tão remoto em que a família era maior, com ascendentes convivendo proximamente, assim como agregados diversos.
O aumento da expectativa de vida e a ampliação das possibilidades de participação socioeconômica trazem situações novas. Avôs e avós estão no mercado de trabalho, sendo muitas vezes responsáveis pelo sustento familiar. Não há mais a figura da vovó velhinha contando histórias e fazendo bolinhos de chuva para os netos, sendo assim um apoio afetivo e emocional à formação.
A criação e a educação dos filhos sobre os efeitos dos diversos tipos de pressão que vivem os pais, em ambientes cada vez mais competitivos, extrapolam o âmbito profissional. São pressões que se espraiam pela imagem propiciada por bens de consumo e usufruto de serviços, somadas ao ritmo acelerado pelo uso das tecnologias de informação, que também reformulam o conceito de tempo, agora composto com um espaço desdobrado em muitos (o presencial, o virtual instantâneo, o virtual latente, etc.).
Toda essa agitação em que vivem os adultos reposiciona as crianças na vida familiar.Espera-se que a criança seja responsável por resultados e por compor parte da imagem de perfeição. É quando se insinua a tentação de lidar de modo mais "eficaz" com a "indisciplina" da criança. Se a preciosa espontaneidade infantil traz situações de "bagunça" doméstica, e suas habilidades motoras, em desenvolvimento, pedem amplidão para exercitar-se e acabam por precisar se acomodar ao espaço disponível, não é o caso de imediatamente rotulá-las como "problemáticas" e "hiperativas", buscando o médico e a prescrição de drogas que as "ajustem".
Uma criança é uma vida em desenvolvimento, com necessidades diversas e ritmos próprios. Ela precisa da interação com adultos para conhecer limites e possibilidades e não para receber a camisa de força de expectativas impróprias que apenas fazem transbordar as pressões vividas pelos pais. A individualidade de cada criança e adolescente não é indício de individualismo, mas de sinais que indicam direções necessárias para que possam se formar como seres íntegros, participativos na família e na sociedade, críticos e colaborativos, produtivos e felizes.
Para trazer um paralelo com as pressões sobre os adultos, no livro Por que a Psicanálise?a francesa Elizabeth Roudinesco, psicanalista lacaniana e historiadora da cultura, afirma que nosso tempo colocou a depressão no lugar que foi antes ocupado por outras doenças como a tuberculose no século 19. Isto é, como mal do século, voltando-se para desenvolver drogas que propiciem lidar com a dor sem enfrentar o que a provoca.
Elizabeth Roudinesco aponta como essa eliminação medicamentosa da dor pode ser um modo de aumentar a alienação. Abrandar artificialmente a dor acomoda e conforma aqueles que, talvez exatamente pelo espírito crítico e inquieto, mais estejam propensos à depressão. E isso os anula. A autora ressalta: expressar-se, verbalizar a dor, debater até encontrar a fonte do incômodo, isso sim propiciaria o sentimento de "preciso fazer algo a respeito", o que ajudaria a mudar as bases sociais que concorrem de modo tão intenso e extenso para a depressão. No caso das crianças que não se enquadram em casos clínicos, mas que vão de roldão, o uso de drogas é menos e pior que um paliativo. Porque caberia perguntar: paliativo para o quê?
A educação de crianças e adolescentes tem na autonomia um de seus fins mais inquestionáveis e decisivos, amparada em capacidade crítica e reflexiva, bem como na responsabilidade pelas escolhas que se faz.Autonomia não significa isolamento ou egoísmo. Ao contrário, exige a plena assunção da alteridade, da vida com os outros, que são a outra face que se impõe eticamente e nos indica até onde podemos ir, com o que podemos contar, o que devemos respeitar, concordando ou não, apreciando ou não.
Já a heteronomia, ou seja, a definição dos próprios atos e atitudes por outrem, está fora do horizonte educacional. Um dos maiores equívocos em relação à disciplina é supor que a determinação a partir de fora possa ser positiva para uma criança. Embora rotina e normas que se deve cumprir sejam parte indispensável da formação da criança, a autodisciplina tem valor insuperável. Por isso, educar é trabalhoso e exige disponibilidade, atenção e abertura para o ser da criança. Educar uma criança é também educar-se, porque gera oportunidades de desenvolvimento para o próprio adulto que não se apresentam em outras situações. O reconhecimento do ganho do processo educativo também para os pais, exatamente por todo o trabalho que exige, é o maior apoio que se pode ter.
Finalmente, mesmo para um mundo imerso nas expectativas do que se espera que um filho ou uma filha possa atingir, vale lembrar o pensamento do prêmio Nobel de Medicina e um dos criadores da etologia, o estudo do comportamento animal (o ser humano aí incluído), Konrad Lorenz, no livro A Demolição do Homem. Ao indicar que ética e amor devem ser os pilares para a criação de crianças desde a mais tenra idade, Lorenz traz o tema da curiosidade. Afirma que muito frequentemente famílias e escolas podam radicalmente a curiosidade das crianças, como se fosse inadequada. Até pelo modo de os pequenos muitas vezes, involuntariamente, saírem-se com perguntas que causam constrangimento. Lorenz afirma que a curiosidade é a base do amor e do pensamento científico. Sabe se que, para a ciência, propor questões é fundamental, e para isso, há que se olhar o mundo com olhos sempre novos. E como se liga a curiosidade ao amor? Lorenz lembra que um dos mais claros indícios de interesse afetivo por alguém é a imensa vontade de saber mais sobre aquela pessoa, dos aspectos mais simples (residência, idade, lugares que frequenta, etc.) aos mais complexos (opiniões, histórias e vivências). Esse interesse é, de fato, curiosidade. E, sem poder expandir e expressar essa curiosidade, o amor não se apresenta, nem se desenvolve.
Assim, as crianças agitadas e tomadas como "impossíveis" podem ser exatamente as mensageiras das agitações e impossibilidades parentais, nela refletidas, que pedem atenção com os adultos. Como podem ser também mensageiras de toda curiosidade que têm e nelas se agita, enquanto traz consigo todas as possibilidades de amor e conhecimento que se concretizarão, bem encaminhadas a energia, a disposição e a curiosidade,em vez de sufocadas por um medicamento que as fará, sim, "obedientes", mas ao custo de homogeneizar friamente o que apenas pede crescimento, luz e calor.
O aumento do consumo de ritalina e congêneres sinaliza como a medicalização de crianças e adolescentes, em substituição a processos educacionais mais plenos, tem sido um caminho "confortável" para famílias, escolas e sociedade, apesar de ser apenas aparente solução para situações vividas.Em nada auxilia o trabalho educativo dos pais, o que se verifica nas estruturas domésticas, qual seja, a passagem dos sistemas tribais (em que todos são responsáveis por todas as crianças do clã, vivendo em amplos espaços compartilhados) para sistemas de unidades familiares (alojadas em imóveis urbanos exíguos). Mesmo se não pensarmos em clãs, há o fato de essas famílias nucleares serem cada vez menores, contrapondo-se ao tempo não tão remoto em que a família era maior, com ascendentes convivendo proximamente, assim como agregados diversos.
O aumento da expectativa de vida e a ampliação das possibilidades de participação socioeconômica trazem situações novas. Avôs e avós estão no mercado de trabalho, sendo muitas vezes responsáveis pelo sustento familiar. Não há mais a figura da vovó velhinha contando histórias e fazendo bolinhos de chuva para os netos, sendo assim um apoio afetivo e emocional à formação.
A criação e a educação dos filhos sobre os efeitos dos diversos tipos de pressão que vivem os pais, em ambientes cada vez mais competitivos, extrapolam o âmbito profissional. São pressões que se espraiam pela imagem propiciada por bens de consumo e usufruto de serviços, somadas ao ritmo acelerado pelo uso das tecnologias de informação, que também reformulam o conceito de tempo, agora composto com um espaço desdobrado em muitos (o presencial, o virtual instantâneo, o virtual latente, etc.).
Toda essa agitação em que vivem os adultos reposiciona as crianças na vida familiar.Espera-se que a criança seja responsável por resultados e por compor parte da imagem de perfeição. É quando se insinua a tentação de lidar de modo mais "eficaz" com a "indisciplina" da criança. Se a preciosa espontaneidade infantil traz situações de "bagunça" doméstica, e suas habilidades motoras, em desenvolvimento, pedem amplidão para exercitar-se e acabam por precisar se acomodar ao espaço disponível, não é o caso de imediatamente rotulá-las como "problemáticas" e "hiperativas", buscando o médico e a prescrição de drogas que as "ajustem".
Uma criança é uma vida em desenvolvimento, com necessidades diversas e ritmos próprios. Ela precisa da interação com adultos para conhecer limites e possibilidades e não para receber a camisa de força de expectativas impróprias que apenas fazem transbordar as pressões vividas pelos pais. A individualidade de cada criança e adolescente não é indício de individualismo, mas de sinais que indicam direções necessárias para que possam se formar como seres íntegros, participativos na família e na sociedade, críticos e colaborativos, produtivos e felizes.
Para trazer um paralelo com as pressões sobre os adultos, no livro Por que a Psicanálise?a francesa Elizabeth Roudinesco, psicanalista lacaniana e historiadora da cultura, afirma que nosso tempo colocou a depressão no lugar que foi antes ocupado por outras doenças como a tuberculose no século 19. Isto é, como mal do século, voltando-se para desenvolver drogas que propiciem lidar com a dor sem enfrentar o que a provoca.
Elizabeth Roudinesco aponta como essa eliminação medicamentosa da dor pode ser um modo de aumentar a alienação. Abrandar artificialmente a dor acomoda e conforma aqueles que, talvez exatamente pelo espírito crítico e inquieto, mais estejam propensos à depressão. E isso os anula. A autora ressalta: expressar-se, verbalizar a dor, debater até encontrar a fonte do incômodo, isso sim propiciaria o sentimento de "preciso fazer algo a respeito", o que ajudaria a mudar as bases sociais que concorrem de modo tão intenso e extenso para a depressão. No caso das crianças que não se enquadram em casos clínicos, mas que vão de roldão, o uso de drogas é menos e pior que um paliativo. Porque caberia perguntar: paliativo para o quê?
A educação de crianças e adolescentes tem na autonomia um de seus fins mais inquestionáveis e decisivos, amparada em capacidade crítica e reflexiva, bem como na responsabilidade pelas escolhas que se faz.Autonomia não significa isolamento ou egoísmo. Ao contrário, exige a plena assunção da alteridade, da vida com os outros, que são a outra face que se impõe eticamente e nos indica até onde podemos ir, com o que podemos contar, o que devemos respeitar, concordando ou não, apreciando ou não.
Já a heteronomia, ou seja, a definição dos próprios atos e atitudes por outrem, está fora do horizonte educacional. Um dos maiores equívocos em relação à disciplina é supor que a determinação a partir de fora possa ser positiva para uma criança. Embora rotina e normas que se deve cumprir sejam parte indispensável da formação da criança, a autodisciplina tem valor insuperável. Por isso, educar é trabalhoso e exige disponibilidade, atenção e abertura para o ser da criança. Educar uma criança é também educar-se, porque gera oportunidades de desenvolvimento para o próprio adulto que não se apresentam em outras situações. O reconhecimento do ganho do processo educativo também para os pais, exatamente por todo o trabalho que exige, é o maior apoio que se pode ter.
Finalmente, mesmo para um mundo imerso nas expectativas do que se espera que um filho ou uma filha possa atingir, vale lembrar o pensamento do prêmio Nobel de Medicina e um dos criadores da etologia, o estudo do comportamento animal (o ser humano aí incluído), Konrad Lorenz, no livro A Demolição do Homem. Ao indicar que ética e amor devem ser os pilares para a criação de crianças desde a mais tenra idade, Lorenz traz o tema da curiosidade. Afirma que muito frequentemente famílias e escolas podam radicalmente a curiosidade das crianças, como se fosse inadequada. Até pelo modo de os pequenos muitas vezes, involuntariamente, saírem-se com perguntas que causam constrangimento. Lorenz afirma que a curiosidade é a base do amor e do pensamento científico. Sabe se que, para a ciência, propor questões é fundamental, e para isso, há que se olhar o mundo com olhos sempre novos. E como se liga a curiosidade ao amor? Lorenz lembra que um dos mais claros indícios de interesse afetivo por alguém é a imensa vontade de saber mais sobre aquela pessoa, dos aspectos mais simples (residência, idade, lugares que frequenta, etc.) aos mais complexos (opiniões, histórias e vivências). Esse interesse é, de fato, curiosidade. E, sem poder expandir e expressar essa curiosidade, o amor não se apresenta, nem se desenvolve.
Assim, as crianças agitadas e tomadas como "impossíveis" podem ser exatamente as mensageiras das agitações e impossibilidades parentais, nela refletidas, que pedem atenção com os adultos. Como podem ser também mensageiras de toda curiosidade que têm e nelas se agita, enquanto traz consigo todas as possibilidades de amor e conhecimento que se concretizarão, bem encaminhadas a energia, a disposição e a curiosidade,em vez de sufocadas por um medicamento que as fará, sim, "obedientes", mas ao custo de homogeneizar friamente o que apenas pede crescimento, luz e calor.
E a banda passou - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 24/02
Por toda zona sul do Rio, são multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos
Passado o Carnaval, me ponho a refletir. No final da década de 1950, o Carnaval de rua, no Rio, havia morrido. À exceção do Cordão da Bola Preta e de um ou outro bloco, quase nada havia. É certo que alguns foliões mascarados, vestidos de palhaço, de urso ou vestidos de mulher, vagavam pela Cinelândia, misturavam-se a um ou outro grupo de gente que brincava na avenida Rio Branco.
Bêbados desgarrados sempre houve e haverá, mas o Carnaval de rua, com banda de música tocando e muita gente sambando, como décadas atrás, isso não havia mais. Por que, não sei, mas lembro das conversas de foliões nostálgicos, lamentando o fim desse tipo de brincadeira carnavalesca.
Foi então que, em Ipanema, surgiu um pequeno grupo que decidiu sair para a rua, batucando e cantando. Parece que a primeira aparição desse grupo foi em 1964, pouco antes do golpe militar que viria instaurar uma ditadura no país. Não era muita gente, não, dez ou 20 pessoas e alguns músicos, creio eu.
Nascia a Banda de Ipanema, inventada por Albino Pinheiro e Ferdy Carneiro, a que aderiram Jaguar, Ziraldo, a turma do Pasquim e do Jangadeiro, mas também Sérgio Cabral e o grupo que militara no CPC da UNE e depois no Teatro Opinião, encabeçados por Thereza Aragão. Com o tempo, outros mais aderiram.
O pessoal se reunia na praça General Osório, a banda começava a tocar chamando gente, aumentando o bloco que seguia pela Prudente de Morais até a altura do Bar Vinte, se não me falha a memória. Ali dobrava e retornava pela Visconde de Pirajá de volta à praça de onde partira e onde se dispersava.
Àquela altura, já anoitecera e o pessoal bastante animado, especialmente porque, durante o percurso, parava nos bares para tomar cerveja e batidas de limão.
Era comum que, quando chegava à praça, já muita gente ficara pelo caminho, muitos pelos botecos onde enchiam a cara pelo resto da noite.
A Banda de Ipanema era, assim, uma exceção, mas, de certo modo, uma retomada do Carnaval de rua que, talvez pela importância que o bairro tomara, por nele residirem ou frequentarem seus restaurantes e bares, artistas e intelectuais de prestígio, despertava o interesse de gente de outros bairros -e a banda foi crescendo, de ano para ano.
Não demorou muito e aquele pequeno grupo inicial duplicara ou triplicara de tamanho, e com isso o entusiasmo dos carnavalescos crescia contaminando, claro, os moradores do bairro que, no começo, ficavam nas janelas vendo a banda passar.
E com isso ela também se tornou, de certo modo, manifestação política contra o regime militar. Não explicitamente e sim pelo fato mesmo de opor-se à hipócrita seriedade da ditadura: mostrar-se alegre e irreverente já era ser contra os milicos. Os anos se passaram e outras bandas começaram a surgir em diferentes bairros da zona sul do Rio: no Leme, em Copacabana, no Catete, no Jardim Botânico.
Tive que deixar o país e, assim que voltei, já estava eu lá na banda de Ipanema. Havia muita gente nova, mas os antigos companheiros continuavam lá. Em seguida, mudei-me para Copacabana e, com o tempo, deixei de desfilar. Quando voltei a participar, ela havia mudado muito. Fora alguns dos velhos participantes -Albino, Jaguar, Sérgio Cabral-, a banda tinha sido tomada por outra turma, e à frente dela iam alegríssimos travestis, vindos talvez de outros Estados.
A banda crescera bastante, não conhecia quase ninguém, ou não encontrava os amigos em meio a tanta gente. Foi a última vez que desfilei.
Pois bem, acabo de ver na televisão a banda de hoje desfilando pela Vieira Souto, tomada por uma multidão, que mal conseguia caminhar quanto mais sambar. Coisa semelhante ocorre, agora, por toda a zona sul do Rio, do Jardim Botânico a Santa Tereza, de Botafogo à Cinelândia. São multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos.
No sábado de Carnaval, aquilo que foi outrora o Cordão da Bola Preta tornara-se uma multidão que encheu a avenida Rio Branco, criando um sufoco: gente apavorada não conseguia sair dali, algumas moças desmaiaram e foram, a muito custo, resgatadas por policiais.
É, a vida muda e, às vezes, para pior.
Por toda zona sul do Rio, são multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos
Passado o Carnaval, me ponho a refletir. No final da década de 1950, o Carnaval de rua, no Rio, havia morrido. À exceção do Cordão da Bola Preta e de um ou outro bloco, quase nada havia. É certo que alguns foliões mascarados, vestidos de palhaço, de urso ou vestidos de mulher, vagavam pela Cinelândia, misturavam-se a um ou outro grupo de gente que brincava na avenida Rio Branco.
Bêbados desgarrados sempre houve e haverá, mas o Carnaval de rua, com banda de música tocando e muita gente sambando, como décadas atrás, isso não havia mais. Por que, não sei, mas lembro das conversas de foliões nostálgicos, lamentando o fim desse tipo de brincadeira carnavalesca.
Foi então que, em Ipanema, surgiu um pequeno grupo que decidiu sair para a rua, batucando e cantando. Parece que a primeira aparição desse grupo foi em 1964, pouco antes do golpe militar que viria instaurar uma ditadura no país. Não era muita gente, não, dez ou 20 pessoas e alguns músicos, creio eu.
Nascia a Banda de Ipanema, inventada por Albino Pinheiro e Ferdy Carneiro, a que aderiram Jaguar, Ziraldo, a turma do Pasquim e do Jangadeiro, mas também Sérgio Cabral e o grupo que militara no CPC da UNE e depois no Teatro Opinião, encabeçados por Thereza Aragão. Com o tempo, outros mais aderiram.
O pessoal se reunia na praça General Osório, a banda começava a tocar chamando gente, aumentando o bloco que seguia pela Prudente de Morais até a altura do Bar Vinte, se não me falha a memória. Ali dobrava e retornava pela Visconde de Pirajá de volta à praça de onde partira e onde se dispersava.
Àquela altura, já anoitecera e o pessoal bastante animado, especialmente porque, durante o percurso, parava nos bares para tomar cerveja e batidas de limão.
Era comum que, quando chegava à praça, já muita gente ficara pelo caminho, muitos pelos botecos onde enchiam a cara pelo resto da noite.
A Banda de Ipanema era, assim, uma exceção, mas, de certo modo, uma retomada do Carnaval de rua que, talvez pela importância que o bairro tomara, por nele residirem ou frequentarem seus restaurantes e bares, artistas e intelectuais de prestígio, despertava o interesse de gente de outros bairros -e a banda foi crescendo, de ano para ano.
Não demorou muito e aquele pequeno grupo inicial duplicara ou triplicara de tamanho, e com isso o entusiasmo dos carnavalescos crescia contaminando, claro, os moradores do bairro que, no começo, ficavam nas janelas vendo a banda passar.
E com isso ela também se tornou, de certo modo, manifestação política contra o regime militar. Não explicitamente e sim pelo fato mesmo de opor-se à hipócrita seriedade da ditadura: mostrar-se alegre e irreverente já era ser contra os milicos. Os anos se passaram e outras bandas começaram a surgir em diferentes bairros da zona sul do Rio: no Leme, em Copacabana, no Catete, no Jardim Botânico.
Tive que deixar o país e, assim que voltei, já estava eu lá na banda de Ipanema. Havia muita gente nova, mas os antigos companheiros continuavam lá. Em seguida, mudei-me para Copacabana e, com o tempo, deixei de desfilar. Quando voltei a participar, ela havia mudado muito. Fora alguns dos velhos participantes -Albino, Jaguar, Sérgio Cabral-, a banda tinha sido tomada por outra turma, e à frente dela iam alegríssimos travestis, vindos talvez de outros Estados.
A banda crescera bastante, não conhecia quase ninguém, ou não encontrava os amigos em meio a tanta gente. Foi a última vez que desfilei.
Pois bem, acabo de ver na televisão a banda de hoje desfilando pela Vieira Souto, tomada por uma multidão, que mal conseguia caminhar quanto mais sambar. Coisa semelhante ocorre, agora, por toda a zona sul do Rio, do Jardim Botânico a Santa Tereza, de Botafogo à Cinelândia. São multidões que já não dançam nem cantam, puxadas por trios elétricos.
No sábado de Carnaval, aquilo que foi outrora o Cordão da Bola Preta tornara-se uma multidão que encheu a avenida Rio Branco, criando um sufoco: gente apavorada não conseguia sair dali, algumas moças desmaiaram e foram, a muito custo, resgatadas por policiais.
É, a vida muda e, às vezes, para pior.
O Pedrão, a Leo e a Melinha - HUMBERTO WERNECK
O Estado de S.Paulo - 24/02
Dona Alzira está passada desde que leu no jornal essa história da exumação de Dom Pedro I (furo de reportagem, lembro a ela, do Edison Veiga e do Vitor Hugo Brandalise aqui no Estadão). Não só de Dom Pedro mas também de Dona Leopoldina e Dona Amélia, com as quais, sabemos todos, ele subiu ao altar, uma de cada vez, é claro. Só faltou sacarem da cova uma terceira Dona, Domitília de Castro, a Marquesa de Santos, com a qual o imperador andou subindo, não ao altar, mas ao nirvana carnal.
O que mais injuriou minha amiga foi, nas suas palavras, o desrespeito à figura de Pedro I. Entre outras grosserias, a exibição de sua imperial caveira, ainda que aparentemente os dentes estejam todos no lugar. Ah, diz ela, não precisavam ter exposto à galhofa republicana as mandíbulas hoje descarnadas por entre as quais transitou o famoso grito, às margens então plácidas do Ipiranga. Dona Alzira tampouco gostou de ver alardeada a notícia de que o imperador fraturou quatro costelas ao literalmente cair do cavalo, logo ele, um ás da equitação. E daí? Se ele jazia não em um, mas em três caixões, argumenta, um dentro do outro, qual boneca russa, era para que o deixassem em paz.
Ainda que inteiro, o esqueleto de Dom Pedro estava lastimavelmente bagunçado - segundo leu Dona Alzira, de tanto que o chacoalharam, coitado, quando o trouxeram de Lisboa, em 1972. A embalagem com os despojos teria sofrido rudes sacolejos no trajeto pelas sucessivas capitais por onde passou triunfalmente. É dessa época a paixão (um pouco mais do que cívica, chego a desconfiar) de Dona Alzira pelo imperador. Ela se lembra de ter lido no Jornal da Tarde, dias a fio, o diário de bordo de um repórter que veio junto com os ossos de Dom Pedro num navio chamado Funchal. Fernando Portela, identifico eu. Isso, diz ela, e observa: meio irreverente, o moço, além de audacioso: em plena ditadura Medici, o danado conseguiu contar nas entrelinhas que a esposa de um ministro graúdo abandonou às pressas a mesa do almoço para lançar no oceano o conteúdo de seu estômago mareado.
Quase um século e meio depois de falecer, Dom Pedro I fazia então o que se julgava ser sua última viagem - que acabaria sendo a penúltima, pois agora o sacaram de sua cripta, no Ipiranga, e na moita o levaram, noite alta, até o Hospital das Clínicas, onde cientistas o submeteram a exames, como se fosse, preconceito à parte, um paciente do SUS.
Tais exames, que no parecer de Dona Alzira raiam ao vilipêndio, revelaram coisas que ninguém precisava saber - como o fato de que Pedro I, tão grande no imaginário popular, media 1,70 metro, por aí. Mais: com exceção das abotoaduras, de ouro, os adornos de seu cadáver são de metais plebeus. Falaram até dos botões de osso da cueca do imperador!
Soube-se também que os derradeiros brincos de Dona Leopoldina têm, em vez de pedras preciosas, gemas feitas de resina. Em compensação, ressalta Dona Alzira, a ausência de fraturas veio aniquilar aleivosias segundo as quais o imperador teria jogado a mulher escada a baixo na Quinta da Boa Vista, quebrando-lhe um fêmur. Já a discreta Dona Amélia, revelou-se uma múmia: 137 anos depois de baixar à cova, seu corpo, embora enegrecido, está espantosamente bem conservado.
Mas precisava mostrar coisas assim? - revolta-se minha amiga. Para completar, nas Clínicas botaram apelidos nos defuntos: a pretexto de sigilo, permitiram-se o desplante de chamá-los de "Pedrão, "Leo" e "Melinha", e ao grupo, "Trio Parada Dura". Pelo menos providenciaram, a pedido da família imperial, um padre para rezar durante a exumação. Em latim. Poucas vezes uma língua morta terá sido tão adequada à circunstância.
Acabou-se a sem-cerimônia? Nada, desalenta-se Dona Alzira: agora estão dizendo que talvez seja possível reconstituir os rostos e até as vozes dos falecidos. Tento consolar a boa senhora: quem sabe a gente vai poder ouvir Dom Pedro gritando Independência ou Morte?
Dona Alzira está passada desde que leu no jornal essa história da exumação de Dom Pedro I (furo de reportagem, lembro a ela, do Edison Veiga e do Vitor Hugo Brandalise aqui no Estadão). Não só de Dom Pedro mas também de Dona Leopoldina e Dona Amélia, com as quais, sabemos todos, ele subiu ao altar, uma de cada vez, é claro. Só faltou sacarem da cova uma terceira Dona, Domitília de Castro, a Marquesa de Santos, com a qual o imperador andou subindo, não ao altar, mas ao nirvana carnal.
O que mais injuriou minha amiga foi, nas suas palavras, o desrespeito à figura de Pedro I. Entre outras grosserias, a exibição de sua imperial caveira, ainda que aparentemente os dentes estejam todos no lugar. Ah, diz ela, não precisavam ter exposto à galhofa republicana as mandíbulas hoje descarnadas por entre as quais transitou o famoso grito, às margens então plácidas do Ipiranga. Dona Alzira tampouco gostou de ver alardeada a notícia de que o imperador fraturou quatro costelas ao literalmente cair do cavalo, logo ele, um ás da equitação. E daí? Se ele jazia não em um, mas em três caixões, argumenta, um dentro do outro, qual boneca russa, era para que o deixassem em paz.
Ainda que inteiro, o esqueleto de Dom Pedro estava lastimavelmente bagunçado - segundo leu Dona Alzira, de tanto que o chacoalharam, coitado, quando o trouxeram de Lisboa, em 1972. A embalagem com os despojos teria sofrido rudes sacolejos no trajeto pelas sucessivas capitais por onde passou triunfalmente. É dessa época a paixão (um pouco mais do que cívica, chego a desconfiar) de Dona Alzira pelo imperador. Ela se lembra de ter lido no Jornal da Tarde, dias a fio, o diário de bordo de um repórter que veio junto com os ossos de Dom Pedro num navio chamado Funchal. Fernando Portela, identifico eu. Isso, diz ela, e observa: meio irreverente, o moço, além de audacioso: em plena ditadura Medici, o danado conseguiu contar nas entrelinhas que a esposa de um ministro graúdo abandonou às pressas a mesa do almoço para lançar no oceano o conteúdo de seu estômago mareado.
Quase um século e meio depois de falecer, Dom Pedro I fazia então o que se julgava ser sua última viagem - que acabaria sendo a penúltima, pois agora o sacaram de sua cripta, no Ipiranga, e na moita o levaram, noite alta, até o Hospital das Clínicas, onde cientistas o submeteram a exames, como se fosse, preconceito à parte, um paciente do SUS.
Tais exames, que no parecer de Dona Alzira raiam ao vilipêndio, revelaram coisas que ninguém precisava saber - como o fato de que Pedro I, tão grande no imaginário popular, media 1,70 metro, por aí. Mais: com exceção das abotoaduras, de ouro, os adornos de seu cadáver são de metais plebeus. Falaram até dos botões de osso da cueca do imperador!
Soube-se também que os derradeiros brincos de Dona Leopoldina têm, em vez de pedras preciosas, gemas feitas de resina. Em compensação, ressalta Dona Alzira, a ausência de fraturas veio aniquilar aleivosias segundo as quais o imperador teria jogado a mulher escada a baixo na Quinta da Boa Vista, quebrando-lhe um fêmur. Já a discreta Dona Amélia, revelou-se uma múmia: 137 anos depois de baixar à cova, seu corpo, embora enegrecido, está espantosamente bem conservado.
Mas precisava mostrar coisas assim? - revolta-se minha amiga. Para completar, nas Clínicas botaram apelidos nos defuntos: a pretexto de sigilo, permitiram-se o desplante de chamá-los de "Pedrão, "Leo" e "Melinha", e ao grupo, "Trio Parada Dura". Pelo menos providenciaram, a pedido da família imperial, um padre para rezar durante a exumação. Em latim. Poucas vezes uma língua morta terá sido tão adequada à circunstância.
Acabou-se a sem-cerimônia? Nada, desalenta-se Dona Alzira: agora estão dizendo que talvez seja possível reconstituir os rostos e até as vozes dos falecidos. Tento consolar a boa senhora: quem sabe a gente vai poder ouvir Dom Pedro gritando Independência ou Morte?
Não chore, Guilhermina - DANUZA LEÃO
FOLHA DE SP - 24/02
Ser rejeitado pelo Country é o castigo por querer pertencer ao clube mais gagá do Brasil
Passei a detestar clubes desde o dia em que, há muitos anos, presenciei uma conversa entre alguns sócios de um famoso clube do Rio, o Country. Nesse tempo a garotada tinha a mania de roubar carros, dar umas voltas no quarteirão e depois largá-los em qualquer lugar. Detalhe: não eram ladrões, apenas adolescentes brincando de transgredir.
Só que nesse dia a polícia viu, e foi atrás; os meninos, apavorados, entraram no estacionamento do Country (eram filhos de sócios), e a polícia foi atrás. O final dessa história não importa, mas nunca esqueci do que ouvi. Segundo esses sócios, a polícia não tinha o direito de entrar num clube privado, que tal? Foi a partir daí que comecei a detestar clubes e, mais ainda, os que ditam as regras dos clubes.
No Country é assim: a pessoa que pretende ser sócia, em primeiro lugar compra um título -entre R$ 500.000,00 e R$ 1.000.000,00; depois paga o mico de ter seu nome estampado num quadro, e se arrisca a pagar um mico ainda maior, o de não ser aceito (as famosas bolas pretas), e ter que fingir que nada aconteceu. Ninguém jamais saberá porque a pessoa levou bola preta, e também jamais saberá quem deu a(s) bola(s) preta(s). Esse é um ato de covardia, e como no clube ninguém tem assunto, um prato para os sócios. O alvo predileto dos que votam costuma ser mulheres solteiras e bonitas; eles sabem, intuitivamente, que a elas jamais terão acesso. E tem o grupo das mulheres, que pressiona os maridos para votar contra, porque não querem no clube mulheres solteiras e bonitas, ai ai.
O Country é um clube decadente, frequentado por pessoas -excetuando algumas poucas- tão decadentes quanto. Gente que não tem coragem de se expor, e passa a vida almoçando, jantando, casando, traindo, roubando, dando pequenos golpes dentro da própria família, protegida pelas paredes do clube; lá tudo pode e tudo é perdoado, desde que aconteça entre os sócios. É como se fosse um país dentro de outro país, com um presidente, seus ministros, suas fronteiras, suas leis. Não sei onde tem mais mofo, se nos sofás ou nas cabeças desses frequentadores, que adoram seus privilégios: as piscinas, as quadras de tênis, a liberdade de assinar as notas para pagar no fim do mês -quando pagam. Como os sócios estão, em boa parte, falidos, podem comer seu picadinho -ruim- lembrando dos velhos tempos. Bom mesmo vai ser no dia em que um deles escrever um livro contando as histórias do clube, que devem ser de arrepiar, mas vai ser difícil: quando você fica sócio, passa automaticamente a fazer parte de uma sociedade secreta, tipo uma máfia, onde a ormetà (voto de silêncio) é sagrada. Tudo pode -e põe tudo nisso-, desde que seja só entre eles.
Logo que cheguei de férias soube do affair Guilhermina Guinle, que tentou ser sócia do clube mas foi bombardeada por bolas pretas. Pensei, pensei, e não entendi. Por que uma mulher bonita, charmosa, rica, de sucesso, quer ser sócia do Country? E pensei que, como todos os que já receberam as tais bolas pretas, ela mereceu: é o castigo de querer pertencer ao clube mais gagá do Brasil. Dá para entender que uma pessoa pague uma fortuna pelo título de um clube em que alguns poucos vão decidir se ela pode frequentá-lo? E é possível alguém querer frequentar um lugar em que é preciso pedir licença para entrar, e essa permissão ser dada -ou não- por um pequeno grupo cujo momento de gloria é a reunião do clube, onde podem dar vazão às suas frustrações e se vingar da vida? Não dá para entender mes-mo.
Aliás, seria uma boa ideia desapropriar aquele belo terreno que dá frente para a av. Vieira Souto e fazer ali um jardim público onde os atuais sócios poderiam ir dar seus passeios e falar mal da vida dos outros, sem pagar um só tostão.
O papa se demitiu, os meteoros estão caindo, o mundo se acabando, e o Country continua acreditando em suas bolas pretas. É de chorar.
Ser rejeitado pelo Country é o castigo por querer pertencer ao clube mais gagá do Brasil
Passei a detestar clubes desde o dia em que, há muitos anos, presenciei uma conversa entre alguns sócios de um famoso clube do Rio, o Country. Nesse tempo a garotada tinha a mania de roubar carros, dar umas voltas no quarteirão e depois largá-los em qualquer lugar. Detalhe: não eram ladrões, apenas adolescentes brincando de transgredir.
Só que nesse dia a polícia viu, e foi atrás; os meninos, apavorados, entraram no estacionamento do Country (eram filhos de sócios), e a polícia foi atrás. O final dessa história não importa, mas nunca esqueci do que ouvi. Segundo esses sócios, a polícia não tinha o direito de entrar num clube privado, que tal? Foi a partir daí que comecei a detestar clubes e, mais ainda, os que ditam as regras dos clubes.
No Country é assim: a pessoa que pretende ser sócia, em primeiro lugar compra um título -entre R$ 500.000,00 e R$ 1.000.000,00; depois paga o mico de ter seu nome estampado num quadro, e se arrisca a pagar um mico ainda maior, o de não ser aceito (as famosas bolas pretas), e ter que fingir que nada aconteceu. Ninguém jamais saberá porque a pessoa levou bola preta, e também jamais saberá quem deu a(s) bola(s) preta(s). Esse é um ato de covardia, e como no clube ninguém tem assunto, um prato para os sócios. O alvo predileto dos que votam costuma ser mulheres solteiras e bonitas; eles sabem, intuitivamente, que a elas jamais terão acesso. E tem o grupo das mulheres, que pressiona os maridos para votar contra, porque não querem no clube mulheres solteiras e bonitas, ai ai.
O Country é um clube decadente, frequentado por pessoas -excetuando algumas poucas- tão decadentes quanto. Gente que não tem coragem de se expor, e passa a vida almoçando, jantando, casando, traindo, roubando, dando pequenos golpes dentro da própria família, protegida pelas paredes do clube; lá tudo pode e tudo é perdoado, desde que aconteça entre os sócios. É como se fosse um país dentro de outro país, com um presidente, seus ministros, suas fronteiras, suas leis. Não sei onde tem mais mofo, se nos sofás ou nas cabeças desses frequentadores, que adoram seus privilégios: as piscinas, as quadras de tênis, a liberdade de assinar as notas para pagar no fim do mês -quando pagam. Como os sócios estão, em boa parte, falidos, podem comer seu picadinho -ruim- lembrando dos velhos tempos. Bom mesmo vai ser no dia em que um deles escrever um livro contando as histórias do clube, que devem ser de arrepiar, mas vai ser difícil: quando você fica sócio, passa automaticamente a fazer parte de uma sociedade secreta, tipo uma máfia, onde a ormetà (voto de silêncio) é sagrada. Tudo pode -e põe tudo nisso-, desde que seja só entre eles.
Logo que cheguei de férias soube do affair Guilhermina Guinle, que tentou ser sócia do clube mas foi bombardeada por bolas pretas. Pensei, pensei, e não entendi. Por que uma mulher bonita, charmosa, rica, de sucesso, quer ser sócia do Country? E pensei que, como todos os que já receberam as tais bolas pretas, ela mereceu: é o castigo de querer pertencer ao clube mais gagá do Brasil. Dá para entender que uma pessoa pague uma fortuna pelo título de um clube em que alguns poucos vão decidir se ela pode frequentá-lo? E é possível alguém querer frequentar um lugar em que é preciso pedir licença para entrar, e essa permissão ser dada -ou não- por um pequeno grupo cujo momento de gloria é a reunião do clube, onde podem dar vazão às suas frustrações e se vingar da vida? Não dá para entender mes-mo.
Aliás, seria uma boa ideia desapropriar aquele belo terreno que dá frente para a av. Vieira Souto e fazer ali um jardim público onde os atuais sócios poderiam ir dar seus passeios e falar mal da vida dos outros, sem pagar um só tostão.
O papa se demitiu, os meteoros estão caindo, o mundo se acabando, e o Country continua acreditando em suas bolas pretas. É de chorar.
Sobre baratas e homens - VERA PAIVA
O ESTADÃO - 24/02
Em férias do primeiro colegial, segui para Londres, para a casa de Fernando Gasparian, industrial exilado e melhor amigo do meu pai. Uma manhã, na entrada da escola de inglês, colegas me mostravam as manchetes de jornais europeus: "Você viu?" Era fevereiro de 1971. Na capa, a notícia da prisão de meus pais e minha irmã de 15 anos. Estava escrito: "Rubens Paiva foi preso, torturado e, dizem, jogado ao mar". Escondiam há dias o que havia acontecido... para me proteger, ou sem saber o que falar. Passei semanas entre Londres e Paris, recebendo olhares de compaixão e a solidariedade de exilados, também sem saber o que dizer a uma menina, órfã da ditadura, talvez... Mais uma. Gilberto Gil me consolou na casa de Violeta Arraes. No Brasil, temiam que eu fosse presa no aeroporto. Só voltei para a família arrasada e para a escola no final de março.
Recorro a outras cenas e perguntas, um recurso metodológico precioso na vida acadêmica, no calor da confirmação pela Comissão da Verdade de que Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi.
Passamos décadas sem saber como explicar a ausência do pai ou poder construir um luto. "Desaparecido". Cruelmente, ficava posto em nossas mãos decidir se ele tinha morrido ou não, e quando. Foi só em 2011, quando o livro Segredo de Estado (de J. Tércio) detalhou como foi sua prisão e morte, com base em boa pesquisa jornalística e documentos agora validados pela Comissão da Verdade, e uma exposição itinerante sobre a história de Rubens Paiva foi inaugurada, que descobrimos - família e amigos vivos - como cada um viveu seu luto em anos diferentes.
Milhares de famílias tiveram e ainda têm essa experiência desde os anos de chumbo. Há muito deixamos de ser "um punhadinho de gente", estereotipada como "subversiva", "terrorista" ou "bandida". Pessoas com ou sem partido, de todas as cores, etnias, religiões, 42 anos depois ainda têm seus parentes encarcerados arbitrariamente, torturados, mortos e desaparecidos "em resistência" à ação policial ou pela ação de bandidos na guerra civil que, de fato, só se generalizou quando humanos viraram baratas. Sim, baratas.
Há dez anos, a convite de Serginho Groisman, fomos debater com o cel. Erasmo Dias, que, como o delegado Fleury, assombrou minha geração. Perguntei: "Como o senhor se sente, deputado eleito e usufruindo das nossas conquistas democráticas? Como avalia sua entrada na PUC jogando bombas em mulheres grávidas, com cavalos em sala de aula?" Lutávamos pelo direito a eleições livres, por democracia, pelo nosso direito de discordar. A resposta do coronel, vaiada pela jovem plateia do programa Altas Horas: "Eu era autoridade. Tinha que fazer valer o princípio de autoridade, não importa se eram meninas comunistas ou baratas, o que fosse, tinha que reprimir". Imagens de época exibem Erasmão na TV com a prova da "subversão terrorista": faixas de papel-manilha rosa pintadas à mão pedindo liberdades democráticas e justiça. "Era isso a subversão?", espantam-se os que não viveram esse tempo.
Nos anos seguintes, enquanto a democracia se reconstruía (1980-1990), adeptos da linha dura cultivaram cuidadosamente a noção de que "direitos humanos são para bandido". Ou, como diria Paulo Maluf, "há humanos com direitos e humanos sem direitos".
Posições mais ou menos elaboradas de como produzir um mundo melhor sempre dividiram a humanidade. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos define que as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que fundamentam a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Parecia evidente a noção de dignidade no momento de sua proclamação por uma Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1948, horrorizada com a verdade e encarando a memória do nazifascismo e as cenas de Hiroshima e Nagasaki. Logo a Guerra Fria deixou clara a coexistência histórica, mais ou menos tensa, de diferentes noções de autonomia e dignidade associadas à humanidade.
Seguiram-se outras perguntas: por que não mulheridade como sinônimo de humanidade? A escravidão continuada no racismo é liberdade? A destruição da natureza e o consumismo desenfreado são sinônimos de dignidade? Heterossexualidade é a única liberdade? Boaventura Santos, propondo o uso emancipador dos direitos humanos, alerta que a humanidade que nos iguala acumula diferentes tradições e noções de dignidade: as herdadas do judaísmo, do cristianismo e outras tradições culturais, como o darma, hindu, ou a uma, da tradição islâmica, que devemos considerar no diálogo democrático.
Retomando as perguntas e revirando cenas: que noção de dignidade você gostaria de deixar como legado no Brasil para seus netos? Sintetizo, buscando o debate: um país onde se viva em paz, mais justo, onde todas as crianças possam crescer educadas e com saúde, brincar nas ruas como um dia foi possível, afirmar sua singularidade, debater livremente suas ideias, resolver pacificamente suas diferenças, ganhar e perder sustentando com dignidade a luta diária.
Provoca-lhe revolta diária a guerra civil brasileira que mata mais que na Síria e no Afeganistão? Você repudia os bandidos que, em guerra e armados (pelo Estado e não) copiam décadas de violência de Estado impunes, prendem, torturam, matam e desaparecem com crianças, jovens, adultos e velhos? Trata-se de um genocídio, se analisamos os números de mortos entre jovens negros e entre os mais pobres, indígenas ou homossexuais (às vezes basta "parecer um"). Fica horrorizado/a quando lê sobre o assassinato brutal de uma mulher corajosa, juíza carioca que investigava policiais corruptos, assassinos, torturadores? Continuo: aceitaria que seus filhos/as e netos/as fossem amigos de um torturador?
Como filha de Rubens e Eunice Paiva, respondi à jornalista na semana retrasada: se encontrasse os que torturaram minha família há 42 anos, gostaria que fossem julgados, com direito à defesa, como exige a Constituição de 1988, conhecida como a dos Direitos Humanos, essa que ajudamos a construir, pelos quais meu pai morreu e os quais minha mãe viveu defendendo.
Direito de bandidos? Baratas? Defenderei que usufruam o que negaram a meu pai e três gerações de idealistas que, com suas noções diversas de liberdade e dignidade, lotaram prisões clandestinas ou oficiais, submetidos às leis de exceção e à ação extraoficial de um Estado ditatorial e torturador.
Muitos militares e trabalhadores, empresários e fazendeiros, religiosos, muitos editores, jornalistas, professores e estudantes, médicos, juízes e advogados apoiaram abertamente a ditadura civil-militar. Muitos outros, não. Entre eles, gente nos quartéis.
Civis gostaram bastante que parte dos militares, convencidos pela ideologia de segurança nacional em tempos de Guerra Fria e cheios de ambição pessoal pelo poder, representassem seus interesses (nacionais e internacionais) sem ter que mostrar a cara, sem ter que enfrentar o debate apaixonado e democrático de hoje. Outros se arrependeram rapidamente, porque não concordavam com a redução de pessoas a baratas, apesar de temerem pelos interesses que governo eleito e movimentos sociais da época expressavam - acesso ao trabalho digno e decente, educação e terra para todos e, como defendia meu pai desde a juventude e como deputado, que o petróleo achado em território brasileiro - tão disputado nos últimos anos em tempos de pré-sal - fosse usado em benefício dos brasileiros e não de um punhado de multinacionais.
Ações ditatoriais foram "um mal necessário", como justificou em 2010 o ministro Marco Aurélio Mello? Votos como o dele sustentaram no STF a Lei da Anistia vigente, contestada nas cortes internacionais por deixar torturadores impunes e manter vivo seu exemplo. Temia-se o quê, a memória comprometida com o "mal necessário"? Alemães convivem com a verdade dos museus preservados do Holocausto; americanos, com a memória de Hiroshima e Nagasaki; inúmeros países dão conta de julgamentos pós-comissões da verdade, que devolveram a países como Argentina, Chile, Uruguai e África do Sul o direito de ensinar às novas gerações que desse mal nunca deveríamos necessitar. Já no Brasil... A quem interessa perpetuar essa cultura da violência que divide o mundo entre homens e baratas?
"O que você faria se encontrasse os torturadores de seu pai?" Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer um no Brasil de hoje. Eles estão impunes e soltos, dos dois lados da guerra civil, reproduzindo essa cultura iniciada na escravidão e perpetuada nas ditaduras à qual sempre foi possível resistir: d. Paulo Evaristo Arns, conosco pelos direitos humanos, resistia ao setor de sua Igreja que sempre teme mudanças; os empresários José Mindlin e a família Ermírio de Moraes e o banqueiro Walter M. Salles se recusaram a contribuir para a caixinha de empresários que financiava os horrores dos centros de extermínio de opositores, como mostra o documentário de Litewski, Cidadão Boilesen.
Funcionários da reitoria nos entregavam ao Dops e essa semana justificaram, inventaram, que "iam nos acompanhar". Muitos mais foram solidários, como quando o futuro senador Romeu Tuma (lembram?) nos interrogava na Polícia Federal. Falando sobre o movimento estudantil que defendíamos e a democracia que construímos, o delegado Tuma perguntava: "Seu pai faz o quê? Onde ele está?" Diante de minha resposta de que ele saberia melhor, respondia: "Ora, está lá em Cuba com outra família...".
Essa mentira, humilhante e torturante, foi sepultada pela Comissão da Verdade. Espero que as novas gerações pensem com sua cabeça, enfrentem a memória histórica, recusem a mentira e teorias autoritárias do "mal necessário". No mundo que desejo construir para meus netos, militares e policiais deixariam de proteger a cultura da tortura, e a violência não ficaria impune pelas mãos de operadores de direito; os que têm algo a dizer perderiam o medo, usariam o direito ao sigilo garantido pela Comissão da Memória e da Verdade para trazer a paz e fazer o bem. Repito o que minha geração, encurralada pelo Erasmão no Viaduto do Chá em maio de 1977, gritava pacificamente: "Hoje, consente quem cala".
Em férias do primeiro colegial, segui para Londres, para a casa de Fernando Gasparian, industrial exilado e melhor amigo do meu pai. Uma manhã, na entrada da escola de inglês, colegas me mostravam as manchetes de jornais europeus: "Você viu?" Era fevereiro de 1971. Na capa, a notícia da prisão de meus pais e minha irmã de 15 anos. Estava escrito: "Rubens Paiva foi preso, torturado e, dizem, jogado ao mar". Escondiam há dias o que havia acontecido... para me proteger, ou sem saber o que falar. Passei semanas entre Londres e Paris, recebendo olhares de compaixão e a solidariedade de exilados, também sem saber o que dizer a uma menina, órfã da ditadura, talvez... Mais uma. Gilberto Gil me consolou na casa de Violeta Arraes. No Brasil, temiam que eu fosse presa no aeroporto. Só voltei para a família arrasada e para a escola no final de março.
Recorro a outras cenas e perguntas, um recurso metodológico precioso na vida acadêmica, no calor da confirmação pela Comissão da Verdade de que Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi.
Passamos décadas sem saber como explicar a ausência do pai ou poder construir um luto. "Desaparecido". Cruelmente, ficava posto em nossas mãos decidir se ele tinha morrido ou não, e quando. Foi só em 2011, quando o livro Segredo de Estado (de J. Tércio) detalhou como foi sua prisão e morte, com base em boa pesquisa jornalística e documentos agora validados pela Comissão da Verdade, e uma exposição itinerante sobre a história de Rubens Paiva foi inaugurada, que descobrimos - família e amigos vivos - como cada um viveu seu luto em anos diferentes.
Milhares de famílias tiveram e ainda têm essa experiência desde os anos de chumbo. Há muito deixamos de ser "um punhadinho de gente", estereotipada como "subversiva", "terrorista" ou "bandida". Pessoas com ou sem partido, de todas as cores, etnias, religiões, 42 anos depois ainda têm seus parentes encarcerados arbitrariamente, torturados, mortos e desaparecidos "em resistência" à ação policial ou pela ação de bandidos na guerra civil que, de fato, só se generalizou quando humanos viraram baratas. Sim, baratas.
Há dez anos, a convite de Serginho Groisman, fomos debater com o cel. Erasmo Dias, que, como o delegado Fleury, assombrou minha geração. Perguntei: "Como o senhor se sente, deputado eleito e usufruindo das nossas conquistas democráticas? Como avalia sua entrada na PUC jogando bombas em mulheres grávidas, com cavalos em sala de aula?" Lutávamos pelo direito a eleições livres, por democracia, pelo nosso direito de discordar. A resposta do coronel, vaiada pela jovem plateia do programa Altas Horas: "Eu era autoridade. Tinha que fazer valer o princípio de autoridade, não importa se eram meninas comunistas ou baratas, o que fosse, tinha que reprimir". Imagens de época exibem Erasmão na TV com a prova da "subversão terrorista": faixas de papel-manilha rosa pintadas à mão pedindo liberdades democráticas e justiça. "Era isso a subversão?", espantam-se os que não viveram esse tempo.
Nos anos seguintes, enquanto a democracia se reconstruía (1980-1990), adeptos da linha dura cultivaram cuidadosamente a noção de que "direitos humanos são para bandido". Ou, como diria Paulo Maluf, "há humanos com direitos e humanos sem direitos".
Posições mais ou menos elaboradas de como produzir um mundo melhor sempre dividiram a humanidade. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos define que as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que fundamentam a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Parecia evidente a noção de dignidade no momento de sua proclamação por uma Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1948, horrorizada com a verdade e encarando a memória do nazifascismo e as cenas de Hiroshima e Nagasaki. Logo a Guerra Fria deixou clara a coexistência histórica, mais ou menos tensa, de diferentes noções de autonomia e dignidade associadas à humanidade.
Seguiram-se outras perguntas: por que não mulheridade como sinônimo de humanidade? A escravidão continuada no racismo é liberdade? A destruição da natureza e o consumismo desenfreado são sinônimos de dignidade? Heterossexualidade é a única liberdade? Boaventura Santos, propondo o uso emancipador dos direitos humanos, alerta que a humanidade que nos iguala acumula diferentes tradições e noções de dignidade: as herdadas do judaísmo, do cristianismo e outras tradições culturais, como o darma, hindu, ou a uma, da tradição islâmica, que devemos considerar no diálogo democrático.
Retomando as perguntas e revirando cenas: que noção de dignidade você gostaria de deixar como legado no Brasil para seus netos? Sintetizo, buscando o debate: um país onde se viva em paz, mais justo, onde todas as crianças possam crescer educadas e com saúde, brincar nas ruas como um dia foi possível, afirmar sua singularidade, debater livremente suas ideias, resolver pacificamente suas diferenças, ganhar e perder sustentando com dignidade a luta diária.
Provoca-lhe revolta diária a guerra civil brasileira que mata mais que na Síria e no Afeganistão? Você repudia os bandidos que, em guerra e armados (pelo Estado e não) copiam décadas de violência de Estado impunes, prendem, torturam, matam e desaparecem com crianças, jovens, adultos e velhos? Trata-se de um genocídio, se analisamos os números de mortos entre jovens negros e entre os mais pobres, indígenas ou homossexuais (às vezes basta "parecer um"). Fica horrorizado/a quando lê sobre o assassinato brutal de uma mulher corajosa, juíza carioca que investigava policiais corruptos, assassinos, torturadores? Continuo: aceitaria que seus filhos/as e netos/as fossem amigos de um torturador?
Como filha de Rubens e Eunice Paiva, respondi à jornalista na semana retrasada: se encontrasse os que torturaram minha família há 42 anos, gostaria que fossem julgados, com direito à defesa, como exige a Constituição de 1988, conhecida como a dos Direitos Humanos, essa que ajudamos a construir, pelos quais meu pai morreu e os quais minha mãe viveu defendendo.
Direito de bandidos? Baratas? Defenderei que usufruam o que negaram a meu pai e três gerações de idealistas que, com suas noções diversas de liberdade e dignidade, lotaram prisões clandestinas ou oficiais, submetidos às leis de exceção e à ação extraoficial de um Estado ditatorial e torturador.
Muitos militares e trabalhadores, empresários e fazendeiros, religiosos, muitos editores, jornalistas, professores e estudantes, médicos, juízes e advogados apoiaram abertamente a ditadura civil-militar. Muitos outros, não. Entre eles, gente nos quartéis.
Civis gostaram bastante que parte dos militares, convencidos pela ideologia de segurança nacional em tempos de Guerra Fria e cheios de ambição pessoal pelo poder, representassem seus interesses (nacionais e internacionais) sem ter que mostrar a cara, sem ter que enfrentar o debate apaixonado e democrático de hoje. Outros se arrependeram rapidamente, porque não concordavam com a redução de pessoas a baratas, apesar de temerem pelos interesses que governo eleito e movimentos sociais da época expressavam - acesso ao trabalho digno e decente, educação e terra para todos e, como defendia meu pai desde a juventude e como deputado, que o petróleo achado em território brasileiro - tão disputado nos últimos anos em tempos de pré-sal - fosse usado em benefício dos brasileiros e não de um punhado de multinacionais.
Ações ditatoriais foram "um mal necessário", como justificou em 2010 o ministro Marco Aurélio Mello? Votos como o dele sustentaram no STF a Lei da Anistia vigente, contestada nas cortes internacionais por deixar torturadores impunes e manter vivo seu exemplo. Temia-se o quê, a memória comprometida com o "mal necessário"? Alemães convivem com a verdade dos museus preservados do Holocausto; americanos, com a memória de Hiroshima e Nagasaki; inúmeros países dão conta de julgamentos pós-comissões da verdade, que devolveram a países como Argentina, Chile, Uruguai e África do Sul o direito de ensinar às novas gerações que desse mal nunca deveríamos necessitar. Já no Brasil... A quem interessa perpetuar essa cultura da violência que divide o mundo entre homens e baratas?
"O que você faria se encontrasse os torturadores de seu pai?" Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer um no Brasil de hoje. Eles estão impunes e soltos, dos dois lados da guerra civil, reproduzindo essa cultura iniciada na escravidão e perpetuada nas ditaduras à qual sempre foi possível resistir: d. Paulo Evaristo Arns, conosco pelos direitos humanos, resistia ao setor de sua Igreja que sempre teme mudanças; os empresários José Mindlin e a família Ermírio de Moraes e o banqueiro Walter M. Salles se recusaram a contribuir para a caixinha de empresários que financiava os horrores dos centros de extermínio de opositores, como mostra o documentário de Litewski, Cidadão Boilesen.
Funcionários da reitoria nos entregavam ao Dops e essa semana justificaram, inventaram, que "iam nos acompanhar". Muitos mais foram solidários, como quando o futuro senador Romeu Tuma (lembram?) nos interrogava na Polícia Federal. Falando sobre o movimento estudantil que defendíamos e a democracia que construímos, o delegado Tuma perguntava: "Seu pai faz o quê? Onde ele está?" Diante de minha resposta de que ele saberia melhor, respondia: "Ora, está lá em Cuba com outra família...".
Essa mentira, humilhante e torturante, foi sepultada pela Comissão da Verdade. Espero que as novas gerações pensem com sua cabeça, enfrentem a memória histórica, recusem a mentira e teorias autoritárias do "mal necessário". No mundo que desejo construir para meus netos, militares e policiais deixariam de proteger a cultura da tortura, e a violência não ficaria impune pelas mãos de operadores de direito; os que têm algo a dizer perderiam o medo, usariam o direito ao sigilo garantido pela Comissão da Memória e da Verdade para trazer a paz e fazer o bem. Repito o que minha geração, encurralada pelo Erasmão no Viaduto do Chá em maio de 1977, gritava pacificamente: "Hoje, consente quem cala".
Receita para matar a fome - CARLOS HEITOR CONY
FOLHA DE SP - 24/02
RIO DE JANEIRO - E assim se passaram dez anos com o PT no poder. Logo no início, quando tomou posse no primeiro mandato, Lula lançou o Fome Zero. Não sei se acabou com a fome, o fato é que dona Dilma quer acabar com a miséria. Faço votos.
Em espírito de colaboração, tomo a liberdade de lembrar um projeto lançado por Jonathan Swift (1667-1745), autor de "As Viagens de Gulliver", doutor em teologia e deão da catedral de St. Patrick. Preocupado com a fome em algumas regiões da Irlanda, em 1729 escreveu o ensaio "Modesta Proposta para Impedir que os Filhos dos Pobres na Irlanda Pesem sobre seus Pais ou sobre o País, tornando-se Úteis ao Público".
E deu algumas receitas: "Uma criança sadia, bem nutrida é, na idade de um ano, uma nutrição deliciosa, substancial e sã, assada ou cozida, ensopada ou ao forno, podendo ser servida como fricassé ou ragoût. (...) As mães darão de mamar com fartura no último mês, de modo a ficarem carnosos e gordos. Um menino daria dois pratos em um almoço de amigos; quando a família janta só, a metade dianteira ou traseira daria um prato razoável, temperado com um pouco de pimenta e sal. Em média, um menino que pese 12 libras ao nascer pode, em um ano, se é passavelmente nutrido, atingir 28 libras".
Para confirmar suas preocupações com o problema da fome em seu tempo e em sua cidade, Swift legou todos os seus bens para uma instituição fundada por ele, que abrigava mendigos e loucos.
Na primeira viagem a Lilliput, habitada por pigmeus, Gulliver apaga um incêndio no Palácio Real sem necessidade de chamar o Corpo de Bombeiros. Ele urina em cima das chamas e salva o palácio. Com anos de antecedência, Gulliver dá uma lição aos cariocas que desperdiçam o chamado precioso líquido fazendo da cidade um imenso mictório.
RIO DE JANEIRO - E assim se passaram dez anos com o PT no poder. Logo no início, quando tomou posse no primeiro mandato, Lula lançou o Fome Zero. Não sei se acabou com a fome, o fato é que dona Dilma quer acabar com a miséria. Faço votos.
Em espírito de colaboração, tomo a liberdade de lembrar um projeto lançado por Jonathan Swift (1667-1745), autor de "As Viagens de Gulliver", doutor em teologia e deão da catedral de St. Patrick. Preocupado com a fome em algumas regiões da Irlanda, em 1729 escreveu o ensaio "Modesta Proposta para Impedir que os Filhos dos Pobres na Irlanda Pesem sobre seus Pais ou sobre o País, tornando-se Úteis ao Público".
E deu algumas receitas: "Uma criança sadia, bem nutrida é, na idade de um ano, uma nutrição deliciosa, substancial e sã, assada ou cozida, ensopada ou ao forno, podendo ser servida como fricassé ou ragoût. (...) As mães darão de mamar com fartura no último mês, de modo a ficarem carnosos e gordos. Um menino daria dois pratos em um almoço de amigos; quando a família janta só, a metade dianteira ou traseira daria um prato razoável, temperado com um pouco de pimenta e sal. Em média, um menino que pese 12 libras ao nascer pode, em um ano, se é passavelmente nutrido, atingir 28 libras".
Para confirmar suas preocupações com o problema da fome em seu tempo e em sua cidade, Swift legou todos os seus bens para uma instituição fundada por ele, que abrigava mendigos e loucos.
Na primeira viagem a Lilliput, habitada por pigmeus, Gulliver apaga um incêndio no Palácio Real sem necessidade de chamar o Corpo de Bombeiros. Ele urina em cima das chamas e salva o palácio. Com anos de antecedência, Gulliver dá uma lição aos cariocas que desperdiçam o chamado precioso líquido fazendo da cidade um imenso mictório.
Sede de vingança - DIANA LICHTENSTEIN CORSO
ZERO HORA 24/02
Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença
Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em "Django Livre", como já fizera em "Bastardos Inglórios" e em "Kill Bill", o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.
Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.
A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.
Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em "Bastardos". Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.
Questiona-se a cantilena de afrodescendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maus-tratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?
Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!
Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença
Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em "Django Livre", como já fizera em "Bastardos Inglórios" e em "Kill Bill", o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.
Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.
A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.
Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em "Bastardos". Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.
Questiona-se a cantilena de afrodescendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maus-tratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?
Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!
A corrida pela caixa-preta - GARY MARCUS
O ESTADÃO - 24/02
Segundo um artigo de capa do New York Times, o governo Obama pretende conseguir do Congresso aprovação de uma despesa de US$ 3 bilhões para mapear a atividade do cérebro humano. Como será esse investimento na neurociência? Poucos detalhes foram informados.Ocorre que há algumas semanas a União Europeia anunciou também um enorme investimento na área da neurociência; uma iniciativa de dez anos ao custo de US$ 500 milhões para se fazer uma simulação completa do cérebro humano. Não é uma meta realista e o governo Obama não deveria insistir na mesma tentativa. Mais sensato seria mobilizar nossas forças num projeto diferente. Em vez de tentar prematuramente reconstruir o cérebro humano, o governo deveria investir num projeto para compreender a questão fundamental da neurociência: como o cérebro se conecta com o comportamento.
Até certo ponto o cérebro é uma espécie de computador. Assimila a informação e a associa com outras adquiridas anteriormente, e desempenha ações baseadas nos resultados dessas computações de dados.
Para todos os efeitos práticos, compreendemos inteiramente os computadores. Sabemos do que são feitos, como os elétrons se movimentam dentro deles e como suas funções lógicas básicas (como "e", "ou" e "não") se combinam para formar operações mais complexas, como a aritmética e controle(por exemplo realizando um processo x se uma senha é digitada corretamente ou y se foi inserida erroneamente). Já as linguagens de programação relacionam a linguagem da máquina com conjuntos mais abstratos de instruções que são mais rapidamente compreendidas pelos humanos.Uma cadeia ininterrupta de inferências conecta os planos do programador às ações dos elétrons que no final vai implementá-las.
Com relação ao cérebro,sabemos comparativamente pouco, em parte porque é consideravelmente mais difícil de compreender. Existem centenas de tipos diferentes de neurônios, cada um com propriedades físicas diferentes e maneiras distintas de interagir com outros neurônios. Por exemplo, não sabemos se a unidade básica computacional no cérebro é digital (por exemplo, um conjunto de zeros e uns, como em praticamente todos os computadores modernos) ou analógica (como o movimento contínuo do ponteiro de segundos num relógio antigo, método que era com um ente usado em alguns computadores antes da 2ª Guerra). Da mesma maneira, apesar de termos algum conhecimento sobre as regiões do cérebro que participam do processamento e armazenamento de memórias, ainda não entendemos como ele as codifica.E também sabemos pouco sobre como as unidades básicas do cérebro se organizam em circuitos numa escala maior e como esses circuitos, com frequência em partes fisicamente díspares do cérebro, trabalham reunidos para produzir o comportamento unificado.
A biologia moderna surgiu em grande parte graças a três descobertas: a descoberta do DNA por Oswald Avery; a decifração da estrutura física do DNA, por Watson e Crick; e a descoberta de diversos pesquisadores nos anos1960 do código por meio do qual diferentes triplos de nucleotídeos de RNA se transformam em aminoácidos. Tudo foi possível em parte graças aos experimentos de Mendel com as ervilhas, quando identificou os genes.
O cérebro finalmente revelará seus segredos quando fizermos algo similar, constituindo um inventário de seus elementos básicos: análogos neurais aos transistores, portões lógicos e microprocessadores e relacionando esses elementos básicos com computações cognitivas em escala mais ampla. Para associar o cérebro ao comportamento, não precisamos criar um inteiro, como pretendem os europeus; temos de compreender como partes dele trabalham em conjunto e usar novas técnicas, como a optogenética (que permite observar a atividade cerebral e, portanto, o comportamento de um animal, expondo os neurônios à luz) e a obtenção de imagens fluorescentes (que torna possível monitorar as respostas de milhares de neurônios simultaneamente em animais despertos e em movimento).
Em vez de fazer um enorme investimento num único projeto, como os europeus e como o governo Obama aparentemente pretendem, deveríamos financiar cinco projetos separados, a US$ 1 bilhão cada um, para solucionar cinco das questões mais fundamentais até hoje sem resolução no campo da neurociência. Qual é o elemento básico da computação neural? Qual é o programa básico pelo qual informações simbólicas (como frases) são armazenadas? Um segundo projeto deveria se fixar no entendimento das regras que controlam a maneira como os neurônios se organizam em circuitos; um terceiro projeto seria dedicado à plasticidade e desenvolvimento neural e compreender como o cérebro comunica a informação de uma região para outra e determina que circuitos usar numa certa situação; um quarto se concentraria na relação entre os circuitos do cérebro, os genes e o comportamento; e um quinto focaria o desenvolvimento de novas técnicas de análise e observação da função cerebral.
Não podemos deixar de investir, e muito, na neurociência. Se a demanda feita por Obama for negada pelo Congresso, muitos dos maiores neurocientistas do mundo se verão tentados a deixar os EUA em busca de mais financiamento na Europa. Alcançando ou não sua meta, o projeto europeu com certeza propiciará um número significativo de avanços científicos de menor escala. Se os EUA não seguirem o exemplo,provavelmente teremos de nos empenhar muito para recuperar terreno em alguns dos maiores setores revolucionários em perspectiva,como inteligência artificial em nível humano e interface direta cérebro/computador (apesar de ambos os campos terem origem nos EUA).
Mas também não devemos apenas criar um mapa estático. O que necessitamos não é só um diagrama de circuitos do cérebro, mas compreender como esses circuitos trabalham, a linguagem que o cérebro utiliza para codificar a informação e entender como todo esse grupo de circuitos trabalha em conjunto para influir no comportamento humano. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Segundo um artigo de capa do New York Times, o governo Obama pretende conseguir do Congresso aprovação de uma despesa de US$ 3 bilhões para mapear a atividade do cérebro humano. Como será esse investimento na neurociência? Poucos detalhes foram informados.Ocorre que há algumas semanas a União Europeia anunciou também um enorme investimento na área da neurociência; uma iniciativa de dez anos ao custo de US$ 500 milhões para se fazer uma simulação completa do cérebro humano. Não é uma meta realista e o governo Obama não deveria insistir na mesma tentativa. Mais sensato seria mobilizar nossas forças num projeto diferente. Em vez de tentar prematuramente reconstruir o cérebro humano, o governo deveria investir num projeto para compreender a questão fundamental da neurociência: como o cérebro se conecta com o comportamento.
Até certo ponto o cérebro é uma espécie de computador. Assimila a informação e a associa com outras adquiridas anteriormente, e desempenha ações baseadas nos resultados dessas computações de dados.
Para todos os efeitos práticos, compreendemos inteiramente os computadores. Sabemos do que são feitos, como os elétrons se movimentam dentro deles e como suas funções lógicas básicas (como "e", "ou" e "não") se combinam para formar operações mais complexas, como a aritmética e controle(por exemplo realizando um processo x se uma senha é digitada corretamente ou y se foi inserida erroneamente). Já as linguagens de programação relacionam a linguagem da máquina com conjuntos mais abstratos de instruções que são mais rapidamente compreendidas pelos humanos.Uma cadeia ininterrupta de inferências conecta os planos do programador às ações dos elétrons que no final vai implementá-las.
Com relação ao cérebro,sabemos comparativamente pouco, em parte porque é consideravelmente mais difícil de compreender. Existem centenas de tipos diferentes de neurônios, cada um com propriedades físicas diferentes e maneiras distintas de interagir com outros neurônios. Por exemplo, não sabemos se a unidade básica computacional no cérebro é digital (por exemplo, um conjunto de zeros e uns, como em praticamente todos os computadores modernos) ou analógica (como o movimento contínuo do ponteiro de segundos num relógio antigo, método que era com um ente usado em alguns computadores antes da 2ª Guerra). Da mesma maneira, apesar de termos algum conhecimento sobre as regiões do cérebro que participam do processamento e armazenamento de memórias, ainda não entendemos como ele as codifica.E também sabemos pouco sobre como as unidades básicas do cérebro se organizam em circuitos numa escala maior e como esses circuitos, com frequência em partes fisicamente díspares do cérebro, trabalham reunidos para produzir o comportamento unificado.
A biologia moderna surgiu em grande parte graças a três descobertas: a descoberta do DNA por Oswald Avery; a decifração da estrutura física do DNA, por Watson e Crick; e a descoberta de diversos pesquisadores nos anos1960 do código por meio do qual diferentes triplos de nucleotídeos de RNA se transformam em aminoácidos. Tudo foi possível em parte graças aos experimentos de Mendel com as ervilhas, quando identificou os genes.
O cérebro finalmente revelará seus segredos quando fizermos algo similar, constituindo um inventário de seus elementos básicos: análogos neurais aos transistores, portões lógicos e microprocessadores e relacionando esses elementos básicos com computações cognitivas em escala mais ampla. Para associar o cérebro ao comportamento, não precisamos criar um inteiro, como pretendem os europeus; temos de compreender como partes dele trabalham em conjunto e usar novas técnicas, como a optogenética (que permite observar a atividade cerebral e, portanto, o comportamento de um animal, expondo os neurônios à luz) e a obtenção de imagens fluorescentes (que torna possível monitorar as respostas de milhares de neurônios simultaneamente em animais despertos e em movimento).
Em vez de fazer um enorme investimento num único projeto, como os europeus e como o governo Obama aparentemente pretendem, deveríamos financiar cinco projetos separados, a US$ 1 bilhão cada um, para solucionar cinco das questões mais fundamentais até hoje sem resolução no campo da neurociência. Qual é o elemento básico da computação neural? Qual é o programa básico pelo qual informações simbólicas (como frases) são armazenadas? Um segundo projeto deveria se fixar no entendimento das regras que controlam a maneira como os neurônios se organizam em circuitos; um terceiro projeto seria dedicado à plasticidade e desenvolvimento neural e compreender como o cérebro comunica a informação de uma região para outra e determina que circuitos usar numa certa situação; um quarto se concentraria na relação entre os circuitos do cérebro, os genes e o comportamento; e um quinto focaria o desenvolvimento de novas técnicas de análise e observação da função cerebral.
Não podemos deixar de investir, e muito, na neurociência. Se a demanda feita por Obama for negada pelo Congresso, muitos dos maiores neurocientistas do mundo se verão tentados a deixar os EUA em busca de mais financiamento na Europa. Alcançando ou não sua meta, o projeto europeu com certeza propiciará um número significativo de avanços científicos de menor escala. Se os EUA não seguirem o exemplo,provavelmente teremos de nos empenhar muito para recuperar terreno em alguns dos maiores setores revolucionários em perspectiva,como inteligência artificial em nível humano e interface direta cérebro/computador (apesar de ambos os campos terem origem nos EUA).
Mas também não devemos apenas criar um mapa estático. O que necessitamos não é só um diagrama de circuitos do cérebro, mas compreender como esses circuitos trabalham, a linguagem que o cérebro utiliza para codificar a informação e entender como todo esse grupo de circuitos trabalha em conjunto para influir no comportamento humano. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
A partícula profeta do apocalipse - MARCELO GLEISER
FOLHA DE SP - 24/02
O bóson de Higgs, às vezes chamado de 'partícula de Deus', tem o destino do Universo em suas mãos
Como se já não bastasse a confusão causada quando chamam o bóson de Higgs de "partícula de Deus", eis que, recentemente, a mesmíssima partícula voltou à berlinda, agora como profeta do fim.
Isso mesmo, leitores, o destino do Universo está nas mãos dessa partícula ou, mais precisamente, no valor de sua massa.
Tudo começa na cozinha, que é um excelente laboratório. Como sabemos, as propriedades de uma substância, como a água, dependem de sua temperatura: muito frio, a água congela; muito quente, evapora. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase.
Surpreendentemente, o próprio Universo -ou a matéria nele-passou por ao menos uma ou duas transições de fase. E talvez possa passar por mais uma.
A história cósmica começa no Big Bang, que marca o início do tempo. Logo após o "bang", o espaço começou a crescer feito um balão, e a matéria nele se resfriou.
Voltando à cozinha, vemos que a expansão do Universo funciona como uma geladeira, fazendo a temperatura baixar. Será que a matéria cósmica também pode passar por uma transição de fase?
Sabemos que sim. Logo no início, a temperatura era tal que as partículas não tinham massa. A única que tinha era o Higgs, mas ele não interagia com as outras partículas.
Quando a temperatura foi baixando, o Higgs passou a interagir com as partículas com maior intensidade, dando-lhes massa. Esse processo é uma transição de fase que ocorreu quando o Cosmo tinha um trilionésimo de segundo.
Em julho do ano passado, cientistas do laboratório europeu de partículas Cern (onde estarei durante toda a semana -podem esperar algo para domingo que vem) descobriram uma partícula com toda a cara do Higgs. Ainda não temos certeza se é o mesmo Higgs que dá massa para todo mundo, mas tudo indica que sim. O problema é a massa dele, que é entre 124 e 126 vezes maior do que a do próton.
Dependendo da massa do Higgs, o Universo pode passar por outra transição de fase, como a água, que pode ir do estado gasoso ao líquido e do líquido ao sólido.
Se isso for verdade, estaríamos na fase líquida e poderíamos cair na fase sólida. Quando muda a fase -por meio do surgimento de bolhas da fase nova na fase antiga-, muda toda a física e não sobra ninguém para contar essa história. Seria o fim do Universo, ao menos como o conhecemos hoje.
Antes de causar pânico total, algumas boas novas. Os cálculos indicando que a massa do Higgs é próxima da que causa a instabilidade baseiam-se na suposição de que nenhuma nova física (outras partículas ou forças) aparece até as energias vigentes perto do Big Bang. Possível, mas pouco provável. Também dependem de valores muito precisos das massas de certas partículas, que ainda contêm erros. Os mesmos cálculos indicam que o tempo para que o Universo mude para a nova fase é de bilhões de anos.
Resumindo, a possibilidade de transição existe, mas nada é conclusivo e, se ocorrer, deve demorar.
Na semana que vem, falarei com os físicos responsáveis pelo cálculo para ver se têm algo novo. Talvez eu mesmo adicione algo à conta, quem sabe ajudando a salvar o Universo.
O bóson de Higgs, às vezes chamado de 'partícula de Deus', tem o destino do Universo em suas mãos
Como se já não bastasse a confusão causada quando chamam o bóson de Higgs de "partícula de Deus", eis que, recentemente, a mesmíssima partícula voltou à berlinda, agora como profeta do fim.
Isso mesmo, leitores, o destino do Universo está nas mãos dessa partícula ou, mais precisamente, no valor de sua massa.
Tudo começa na cozinha, que é um excelente laboratório. Como sabemos, as propriedades de uma substância, como a água, dependem de sua temperatura: muito frio, a água congela; muito quente, evapora. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase.
Surpreendentemente, o próprio Universo -ou a matéria nele-passou por ao menos uma ou duas transições de fase. E talvez possa passar por mais uma.
A história cósmica começa no Big Bang, que marca o início do tempo. Logo após o "bang", o espaço começou a crescer feito um balão, e a matéria nele se resfriou.
Voltando à cozinha, vemos que a expansão do Universo funciona como uma geladeira, fazendo a temperatura baixar. Será que a matéria cósmica também pode passar por uma transição de fase?
Sabemos que sim. Logo no início, a temperatura era tal que as partículas não tinham massa. A única que tinha era o Higgs, mas ele não interagia com as outras partículas.
Quando a temperatura foi baixando, o Higgs passou a interagir com as partículas com maior intensidade, dando-lhes massa. Esse processo é uma transição de fase que ocorreu quando o Cosmo tinha um trilionésimo de segundo.
Em julho do ano passado, cientistas do laboratório europeu de partículas Cern (onde estarei durante toda a semana -podem esperar algo para domingo que vem) descobriram uma partícula com toda a cara do Higgs. Ainda não temos certeza se é o mesmo Higgs que dá massa para todo mundo, mas tudo indica que sim. O problema é a massa dele, que é entre 124 e 126 vezes maior do que a do próton.
Dependendo da massa do Higgs, o Universo pode passar por outra transição de fase, como a água, que pode ir do estado gasoso ao líquido e do líquido ao sólido.
Se isso for verdade, estaríamos na fase líquida e poderíamos cair na fase sólida. Quando muda a fase -por meio do surgimento de bolhas da fase nova na fase antiga-, muda toda a física e não sobra ninguém para contar essa história. Seria o fim do Universo, ao menos como o conhecemos hoje.
Antes de causar pânico total, algumas boas novas. Os cálculos indicando que a massa do Higgs é próxima da que causa a instabilidade baseiam-se na suposição de que nenhuma nova física (outras partículas ou forças) aparece até as energias vigentes perto do Big Bang. Possível, mas pouco provável. Também dependem de valores muito precisos das massas de certas partículas, que ainda contêm erros. Os mesmos cálculos indicam que o tempo para que o Universo mude para a nova fase é de bilhões de anos.
Resumindo, a possibilidade de transição existe, mas nada é conclusivo e, se ocorrer, deve demorar.
Na semana que vem, falarei com os físicos responsáveis pelo cálculo para ver se têm algo novo. Talvez eu mesmo adicione algo à conta, quem sabe ajudando a salvar o Universo.
Tudo dentro da normalidade - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 24/02
Futuros bafômetros detectarão o uso de maconha e de cocaína. Mais adiante, tabaco, a essa altura já proibido. E, finalmente, ninguém poderá cheirar rapé, ingerir ansiolíticos, beber chás estimulantes ou calmantes e assim por diante
O comecinho de tarde anunciava mais calor, no famoso boteco leblonino Tio Sam. Ainda mais agora que uma porta do meio, dessas corrediças de ferro, quebrou e resolveu ficar permanentemente fechada, bloqueando a ventilação. Segundo a opinião geral, a situação deverá perdurar mais alguns meses, enquanto Chico, o filosófico português da Beira Alta que é dono do estabelecimento, resolve se vai consertá-la. Chico pauta sua conduta pelo que chama de Filosofia da Normalidade, segundo a qual ele é normal e tudo o que é diferente dele não é normal. Ele não me falou, mas tenho certeza de que está ponderando sobre se é normal querer a reabertura da porta. Além disso, os calorentos contam com os ventiladores da casa, embora se avolumem as queixas de que a aragem deles esquenta o chope nos copos.
— São uns anormais — rebate Chico. — Onde já se viu vento esquentar alguma coisa? O normal é o vento esfriar. O senhor já viu alguém soprar na xícara para esquentar o café? Se fosse assim, eu comprava um fole e economizava gás de cozinha. Mas minha cozinha, infelizmente, é normal.
E dessa forma, porta do meio fechada e ventiladores em ação, se iniciou o que prometia ser uma tarde modorrenta e vagarosa, posta em marcha aos poucos por uma discussão sobre o verdadeiro início do ano. Chegou-se à conclusão de que é necessário rever a antiga ideia de que o ano brasileiro só começa depois do carnaval. A convicção mais moderna é a que situa esse começo pouco depois da Semana Santa. Tanto assim, arguiram os defensores desta tese, que nada de fato está acontecendo depois deste último carnaval, nem parece que vai acontecer. E a única atividade intensa e séria em que a nacionalidade se envolve é o planejamento do feriadão da Semana Santa e a redação de um e-mail padrão, deixando tudo para depois dele.
— Os senhores mesmos me dão razão — disse Chico. — É isso mesmo. Só mando consertar essa porta depois da Semana Santa. Eu não tinha atinado direito, mas é o normal.
O ambiente se ressentia claramente da ausência do comandante Borges, que a essa altura já teria feito alguma denúncia inflamada, mas se animou um pouco diante da lembrança do feriadão. Com essa história de lei seca, manda a prudência antecipar as dificuldades. Geralmente um rapaz afável e sorridente, Dick Primavera, assim alcunhado por capitanear uma empresa de ar-condicionado que garante clima ameno a seus fregueses, levantou a voz para exprimir vibrante indignação. Esses caras em Brasília, ou onde lá seja que eles se escondem, fazem as coisas e não imaginam as consequências, quem quiser que se vire, depois que eles aprontam as besteiras deles.
— Não estou querendo me referir nem ao vinho do padre nem ao do rabino — disse ele. — Já estou até esperando o porta-voz de uma agência do governo aí dizer que, nesse caso, eles que tomem suco de uva, que é a mesma coisa e tem a vantagem de não conter álcool.
Nada de padre ou rabino, que podem apelar para seus pistolões lá em cima, mas o cidadão comum, que muito mal conta com um santo assoberbado por trabalho até o pescoço, entre novenas, despachos e todo tipo de prece e promessa. Imagine-se o jovem ali mesmo do Leblon, que se engraçasse com uma moça de Niterói. Como é que ele iria de lá para cá, sem beber nem um chopinho no sábado à noite? Amor impossível, tragédia de cinema mesmo, porque o namoro não ia suportar uma convivência completamente abstêmia, nem o bolso do cara ia aguentar pagar uma corrida de táxi interurbana toda hora. Quer dizer, discriminação, segregacionismo.
Observou-se que já anunciaram que os futuros bafômetros detectarão o uso de maconha e de cocaína, sem dúvida um grande progresso. Mais adiante, a lei dará um passo à frente e fará detectar também o consumo de tabaco, a essa altura já proibido, a não ser dentro de câmaras individuais com filtros exaustores. Outras substâncias execráveis serão acrescentadas à lista e, finalmente, ninguém poderá tomar controladores do apetite, cheirar rapé, ingerir ansiolíticos, chupar bombons contendo aditivos ou corantes suspeitos, beber chás estimulantes ou calmantes e assim por diante. Claro que vai continuar a ser possível encher a cara, pegar o carro, matar quatro e aleijar onze, pagar fiança, responder em liberdade e ser condenado a seis anos em regime semiaberto, com soltura em dois anos, ou não ser nunca condenado a nada. E beber antes de atropelar é essencial, porque, se o atropelador estiver bêbedo, o homicídio é culposo, dá ainda menos dor de cabeça.
Daí a mais algum tempo, a tarde, já embalada, se completou. Apeando de sua bicicleta elétrica de última geração, o comandante Borges adentrou o recinto. Pena que não tivesse estado presente na hora, para dar sua contribuição ao debate sobre atropeladores, embora se saiba que provavelmente opinasse pela pena de morte para todos os implicados. O comandante tem ideias muito enfáticas e é a favor de tolerância zero para qualquer coisa.
— Vocês estão festejando? — disse ele, antes mesmo de sentar-se. — É o fim da miséria que vocês estão festejando? A miséria acabou! Vamos acrescentar um real à renda de todos os pobres e aí eles mudam de categoria estatística. Quer dizer, o sujeito continua passando fome e bebendo lama, lá no Nordeste, mas aí vai lá o funcionário e mostra a ele a estatística: “Olhe aqui, você não é mais miserável, deu no jornal.” Vocês sabem de que é que este país precisa? É de forca! Forca! Não é nem fuzilamento, é forca neles!
— Isso não é normal — disse Chico. — O normal é forca em nós. É melhor o senhor parar de dizer estas coisas, porque eles podem gostar da ideia.
Futuros bafômetros detectarão o uso de maconha e de cocaína. Mais adiante, tabaco, a essa altura já proibido. E, finalmente, ninguém poderá cheirar rapé, ingerir ansiolíticos, beber chás estimulantes ou calmantes e assim por diante
O comecinho de tarde anunciava mais calor, no famoso boteco leblonino Tio Sam. Ainda mais agora que uma porta do meio, dessas corrediças de ferro, quebrou e resolveu ficar permanentemente fechada, bloqueando a ventilação. Segundo a opinião geral, a situação deverá perdurar mais alguns meses, enquanto Chico, o filosófico português da Beira Alta que é dono do estabelecimento, resolve se vai consertá-la. Chico pauta sua conduta pelo que chama de Filosofia da Normalidade, segundo a qual ele é normal e tudo o que é diferente dele não é normal. Ele não me falou, mas tenho certeza de que está ponderando sobre se é normal querer a reabertura da porta. Além disso, os calorentos contam com os ventiladores da casa, embora se avolumem as queixas de que a aragem deles esquenta o chope nos copos.
— São uns anormais — rebate Chico. — Onde já se viu vento esquentar alguma coisa? O normal é o vento esfriar. O senhor já viu alguém soprar na xícara para esquentar o café? Se fosse assim, eu comprava um fole e economizava gás de cozinha. Mas minha cozinha, infelizmente, é normal.
E dessa forma, porta do meio fechada e ventiladores em ação, se iniciou o que prometia ser uma tarde modorrenta e vagarosa, posta em marcha aos poucos por uma discussão sobre o verdadeiro início do ano. Chegou-se à conclusão de que é necessário rever a antiga ideia de que o ano brasileiro só começa depois do carnaval. A convicção mais moderna é a que situa esse começo pouco depois da Semana Santa. Tanto assim, arguiram os defensores desta tese, que nada de fato está acontecendo depois deste último carnaval, nem parece que vai acontecer. E a única atividade intensa e séria em que a nacionalidade se envolve é o planejamento do feriadão da Semana Santa e a redação de um e-mail padrão, deixando tudo para depois dele.
— Os senhores mesmos me dão razão — disse Chico. — É isso mesmo. Só mando consertar essa porta depois da Semana Santa. Eu não tinha atinado direito, mas é o normal.
O ambiente se ressentia claramente da ausência do comandante Borges, que a essa altura já teria feito alguma denúncia inflamada, mas se animou um pouco diante da lembrança do feriadão. Com essa história de lei seca, manda a prudência antecipar as dificuldades. Geralmente um rapaz afável e sorridente, Dick Primavera, assim alcunhado por capitanear uma empresa de ar-condicionado que garante clima ameno a seus fregueses, levantou a voz para exprimir vibrante indignação. Esses caras em Brasília, ou onde lá seja que eles se escondem, fazem as coisas e não imaginam as consequências, quem quiser que se vire, depois que eles aprontam as besteiras deles.
— Não estou querendo me referir nem ao vinho do padre nem ao do rabino — disse ele. — Já estou até esperando o porta-voz de uma agência do governo aí dizer que, nesse caso, eles que tomem suco de uva, que é a mesma coisa e tem a vantagem de não conter álcool.
Nada de padre ou rabino, que podem apelar para seus pistolões lá em cima, mas o cidadão comum, que muito mal conta com um santo assoberbado por trabalho até o pescoço, entre novenas, despachos e todo tipo de prece e promessa. Imagine-se o jovem ali mesmo do Leblon, que se engraçasse com uma moça de Niterói. Como é que ele iria de lá para cá, sem beber nem um chopinho no sábado à noite? Amor impossível, tragédia de cinema mesmo, porque o namoro não ia suportar uma convivência completamente abstêmia, nem o bolso do cara ia aguentar pagar uma corrida de táxi interurbana toda hora. Quer dizer, discriminação, segregacionismo.
Observou-se que já anunciaram que os futuros bafômetros detectarão o uso de maconha e de cocaína, sem dúvida um grande progresso. Mais adiante, a lei dará um passo à frente e fará detectar também o consumo de tabaco, a essa altura já proibido, a não ser dentro de câmaras individuais com filtros exaustores. Outras substâncias execráveis serão acrescentadas à lista e, finalmente, ninguém poderá tomar controladores do apetite, cheirar rapé, ingerir ansiolíticos, chupar bombons contendo aditivos ou corantes suspeitos, beber chás estimulantes ou calmantes e assim por diante. Claro que vai continuar a ser possível encher a cara, pegar o carro, matar quatro e aleijar onze, pagar fiança, responder em liberdade e ser condenado a seis anos em regime semiaberto, com soltura em dois anos, ou não ser nunca condenado a nada. E beber antes de atropelar é essencial, porque, se o atropelador estiver bêbedo, o homicídio é culposo, dá ainda menos dor de cabeça.
Daí a mais algum tempo, a tarde, já embalada, se completou. Apeando de sua bicicleta elétrica de última geração, o comandante Borges adentrou o recinto. Pena que não tivesse estado presente na hora, para dar sua contribuição ao debate sobre atropeladores, embora se saiba que provavelmente opinasse pela pena de morte para todos os implicados. O comandante tem ideias muito enfáticas e é a favor de tolerância zero para qualquer coisa.
— Vocês estão festejando? — disse ele, antes mesmo de sentar-se. — É o fim da miséria que vocês estão festejando? A miséria acabou! Vamos acrescentar um real à renda de todos os pobres e aí eles mudam de categoria estatística. Quer dizer, o sujeito continua passando fome e bebendo lama, lá no Nordeste, mas aí vai lá o funcionário e mostra a ele a estatística: “Olhe aqui, você não é mais miserável, deu no jornal.” Vocês sabem de que é que este país precisa? É de forca! Forca! Não é nem fuzilamento, é forca neles!
— Isso não é normal — disse Chico. — O normal é forca em nós. É melhor o senhor parar de dizer estas coisas, porque eles podem gostar da ideia.
Quarteto - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
O ESTADÃO - 24/02
Senhoras e senhores, obrigado. Antes de mais nada, quero pedir desculpas pelo atraso. Tivemos um pequeno problema nos bastidores, um desentendimento, e o resultado é o que veem aqui no palco, um quarteto de cordas reduzido a dois. Nosso violoncelista não concordou com a mudança do programa de hoje, parte do meu projeto de popularização da música de câmara, com a substituição do quarteto número 8 em si menor, Opus 59 de Beethoven, por um arranjo para cordas de Ai, se Eu te Pego, e se recusou a entrar no palco.
O mesmo aconteceu com nosso segundo violino, que também não concordou com a mudança e está neste momento a caminho de um hospital. Respeito democraticamente o direito de todos de discordarem de mim, apesar de ser o líder do grupo, mas não admito que insultem a minha mãe. No fundo, o que se discute é a adaptação da música erudita aos tempos modernos, já que o público para os clássicos tem diminuído assustadoramente e é preciso reagir.
Os acontecimentos desta noite são apenas o, digamos assim, ápice – a erupção do furúnculo, se me permitem uma imagem nojenta – de uma situação que se prolonga desde que eu expus ao grupo meu plano para a renovação do nosso repertório e das nossas apresentações.
Já tinha havido resistência à minha ideia de entrarmos os quatro no palco de bicicleta, com máscaras de macacos. Ninguém se manifestou então, mas sei que houve descontentamento e que começou uma campanha para me desmoralizar, inclusive me chamando de louco pelas costas. Houve até o acidente do violoncelo que caiu na minha cabeça, que o violoncelista jurou ter sido mesmo um acidente, o que não explica o fato de ele estar segurando seu instrumento como um tacape.
Também foi mal recebido meu convite para a Ivete Sangalo dar uma canja conosco, tocando o instrumento que quisesse no quarteto número 14 em sol maior de Mozart, desde que mostrasse as pernas. Mas não tínhamos tido um motim até esta noite. De certa forma, foi bom que isso acontecesse. Pelo menos, as coisas agora estão às claras, as posições estão definidas e estamos livres de mesquinharias como a de espalharem o boato de que eu toco com playback enquanto os outros três tocam ao vivo, e de minha suposta opção sexual pelo bestialismo, com preferência por galinhas.
Também acabam as frases desaforadas e as ameaças escritas nas minhas partituras. Quero agradecer de público o nosso violista – palmas para ele, por favor – que permaneceu fiel e está aqui no palco comigo. Sua lealdade se deve ao seu bom caráter e ao fato de que, com a ausência dos outros, a renda do concerto desta noite será dividida por dois e não por quatro, como acontece normalmente, e ele estar comprando uma lavadora.
Enfim, senhoras e senhores, obrigado pela sua paciência. As outras modificações no programa são menores. O Dvorak será tocado com ritmo de axé e reservamos uma surpresa para o final, quando receberemos no palco Ernani, o cachorro cantor, que se juntará a nós no Vivaldi. E vocês devem ter notado que tanto eu quanto o violista estamos nus, o que acrescenta um toque naturalista à nossa apresentação, em contraste com o costumeiro formalismo dos quartetos de cordas, que ninguém aguenta mais.
Então, vamos lá. Ai, se Eu te Pego.
Senhoras e senhores, obrigado. Antes de mais nada, quero pedir desculpas pelo atraso. Tivemos um pequeno problema nos bastidores, um desentendimento, e o resultado é o que veem aqui no palco, um quarteto de cordas reduzido a dois. Nosso violoncelista não concordou com a mudança do programa de hoje, parte do meu projeto de popularização da música de câmara, com a substituição do quarteto número 8 em si menor, Opus 59 de Beethoven, por um arranjo para cordas de Ai, se Eu te Pego, e se recusou a entrar no palco.
O mesmo aconteceu com nosso segundo violino, que também não concordou com a mudança e está neste momento a caminho de um hospital. Respeito democraticamente o direito de todos de discordarem de mim, apesar de ser o líder do grupo, mas não admito que insultem a minha mãe. No fundo, o que se discute é a adaptação da música erudita aos tempos modernos, já que o público para os clássicos tem diminuído assustadoramente e é preciso reagir.
Os acontecimentos desta noite são apenas o, digamos assim, ápice – a erupção do furúnculo, se me permitem uma imagem nojenta – de uma situação que se prolonga desde que eu expus ao grupo meu plano para a renovação do nosso repertório e das nossas apresentações.
Já tinha havido resistência à minha ideia de entrarmos os quatro no palco de bicicleta, com máscaras de macacos. Ninguém se manifestou então, mas sei que houve descontentamento e que começou uma campanha para me desmoralizar, inclusive me chamando de louco pelas costas. Houve até o acidente do violoncelo que caiu na minha cabeça, que o violoncelista jurou ter sido mesmo um acidente, o que não explica o fato de ele estar segurando seu instrumento como um tacape.
Também foi mal recebido meu convite para a Ivete Sangalo dar uma canja conosco, tocando o instrumento que quisesse no quarteto número 14 em sol maior de Mozart, desde que mostrasse as pernas. Mas não tínhamos tido um motim até esta noite. De certa forma, foi bom que isso acontecesse. Pelo menos, as coisas agora estão às claras, as posições estão definidas e estamos livres de mesquinharias como a de espalharem o boato de que eu toco com playback enquanto os outros três tocam ao vivo, e de minha suposta opção sexual pelo bestialismo, com preferência por galinhas.
Também acabam as frases desaforadas e as ameaças escritas nas minhas partituras. Quero agradecer de público o nosso violista – palmas para ele, por favor – que permaneceu fiel e está aqui no palco comigo. Sua lealdade se deve ao seu bom caráter e ao fato de que, com a ausência dos outros, a renda do concerto desta noite será dividida por dois e não por quatro, como acontece normalmente, e ele estar comprando uma lavadora.
Enfim, senhoras e senhores, obrigado pela sua paciência. As outras modificações no programa são menores. O Dvorak será tocado com ritmo de axé e reservamos uma surpresa para o final, quando receberemos no palco Ernani, o cachorro cantor, que se juntará a nós no Vivaldi. E vocês devem ter notado que tanto eu quanto o violista estamos nus, o que acrescenta um toque naturalista à nossa apresentação, em contraste com o costumeiro formalismo dos quartetos de cordas, que ninguém aguenta mais.
Então, vamos lá. Ai, se Eu te Pego.
METEORO DA PAIXÃO - AGAMENON
O GLOBO - 24/02
E quem chegou feito um asteróide provocando um enorme estrondo por onde passou foi a blogueira cubana Raoni Sanchéz que finalmente conseguiu sair da Olhota de Fidel onde vivia entalada sem qualquer liberdade de ir e vir. Acostumada a viver no maior miserê em Cuba, Jacomi Sanchéz quando chegou aqui entrou em contato com as maravilhas das civilização ocidental: o bidê, o celular pré –pago, o Big Mac e o funk carioca. Perguntada se estava interessada em conhecer o Congresso, a rumbeira cubana disse que sim, mas que antes preferia conhecer o Porcão.
Para que a pobre boqueteira, quer dizer, blogueira não sentisse falta da repressão que sofre cotidianamente em seu país, o embaixador de Cuba contratou um bando de militantes para ficar insultando, puxando o cabelo e enchendo o saco da dissidente. Esses manifestantes da base comprada do governo só paravam de encher o saco de Yaoni Sanchéz na hora do almoço quando recebiam uma quentinha com o prato típico de Cuba: o prato vazio.
Mesmo importunada, a bagaceira cubana mostrou simpatia e civilidade quando deu uma banana para os manifestantes de carteirinha. Imediatamente os vândalos interromperam o protesto para disputar à tapa quem ia ter o privilégio de comer a avantajada fruta de duplo sentido. Sem os manifestantes PenTelhos na sua cola, a blogueira cubense resolveu cair de boca no capitalismo neoliberal brasileiro. Totalmente classe C e D, a birosqueira cubana abriu um crediário nas Casa Bahia, foi assistir um show do Naldo, nadou no Piscinão do Ramos e deu uma entrevista no Esquenta da Regina Casé.
FIGURAÇA DA SEMANA
O ex- atual presidente Luísque Inácio, o Lula, lançou esta semana a candidatura à residência da República de Dilda Roussef da Silva, a Nula. A candidata fez um discurso prometendo mundos e fundos. Fundos públicos, é claro. Dilma disse que vai acabar com a miséria começando pelo pessoal do PT que recebe o Bolso Famiglia, um programa de inserção de dinheiro no bolso de quem for da Famiglia. Para que o maior número de companheiros pudesse comparecer, a festa de lançamento foi realizada no Presídio do Tatuapé e contou com vários comparsas dos partidos da base apenada, inclusive o PCC. Diante do lançamento precoce de Dilma Roskoff à residência da República, os tucanos, aves dóceis e ruins de briga, finalmente decidiram reagir e abrir o bico. Em discurso no Senado, o deputado Aético Neves, o Beocinho, mostrou a nova cara da oposição: a sua, totalmente botocada e repuxada. Quando viram o novo visual plastificado do senador maneiro, quer dizer, mineiro, alguns senadores mais distraídos acharam que quem estava discursando era a Martha Suplicy. O quem ninguém desconfiava é que o herdeiro de Tancredo também estava lançando a sua própria candidatura e até já escolheu um vice que é a sua cara: a genial sambista Elza Soares.
***
Acompanhei a blogueira cubana Yaoni Sanchéz em sua visita ao Brasil. A internauta dissidente só não quis ir à praia. É que quando cubano vê o mar, não agüenta, se joga e sai nadando pra Miami.
***
Agamenon Mendes Pedreira, assim como a Dilma, quer acabar com miséria que recebe todo fim do mês de O Globo.
E quem chegou feito um asteróide provocando um enorme estrondo por onde passou foi a blogueira cubana Raoni Sanchéz que finalmente conseguiu sair da Olhota de Fidel onde vivia entalada sem qualquer liberdade de ir e vir. Acostumada a viver no maior miserê em Cuba, Jacomi Sanchéz quando chegou aqui entrou em contato com as maravilhas das civilização ocidental: o bidê, o celular pré –pago, o Big Mac e o funk carioca. Perguntada se estava interessada em conhecer o Congresso, a rumbeira cubana disse que sim, mas que antes preferia conhecer o Porcão.
Para que a pobre boqueteira, quer dizer, blogueira não sentisse falta da repressão que sofre cotidianamente em seu país, o embaixador de Cuba contratou um bando de militantes para ficar insultando, puxando o cabelo e enchendo o saco da dissidente. Esses manifestantes da base comprada do governo só paravam de encher o saco de Yaoni Sanchéz na hora do almoço quando recebiam uma quentinha com o prato típico de Cuba: o prato vazio.
Mesmo importunada, a bagaceira cubana mostrou simpatia e civilidade quando deu uma banana para os manifestantes de carteirinha. Imediatamente os vândalos interromperam o protesto para disputar à tapa quem ia ter o privilégio de comer a avantajada fruta de duplo sentido. Sem os manifestantes PenTelhos na sua cola, a blogueira cubense resolveu cair de boca no capitalismo neoliberal brasileiro. Totalmente classe C e D, a birosqueira cubana abriu um crediário nas Casa Bahia, foi assistir um show do Naldo, nadou no Piscinão do Ramos e deu uma entrevista no Esquenta da Regina Casé.
FIGURAÇA DA SEMANA
O ex- atual presidente Luísque Inácio, o Lula, lançou esta semana a candidatura à residência da República de Dilda Roussef da Silva, a Nula. A candidata fez um discurso prometendo mundos e fundos. Fundos públicos, é claro. Dilma disse que vai acabar com a miséria começando pelo pessoal do PT que recebe o Bolso Famiglia, um programa de inserção de dinheiro no bolso de quem for da Famiglia. Para que o maior número de companheiros pudesse comparecer, a festa de lançamento foi realizada no Presídio do Tatuapé e contou com vários comparsas dos partidos da base apenada, inclusive o PCC. Diante do lançamento precoce de Dilma Roskoff à residência da República, os tucanos, aves dóceis e ruins de briga, finalmente decidiram reagir e abrir o bico. Em discurso no Senado, o deputado Aético Neves, o Beocinho, mostrou a nova cara da oposição: a sua, totalmente botocada e repuxada. Quando viram o novo visual plastificado do senador maneiro, quer dizer, mineiro, alguns senadores mais distraídos acharam que quem estava discursando era a Martha Suplicy. O quem ninguém desconfiava é que o herdeiro de Tancredo também estava lançando a sua própria candidatura e até já escolheu um vice que é a sua cara: a genial sambista Elza Soares.
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Acompanhei a blogueira cubana Yaoni Sanchéz em sua visita ao Brasil. A internauta dissidente só não quis ir à praia. É que quando cubano vê o mar, não agüenta, se joga e sai nadando pra Miami.
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Agamenon Mendes Pedreira, assim como a Dilma, quer acabar com miséria que recebe todo fim do mês de O Globo.
Ueba! Oscar de melhor pipoca! - JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 24/02
O site Kibeloco mostrou "As Aventuras de Pi" versão Itaquera: um mano numa canoa com um vira-lata
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje é dia de dormir em pé! Dia do Oscar! Merece um Oscar quem tiver saco pra assistir o Oscar até o fim! Melhor atriz, às duas da manhã. Sendo que às duas da manhã qualquer mulher é uma grande atriz! Rarará! E os filmes?
E aqueles montes de discursos de "obrigados"? É sempre assim: gritam "the winner is", aí a vencedora dá um grito, põe a mão na cara, beija a colega ao lado, sobe e diz "Não tenho palavras". Aí fala umas 800 mil palavras. O Oscar devia ser entregue no drive thru do McDonalds. O cara pegava a estatueta, jogava ketchup e ia pra casa.
E a estatueta do Oscar é gay: dourada, marombada, depilada e com a espada na mão! E os filmes? Por mim, "Django Livre" levaria todas as estatuetas. "Lincoln", o mais chato! E o Lincoln era mensaleiro. É verdade! Quem assistiu ao filme viu que rolou um mensalão bravo. O Zé Dirceu vai entregar a estatueta!
E o site Kibeloco mostrou " As Aventuras de Pi" versão Itaquera: um mano numa canoa com um vira-lata. Rarará! E todo ano, eu falo, insisto e repito: tinha que ter Oscar pra melhor pipoca. Geralmente a pipoca é melhor que o filme!
E outra categoria: Oscar pra DVD pirata. Os mais criativos. Um Oscar de melhor DVD pirata praquela banca da 25 de Março: "Temos Shrek Dubrado". "Galfield" e "Idúlos". Vende muito mais. Pirata tem visão comercial! Rarará! E o Renan tá sendo INDICIADO ao Oscar! Oscar de melhor animação: Chávez em "Um Morto Muito Louco". Melhor INTERTREPAÇÃO: todos da Globo. Rarará!
Melhores efeitos especiais: o cabeleireiro do Neymar! Melhores defeitos especiais: Record na Olimpíada! Melhor figurino: Papa Bento 16! Ou então a gente dá o melhor figurino pra blogueira cubana. Com aquela saia maria mijona! Rarará! É mole? É mole, mas sobe!
E a piada pronta da semana: "Harrison Ford se perde numa trilha na Floresta da Tijuca". Chama o MacGyver! Indiana Jones na Trilha Perdida. Acho que atualmente o Harrison Ford tá se perdendo até no Parque da Mônica!
E esta: "Cientistas afirmam que soltar gases em viagem de avião faz bem". Faz bem só pra pessoa! Então não é turbulência, é flatulência!
Já imaginou a comissária: "Apertem os narizes que estamos atravessando uma zona de flatulência". '"m caso de flatulência, máscaras cairão automaticamente." Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
O site Kibeloco mostrou "As Aventuras de Pi" versão Itaquera: um mano numa canoa com um vira-lata
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje é dia de dormir em pé! Dia do Oscar! Merece um Oscar quem tiver saco pra assistir o Oscar até o fim! Melhor atriz, às duas da manhã. Sendo que às duas da manhã qualquer mulher é uma grande atriz! Rarará! E os filmes?
E aqueles montes de discursos de "obrigados"? É sempre assim: gritam "the winner is", aí a vencedora dá um grito, põe a mão na cara, beija a colega ao lado, sobe e diz "Não tenho palavras". Aí fala umas 800 mil palavras. O Oscar devia ser entregue no drive thru do McDonalds. O cara pegava a estatueta, jogava ketchup e ia pra casa.
E a estatueta do Oscar é gay: dourada, marombada, depilada e com a espada na mão! E os filmes? Por mim, "Django Livre" levaria todas as estatuetas. "Lincoln", o mais chato! E o Lincoln era mensaleiro. É verdade! Quem assistiu ao filme viu que rolou um mensalão bravo. O Zé Dirceu vai entregar a estatueta!
E o site Kibeloco mostrou " As Aventuras de Pi" versão Itaquera: um mano numa canoa com um vira-lata. Rarará! E todo ano, eu falo, insisto e repito: tinha que ter Oscar pra melhor pipoca. Geralmente a pipoca é melhor que o filme!
E outra categoria: Oscar pra DVD pirata. Os mais criativos. Um Oscar de melhor DVD pirata praquela banca da 25 de Março: "Temos Shrek Dubrado". "Galfield" e "Idúlos". Vende muito mais. Pirata tem visão comercial! Rarará! E o Renan tá sendo INDICIADO ao Oscar! Oscar de melhor animação: Chávez em "Um Morto Muito Louco". Melhor INTERTREPAÇÃO: todos da Globo. Rarará!
Melhores efeitos especiais: o cabeleireiro do Neymar! Melhores defeitos especiais: Record na Olimpíada! Melhor figurino: Papa Bento 16! Ou então a gente dá o melhor figurino pra blogueira cubana. Com aquela saia maria mijona! Rarará! É mole? É mole, mas sobe!
E a piada pronta da semana: "Harrison Ford se perde numa trilha na Floresta da Tijuca". Chama o MacGyver! Indiana Jones na Trilha Perdida. Acho que atualmente o Harrison Ford tá se perdendo até no Parque da Mônica!
E esta: "Cientistas afirmam que soltar gases em viagem de avião faz bem". Faz bem só pra pessoa! Então não é turbulência, é flatulência!
Já imaginou a comissária: "Apertem os narizes que estamos atravessando uma zona de flatulência". '"m caso de flatulência, máscaras cairão automaticamente." Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
De dramas e personagens - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
O Estado de S.Paulo - 24/02
Num tempo de autoproclamado neodesenvolvimentismo, apesar da modéstia das taxas de crescimento, pode-se prever que viveremos não 50 anos em 5, como na situação original, mas pelo menos 2 anos em 1 só, com a superposição de 2013 e 2014 num período mais ou menos contínuo de diferenciação de candidaturas, apresentação de programas divergentes e, por fim, eleições presidenciais propriamente ditas.
Sendo a política, na concepção de falecido político mineiro, sagaz e conservador, uma atividade que guarda relação com o fugaz desenho das nuvens, adivinhar o que nos reserva esse tempo compacto de dois anos é tarefa que assustaria até um autor acostumado a dramatizar ambições, imaginar golpes da fortuna, coreografar danças e contradanças na alma de personagens que não são nunca autores isolados de si próprios. Afinal, como lembrava Ulysses, o patrono da moderna democracia brasileira, as circunstâncias desempenham sempre função crucial, delimitando, corrigindo, ampliando ou mesmo anulando o papel que cada personagem se atribui no correr do drama.
Houve época em que a primeira encarnação da social-democracia brasileira, chegada ao poder em 1995 na esteira de bem-sucedido plano de estabilização, requeria para si um poder que durasse 20 anos. Vinte anos, diziam, é o tempo que seria necessário para a reforma integral do capitalismo brasileiro num sentido que diminuísse drasticamente o poder do Estado - simbolicamente sintetizado na era Vargas, a qual se projetava, com a roupagem do autoritarismo militar, para o "Estado Novo da UDN" - e libertasse a sociedade capitalista de uma tutela tornada anacrônica. Prolongar a tutela seria tolher as energias e deformar a nova sociedade já plenamente burguesa, assim como antes sucedia ao corpo das crianças por causa do imemorial costume de enfaixá-las a pretexto de lhes garantir crescimento saudável.
A segunda encarnação da social-democracia, no poder há dez anos, não ambicionou nem ambiciona menos. Para realizar seu programa, nunca, jamais tentado na História do Brasil, de desenvolvimento e inclusão social acelerada, especialmente por meio do consumo popular, os mesmos 20 anos ou mais de poder continuado seriam o mínimo requerido. Até nisso esses irmãos siameses desavindos ferozmente, como não raro acontece nos enredos bombásticos, se parecem. Fratelli, coltelli - dizem expressivamente os italianos.
Um dos mais argutos observadores da vida brasileira (cf. Luiz Werneck Vianna, A Modernização sem o Moderno - Análises de Conjuntura na Era Lula, Editora Contraponto & Fundação Astrojildo Pereira, 2011) entendeu aquela ambição dos novos donos do poder como um "Estado Novo do PT", entidade omnívora capitaneada por um partido de esquerda que, uma vez assentado na Presidência da República, pretendeu assimilar tudo e o contrário de tudo, renunciando, no mesmo movimento, a ser fator de ativação da vida cívica e do "progresso intelectual de massas". Nada mais distante, por sinal, da elaboração refinada e complexa de uma nova hegemonia e de um equilíbrio social e econômico mais avançado, que exigem, acima de tudo, escrupuloso respeito às normas do Estado Democrático de Direito, o que exclui o "subversivismo elementar" evidenciado, por exemplo, não só na operação dos fatos rotulados como "mensalão", como na reação juvenil e intempestiva às decisões da Suprema Corte, pedra fundamental na defesa dos princípios da Carta de 1988.
Vitórias eleitorais sucessivas podem ser alicerçadas menos numa estratégia hegemônica de longo fôlego do que na criação de mitos extemporâneos - afinal, todo Estado Novo, seja da UDN, seja do PT, demanda alguma forma de DIP e o devido aparelho intelectual. A coalizão de poder produzida por tais vitórias, no entanto, costuma ter um déficit programático que se acentua dramaticamente em conjunturas críticas. Ainda em 2010, a dissidência aberta por Marina Silva sinalizava que a este neodesenvolvimentismo de perfil baixo falta, e talvez de modo insanável, a perspectiva da requalificação ambiental. E num contexto em que a palavra de ordem é "destravar" investimentos, o horizonte pode se restringir ainda mais, a ponto de o meio ambiente, definitivamente, passar a ser muito mais obstáculo a ser cancelado do que recurso para a renovação da economia e reformulação do modo de viver.
A dissidência de Pernambuco, ainda por ser medida e pesada, introduz um personagem saído do coração da mudança eleitoral induzida pelo petismo e seu sistema de bolsas. Pode-se argumentar que pouco se sabe deste PSB dos nossos dias, cuja relação com o venerável partido de Hermes Lima e João Mangabeira é, na prática, inexistente. Argumento forte, a exigir respostas sólidas dos seus líderes, assim como de Marina Silva se espera uma articulação partidária de tipo "orgânico", para que a ação política se descole da área ambiental em sentido estrito e se dirija, apropriadamente, ao conjunto da sociedade.
A aceleração de tempos que marca o final das tramas é sempre a ocasião propícia em que truques se esgotam, máscaras caem e destinos se redefinem. Daqui por diante, as duas social-democracias, com as unilateralidades que protagonizaram nos respectivos ciclos de poder, podem não estar mais sós no palco e, por conseguinte, se ver impedidas de reencenar o surrado duelo de privatistas e estatistas, usado de modo meramente instrumental por falta de discurso menos maniqueu.
Novos atores, no ponto de partida destes dois anos cruciais, ensaiam atropeladamente as suas falas, e o fato de ainda parecerem em busca de uma peça ou de um autor, dadas as circunstâncias, não é necessariamente mau sinal. Por ora, muito pelo contrário, são eles que afastam o pesadelo de um monólogo interminável a governar a nossa vida.
Num tempo de autoproclamado neodesenvolvimentismo, apesar da modéstia das taxas de crescimento, pode-se prever que viveremos não 50 anos em 5, como na situação original, mas pelo menos 2 anos em 1 só, com a superposição de 2013 e 2014 num período mais ou menos contínuo de diferenciação de candidaturas, apresentação de programas divergentes e, por fim, eleições presidenciais propriamente ditas.
Sendo a política, na concepção de falecido político mineiro, sagaz e conservador, uma atividade que guarda relação com o fugaz desenho das nuvens, adivinhar o que nos reserva esse tempo compacto de dois anos é tarefa que assustaria até um autor acostumado a dramatizar ambições, imaginar golpes da fortuna, coreografar danças e contradanças na alma de personagens que não são nunca autores isolados de si próprios. Afinal, como lembrava Ulysses, o patrono da moderna democracia brasileira, as circunstâncias desempenham sempre função crucial, delimitando, corrigindo, ampliando ou mesmo anulando o papel que cada personagem se atribui no correr do drama.
Houve época em que a primeira encarnação da social-democracia brasileira, chegada ao poder em 1995 na esteira de bem-sucedido plano de estabilização, requeria para si um poder que durasse 20 anos. Vinte anos, diziam, é o tempo que seria necessário para a reforma integral do capitalismo brasileiro num sentido que diminuísse drasticamente o poder do Estado - simbolicamente sintetizado na era Vargas, a qual se projetava, com a roupagem do autoritarismo militar, para o "Estado Novo da UDN" - e libertasse a sociedade capitalista de uma tutela tornada anacrônica. Prolongar a tutela seria tolher as energias e deformar a nova sociedade já plenamente burguesa, assim como antes sucedia ao corpo das crianças por causa do imemorial costume de enfaixá-las a pretexto de lhes garantir crescimento saudável.
A segunda encarnação da social-democracia, no poder há dez anos, não ambicionou nem ambiciona menos. Para realizar seu programa, nunca, jamais tentado na História do Brasil, de desenvolvimento e inclusão social acelerada, especialmente por meio do consumo popular, os mesmos 20 anos ou mais de poder continuado seriam o mínimo requerido. Até nisso esses irmãos siameses desavindos ferozmente, como não raro acontece nos enredos bombásticos, se parecem. Fratelli, coltelli - dizem expressivamente os italianos.
Um dos mais argutos observadores da vida brasileira (cf. Luiz Werneck Vianna, A Modernização sem o Moderno - Análises de Conjuntura na Era Lula, Editora Contraponto & Fundação Astrojildo Pereira, 2011) entendeu aquela ambição dos novos donos do poder como um "Estado Novo do PT", entidade omnívora capitaneada por um partido de esquerda que, uma vez assentado na Presidência da República, pretendeu assimilar tudo e o contrário de tudo, renunciando, no mesmo movimento, a ser fator de ativação da vida cívica e do "progresso intelectual de massas". Nada mais distante, por sinal, da elaboração refinada e complexa de uma nova hegemonia e de um equilíbrio social e econômico mais avançado, que exigem, acima de tudo, escrupuloso respeito às normas do Estado Democrático de Direito, o que exclui o "subversivismo elementar" evidenciado, por exemplo, não só na operação dos fatos rotulados como "mensalão", como na reação juvenil e intempestiva às decisões da Suprema Corte, pedra fundamental na defesa dos princípios da Carta de 1988.
Vitórias eleitorais sucessivas podem ser alicerçadas menos numa estratégia hegemônica de longo fôlego do que na criação de mitos extemporâneos - afinal, todo Estado Novo, seja da UDN, seja do PT, demanda alguma forma de DIP e o devido aparelho intelectual. A coalizão de poder produzida por tais vitórias, no entanto, costuma ter um déficit programático que se acentua dramaticamente em conjunturas críticas. Ainda em 2010, a dissidência aberta por Marina Silva sinalizava que a este neodesenvolvimentismo de perfil baixo falta, e talvez de modo insanável, a perspectiva da requalificação ambiental. E num contexto em que a palavra de ordem é "destravar" investimentos, o horizonte pode se restringir ainda mais, a ponto de o meio ambiente, definitivamente, passar a ser muito mais obstáculo a ser cancelado do que recurso para a renovação da economia e reformulação do modo de viver.
A dissidência de Pernambuco, ainda por ser medida e pesada, introduz um personagem saído do coração da mudança eleitoral induzida pelo petismo e seu sistema de bolsas. Pode-se argumentar que pouco se sabe deste PSB dos nossos dias, cuja relação com o venerável partido de Hermes Lima e João Mangabeira é, na prática, inexistente. Argumento forte, a exigir respostas sólidas dos seus líderes, assim como de Marina Silva se espera uma articulação partidária de tipo "orgânico", para que a ação política se descole da área ambiental em sentido estrito e se dirija, apropriadamente, ao conjunto da sociedade.
A aceleração de tempos que marca o final das tramas é sempre a ocasião propícia em que truques se esgotam, máscaras caem e destinos se redefinem. Daqui por diante, as duas social-democracias, com as unilateralidades que protagonizaram nos respectivos ciclos de poder, podem não estar mais sós no palco e, por conseguinte, se ver impedidas de reencenar o surrado duelo de privatistas e estatistas, usado de modo meramente instrumental por falta de discurso menos maniqueu.
Novos atores, no ponto de partida destes dois anos cruciais, ensaiam atropeladamente as suas falas, e o fato de ainda parecerem em busca de uma peça ou de um autor, dadas as circunstâncias, não é necessariamente mau sinal. Por ora, muito pelo contrário, são eles que afastam o pesadelo de um monólogo interminável a governar a nossa vida.
O futuro chegou velho - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 24/02
Início da campanha de 2014 deve impedir a presidente de mexer a sério na política econômica
A ESTA ALTURA do campeonato, parece difícil que Dilma Rousseff vá mudar sua política econômica. A campanha eleitoral começou.
Dilma foi lançada na festa da década petista. O tucano Aécio Neves acordou tarde dos seus sonhos intranquilos batendo no PT. Até Marina Silva ("Rede Sustentabilidade") e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), fizeram pré-temporada e passearam pela rinha eleitoral.
Em menos de ano e meio, estaremos na campanha em fogo alto. No tempo da economia, é uma piscadela. Mesmo as medidas mais corriqueiras e de curto prazo com o fim de colocar a casa em ordem podem derrubar a já medíocre perspectiva de crescimento de uns 3% neste ano. Logo, é improvável que a presidente vá bulir com o assunto.
Dilma, assombrada por dois anos de pibinho, está matando cachorro a grito para não aparecer no tapete vermelho da eleição vestida com um modelito fernandino de crescimento (isto é, o crescimento de pouco mais de 2% nos anos FHC). Parece muito ansiosa, mesmo que o povo ainda pareça bem contente com desemprego baixo, salários maiores e consumo crescente.
Estatista por formação, modas de época juvenil, costume e convicção, a presidente tem porém rasgado parte do seu figurino a fim de ressuscitar o investimento mofino. Privatiza, concede a empresas, relaxa regras de editais e, agora, pretende mesmo emprestar dinheiro a juros subsidiados para bancos privados financiarem as empresas que vão levar os negócios de infraestrutura de transporte.
No entanto, a presidente não parece inclinada a dar um trato mais racional e organizado nos desequilíbrios macroeconômicos que ajudam a atrapalhar o crescimento de curto prazo. Talvez o BC tenha de dar um tapa na pantera, ou no dragão, e elevar os juros, o que o mercado já está "colocando no preço".
A inflação sobe, embora não esteja (ainda) destrambelhada, mas ainda assim o governo gasta mais e põe dinheiro nos bancos estatais. O deficit externo sobe (diferença entre o que exportamos e importamos). Temos obviamente um problema de alta de custos de produção e aumento lerdo da eficiência.
Sim, Dilma reduziu impostos sobre empresas, promete mais reduções neste ano; baixou o custo da energia elétrica. É um refresco. Tais providências, além do mais, devem impedir que a inflação ultrapasse o teto da meta (6,5%).
Mas é evidente que essa mistura esdrúxula de providências é precária e tem algo de enxugamento de gelo (estimular consumo por um lado, tentar controlar preços por outro). Não resolve o nosso problema básico de curto prazo: o consumo (tocado por mais salário, salário mínimo, gasto público) crescer mais rápido que a nossa capacidade de produzir a bom preço.
Providências de curto prazo (administração macroeconômica mais razoável) não virão por causa da eleição; as demais, mesmo que o governo resolvesse tratar do assunto, levam tempo. Ou seja, até 2014, quase tudo como dantes no quartel de abrantes. Algum investimento virá, dadas as privatizações e a melhora relativa e parca da taxa de crescimento. Ainda assim, vamos ficar mais dois anos sem mudanças importantes na economia. O futuro chegou, velho.
Início da campanha de 2014 deve impedir a presidente de mexer a sério na política econômica
A ESTA ALTURA do campeonato, parece difícil que Dilma Rousseff vá mudar sua política econômica. A campanha eleitoral começou.
Dilma foi lançada na festa da década petista. O tucano Aécio Neves acordou tarde dos seus sonhos intranquilos batendo no PT. Até Marina Silva ("Rede Sustentabilidade") e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), fizeram pré-temporada e passearam pela rinha eleitoral.
Em menos de ano e meio, estaremos na campanha em fogo alto. No tempo da economia, é uma piscadela. Mesmo as medidas mais corriqueiras e de curto prazo com o fim de colocar a casa em ordem podem derrubar a já medíocre perspectiva de crescimento de uns 3% neste ano. Logo, é improvável que a presidente vá bulir com o assunto.
Dilma, assombrada por dois anos de pibinho, está matando cachorro a grito para não aparecer no tapete vermelho da eleição vestida com um modelito fernandino de crescimento (isto é, o crescimento de pouco mais de 2% nos anos FHC). Parece muito ansiosa, mesmo que o povo ainda pareça bem contente com desemprego baixo, salários maiores e consumo crescente.
Estatista por formação, modas de época juvenil, costume e convicção, a presidente tem porém rasgado parte do seu figurino a fim de ressuscitar o investimento mofino. Privatiza, concede a empresas, relaxa regras de editais e, agora, pretende mesmo emprestar dinheiro a juros subsidiados para bancos privados financiarem as empresas que vão levar os negócios de infraestrutura de transporte.
No entanto, a presidente não parece inclinada a dar um trato mais racional e organizado nos desequilíbrios macroeconômicos que ajudam a atrapalhar o crescimento de curto prazo. Talvez o BC tenha de dar um tapa na pantera, ou no dragão, e elevar os juros, o que o mercado já está "colocando no preço".
A inflação sobe, embora não esteja (ainda) destrambelhada, mas ainda assim o governo gasta mais e põe dinheiro nos bancos estatais. O deficit externo sobe (diferença entre o que exportamos e importamos). Temos obviamente um problema de alta de custos de produção e aumento lerdo da eficiência.
Sim, Dilma reduziu impostos sobre empresas, promete mais reduções neste ano; baixou o custo da energia elétrica. É um refresco. Tais providências, além do mais, devem impedir que a inflação ultrapasse o teto da meta (6,5%).
Mas é evidente que essa mistura esdrúxula de providências é precária e tem algo de enxugamento de gelo (estimular consumo por um lado, tentar controlar preços por outro). Não resolve o nosso problema básico de curto prazo: o consumo (tocado por mais salário, salário mínimo, gasto público) crescer mais rápido que a nossa capacidade de produzir a bom preço.
Providências de curto prazo (administração macroeconômica mais razoável) não virão por causa da eleição; as demais, mesmo que o governo resolvesse tratar do assunto, levam tempo. Ou seja, até 2014, quase tudo como dantes no quartel de abrantes. Algum investimento virá, dadas as privatizações e a melhora relativa e parca da taxa de crescimento. Ainda assim, vamos ficar mais dois anos sem mudanças importantes na economia. O futuro chegou, velho.
Império da embalagem - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 24/02
SÃO PAULO - Chega a ser exasperante a superficialidade e o primarismo que o discurso político assumiu em décadas recentes. A indigência fica patente na troca de farpas entre situação e oposição registrada na noite de quarta-feira.
Sem um projeto consistente para o futuro, o PT se volta para o passado, pondo-se a criticar de forma até meio patológica um governo que acabou dez anos atrás. Os tucanos não se saem muito melhor. Como não dispõe de um projeto alternativo digno desse nome, o senador Aécio Neves promoveu a numerologia a programa político e foi buscar 13 pontos a criticar na administração petista. Para dar consistência ao chiste, teve de recorrer a questiúnculas e as igualou aos problemas mais graves.
Parte da culpa por essa situação pode ser atribuída aos avanços no campo do marketing político que agora ganha apoio da neurociência. O que o estudo dos caminhos pelos quais os eleitores fazem suas escolhas revelou é que a razão pesa muito pouco. Quase tudo é decidido com base em emoções, que podem ser até certo ponto manipuladas. Muito mais importante do que o conteúdo do discurso é o "framing" (enquadramento), isto é, a embalagem em que vêm as ideias.
A chave para o sucesso eleitoral não está em apresentar propostas boas e realizáveis, mas em associar a imagem do candidato a emoções positivas e a de seu rival a negativas. A versão prevalece sobre o fato.
É claro que os eleitores se comportavam desse modo muito antes de marqueteiros e neurocientistas chegarem a essas conclusões. Mas, como os políticos não sabiam disso e acreditavam que os projetos eram importantes, dedicavam parte de suas energias a elaborá-los tão seriamente quanto possível. O debate ficava mais qualificado. Eventualmente, as propostas eram usadas na administração. Agora que se sabe que os conteúdos não têm tanta importância, vivemos o império da embalagem.
SÃO PAULO - Chega a ser exasperante a superficialidade e o primarismo que o discurso político assumiu em décadas recentes. A indigência fica patente na troca de farpas entre situação e oposição registrada na noite de quarta-feira.
Sem um projeto consistente para o futuro, o PT se volta para o passado, pondo-se a criticar de forma até meio patológica um governo que acabou dez anos atrás. Os tucanos não se saem muito melhor. Como não dispõe de um projeto alternativo digno desse nome, o senador Aécio Neves promoveu a numerologia a programa político e foi buscar 13 pontos a criticar na administração petista. Para dar consistência ao chiste, teve de recorrer a questiúnculas e as igualou aos problemas mais graves.
Parte da culpa por essa situação pode ser atribuída aos avanços no campo do marketing político que agora ganha apoio da neurociência. O que o estudo dos caminhos pelos quais os eleitores fazem suas escolhas revelou é que a razão pesa muito pouco. Quase tudo é decidido com base em emoções, que podem ser até certo ponto manipuladas. Muito mais importante do que o conteúdo do discurso é o "framing" (enquadramento), isto é, a embalagem em que vêm as ideias.
A chave para o sucesso eleitoral não está em apresentar propostas boas e realizáveis, mas em associar a imagem do candidato a emoções positivas e a de seu rival a negativas. A versão prevalece sobre o fato.
É claro que os eleitores se comportavam desse modo muito antes de marqueteiros e neurocientistas chegarem a essas conclusões. Mas, como os políticos não sabiam disso e acreditavam que os projetos eram importantes, dedicavam parte de suas energias a elaborá-los tão seriamente quanto possível. O debate ficava mais qualificado. Eventualmente, as propostas eram usadas na administração. Agora que se sabe que os conteúdos não têm tanta importância, vivemos o império da embalagem.
Antecipação acua Campos - JOÃO BOSCO RABELLO
O Estado de S.Paulo - 24/02
A entrada em cena de Aécio Neves (PSDB) e a decisão de constituir um novo partido pela ex-senadora Marina Silva, apesar de movimentos esperados, coincidem no tempo por força da antecipação da campanha sucessória pela presidente Dilma Rousseff, sob a coordenação do ex-presidente Lula.
Convencido da inutilidade de insistir em demover o governador Eduardo Campos (PSB) da candidatura em 2014, Lula repete a estratégia de 2010, antecipando-se aos concorrentes em um ano, lançando Dilma à reeleição e já elegendo como adversário o PSDB.
Nesse contexto, reforça a aliança com o PMDB, depois de acenar com a vice para Campos, garantindo a candidatura ao governo de São Paulo, em 2014, a Michel Temer.
Foi a tentativa derradeira de manter o PSB na base do governo.
A antecipação apressou a largada de Aécio, contida pela divisão interna no PSDB, e provocou reação imediata do governador de Pernambuco, beneficiário até aqui da postergação do processo.
Campos colocou PT e PSDB no mesmo saco e cobrou renovação na disputa, a partir de uma pauta popular. A reação dá a medida das dificuldades que enfrentará, a partir de agora, para firmar-se candidato. A começar pela definição formal, que estrategicamente vinha protelando.
Com o cenário posto, não parece possível ao PSB, com seus 26 deputados, manter-se aliado e concorrente por mais tempo, pois o governo precisa não só ampliar o espaço do PMDB, como também acomodar o PSD, com 48 parlamentares, seu sucedâneo na base. A Campos, agora, é ficar ou sair de vez.
Campanha pela TV
O PSB deflagra em abril uma ofensiva na televisão e no rádio para divulgar a imagem do governador Eduardo Campos País afora. De 11 a 18 de abril, serão veiculadas inserções rápidas no horário nobre. O programa partidário, com 10 minutos, vai ao ar no dia 25. Como presidente da sigla, Campos também estará nos programas estaduais. Em maio, ele estrela o programa gaúcho, junto com o líder do PSB, deputado Beto Albuquerque (RS). A ideia é compensar a desvantagem do governador numa campanha antecipada, já que não pode se deslocar livremente pelo País, como a presidente da República ou um parlamentar. É preciso "criar" uma agenda de eventos que justifique sua saída do Estado.
Segundo turno
Um interlocutor de Campos acusou a estratégia do ex-presidente Lula de eleger o PSDB principal adversário na sucessão. "Ele isola os outros,por achar mais fácil ganhar do PSDB", diz. Mas o PSB avalia que pode, com Marina, levar a eleição para o segundo turno.
Fidelização
O vice-presidente Michel Temer tenta convencer a presidente Dilma Rousseff a decidir sobre a reforma ministerial antes do dia 10 de março, para ter "boas notícias" a anunciar na Convenção Nacional do PMDB, dia 2, que o reconduzirá à presidência do partido. Por ora, se contenta com a garantia de que a ala mineira será contemplada com um ministério. A pasta que mais interessa é a dos Transportes. A garantia obedece à estratégia de fidelizar o PMDB.
Caixa
Na reforma administrativa da Caixa Econômica Federal, em gestação, o governo prepara a criação de uma vice-presidência de Infraestrutura. O novo cargo poderá agraciar um nome do PR ou do PSD, na esteira da reforma ministerial, já contaminada por 2014. Atualmente, a Caixa tem 11 vice-presidências, onde já acomodou petistas e peemedebistas.
A entrada em cena de Aécio Neves (PSDB) e a decisão de constituir um novo partido pela ex-senadora Marina Silva, apesar de movimentos esperados, coincidem no tempo por força da antecipação da campanha sucessória pela presidente Dilma Rousseff, sob a coordenação do ex-presidente Lula.
Convencido da inutilidade de insistir em demover o governador Eduardo Campos (PSB) da candidatura em 2014, Lula repete a estratégia de 2010, antecipando-se aos concorrentes em um ano, lançando Dilma à reeleição e já elegendo como adversário o PSDB.
Nesse contexto, reforça a aliança com o PMDB, depois de acenar com a vice para Campos, garantindo a candidatura ao governo de São Paulo, em 2014, a Michel Temer.
Foi a tentativa derradeira de manter o PSB na base do governo.
A antecipação apressou a largada de Aécio, contida pela divisão interna no PSDB, e provocou reação imediata do governador de Pernambuco, beneficiário até aqui da postergação do processo.
Campos colocou PT e PSDB no mesmo saco e cobrou renovação na disputa, a partir de uma pauta popular. A reação dá a medida das dificuldades que enfrentará, a partir de agora, para firmar-se candidato. A começar pela definição formal, que estrategicamente vinha protelando.
Com o cenário posto, não parece possível ao PSB, com seus 26 deputados, manter-se aliado e concorrente por mais tempo, pois o governo precisa não só ampliar o espaço do PMDB, como também acomodar o PSD, com 48 parlamentares, seu sucedâneo na base. A Campos, agora, é ficar ou sair de vez.
Campanha pela TV
O PSB deflagra em abril uma ofensiva na televisão e no rádio para divulgar a imagem do governador Eduardo Campos País afora. De 11 a 18 de abril, serão veiculadas inserções rápidas no horário nobre. O programa partidário, com 10 minutos, vai ao ar no dia 25. Como presidente da sigla, Campos também estará nos programas estaduais. Em maio, ele estrela o programa gaúcho, junto com o líder do PSB, deputado Beto Albuquerque (RS). A ideia é compensar a desvantagem do governador numa campanha antecipada, já que não pode se deslocar livremente pelo País, como a presidente da República ou um parlamentar. É preciso "criar" uma agenda de eventos que justifique sua saída do Estado.
Segundo turno
Um interlocutor de Campos acusou a estratégia do ex-presidente Lula de eleger o PSDB principal adversário na sucessão. "Ele isola os outros,por achar mais fácil ganhar do PSDB", diz. Mas o PSB avalia que pode, com Marina, levar a eleição para o segundo turno.
Fidelização
O vice-presidente Michel Temer tenta convencer a presidente Dilma Rousseff a decidir sobre a reforma ministerial antes do dia 10 de março, para ter "boas notícias" a anunciar na Convenção Nacional do PMDB, dia 2, que o reconduzirá à presidência do partido. Por ora, se contenta com a garantia de que a ala mineira será contemplada com um ministério. A pasta que mais interessa é a dos Transportes. A garantia obedece à estratégia de fidelizar o PMDB.
Caixa
Na reforma administrativa da Caixa Econômica Federal, em gestação, o governo prepara a criação de uma vice-presidência de Infraestrutura. O novo cargo poderá agraciar um nome do PR ou do PSD, na esteira da reforma ministerial, já contaminada por 2014. Atualmente, a Caixa tem 11 vice-presidências, onde já acomodou petistas e peemedebistas.
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