O Estado de S.Paulo - 24/02
Dona Alzira está passada desde que leu no jornal essa história da exumação de Dom Pedro I (furo de reportagem, lembro a ela, do Edison Veiga e do Vitor Hugo Brandalise aqui no Estadão). Não só de Dom Pedro mas também de Dona Leopoldina e Dona Amélia, com as quais, sabemos todos, ele subiu ao altar, uma de cada vez, é claro. Só faltou sacarem da cova uma terceira Dona, Domitília de Castro, a Marquesa de Santos, com a qual o imperador andou subindo, não ao altar, mas ao nirvana carnal.
O que mais injuriou minha amiga foi, nas suas palavras, o desrespeito à figura de Pedro I. Entre outras grosserias, a exibição de sua imperial caveira, ainda que aparentemente os dentes estejam todos no lugar. Ah, diz ela, não precisavam ter exposto à galhofa republicana as mandíbulas hoje descarnadas por entre as quais transitou o famoso grito, às margens então plácidas do Ipiranga. Dona Alzira tampouco gostou de ver alardeada a notícia de que o imperador fraturou quatro costelas ao literalmente cair do cavalo, logo ele, um ás da equitação. E daí? Se ele jazia não em um, mas em três caixões, argumenta, um dentro do outro, qual boneca russa, era para que o deixassem em paz.
Ainda que inteiro, o esqueleto de Dom Pedro estava lastimavelmente bagunçado - segundo leu Dona Alzira, de tanto que o chacoalharam, coitado, quando o trouxeram de Lisboa, em 1972. A embalagem com os despojos teria sofrido rudes sacolejos no trajeto pelas sucessivas capitais por onde passou triunfalmente. É dessa época a paixão (um pouco mais do que cívica, chego a desconfiar) de Dona Alzira pelo imperador. Ela se lembra de ter lido no Jornal da Tarde, dias a fio, o diário de bordo de um repórter que veio junto com os ossos de Dom Pedro num navio chamado Funchal. Fernando Portela, identifico eu. Isso, diz ela, e observa: meio irreverente, o moço, além de audacioso: em plena ditadura Medici, o danado conseguiu contar nas entrelinhas que a esposa de um ministro graúdo abandonou às pressas a mesa do almoço para lançar no oceano o conteúdo de seu estômago mareado.
Quase um século e meio depois de falecer, Dom Pedro I fazia então o que se julgava ser sua última viagem - que acabaria sendo a penúltima, pois agora o sacaram de sua cripta, no Ipiranga, e na moita o levaram, noite alta, até o Hospital das Clínicas, onde cientistas o submeteram a exames, como se fosse, preconceito à parte, um paciente do SUS.
Tais exames, que no parecer de Dona Alzira raiam ao vilipêndio, revelaram coisas que ninguém precisava saber - como o fato de que Pedro I, tão grande no imaginário popular, media 1,70 metro, por aí. Mais: com exceção das abotoaduras, de ouro, os adornos de seu cadáver são de metais plebeus. Falaram até dos botões de osso da cueca do imperador!
Soube-se também que os derradeiros brincos de Dona Leopoldina têm, em vez de pedras preciosas, gemas feitas de resina. Em compensação, ressalta Dona Alzira, a ausência de fraturas veio aniquilar aleivosias segundo as quais o imperador teria jogado a mulher escada a baixo na Quinta da Boa Vista, quebrando-lhe um fêmur. Já a discreta Dona Amélia, revelou-se uma múmia: 137 anos depois de baixar à cova, seu corpo, embora enegrecido, está espantosamente bem conservado.
Mas precisava mostrar coisas assim? - revolta-se minha amiga. Para completar, nas Clínicas botaram apelidos nos defuntos: a pretexto de sigilo, permitiram-se o desplante de chamá-los de "Pedrão, "Leo" e "Melinha", e ao grupo, "Trio Parada Dura". Pelo menos providenciaram, a pedido da família imperial, um padre para rezar durante a exumação. Em latim. Poucas vezes uma língua morta terá sido tão adequada à circunstância.
Acabou-se a sem-cerimônia? Nada, desalenta-se Dona Alzira: agora estão dizendo que talvez seja possível reconstituir os rostos e até as vozes dos falecidos. Tento consolar a boa senhora: quem sabe a gente vai poder ouvir Dom Pedro gritando Independência ou Morte?
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