Orgulho e dor
O Globo - 14/01/2010 |
Metade dos haitianos tem menos de 18 anos. São crianças. A médica Zilda Arns dedicou sua vida às crianças. Salvou incontáveis vidas no Brasil, espalhava seu trabalho pelo mundo, morreu no país que mais precisava de ajuda. O Haiti é o país mais pobre do Ocidente, diz o Banco Mundial. Sobre essa extrema privação é que aconteceu a devastação de um terremoto histórico O Brasil tem tido sabedoria, estratégia, autoridade na condução dos trabalhos da missão da ONU no Haiti. Com sabedoria, estratégia e solidariedade, Zilda Arns construiu uma rede poderosa de voluntários que se espalhou pelo Brasil salvando vidas. Quando a missão brasileira chegou ao Haiti, em 2004, a maior preocupação da ONU era com as gangues formadas por ex-integrantes das forças armadas haitianas que haviam sido extintas em 1994. E foi nesse ponto que os militares brasileiros começaram a trabalhar, segundo me contou ontem o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, primeiro comandante da Missão da ONU: — Nosso primeiro trabalho foi neutralizar os ex-militares, fomos prendendo, dissuadindo, desarmando e dissolvendo os grupos. Depois, foi preciso mostrar coragem. — Nós entrávamos nas áreas de conflito, numa cidade quase completamente favelizada que é Porto Príncipe, mas saíamos logo depois. Os integrantes das gangues diziam que nós tínhamos medo deles, e assim evitavam que a comunidade cooperasse conosco. Decidimos ocupar a primeira grande favela, Belair, que ficava perto do Palácio Presidencial — esse que acaba de ruir. Isso mostrou aos bandidos que não tínhamos medo e fortaleceu nossa relação com a população. Depois, fomos para Cité Soleil — conta. Mas tudo mudou mesmo quando chegou a companhia de engenharia do Exércio e começou o trabalho de reconstrução de hospitais, escolas, casas. — Não era esse o nosso trabalho, mas diante da carência de tudo, fomos ganhando a confiança da população assim, construindo, fazendo poço artesiano, refazendo o destruído — diz o general. A médica Zilda Arns foi chamada pelo irmão, na época cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, porque ele tinha tido uma ideia: — Zilda, você não quer pensar como a Igreja poderia ensinar às mães a preparar o soro caseiro? Porque se elas tomassem soro, não morreriam com diarreia. Então eu pensei: quero multiplicar a informação — me disse doutora Zilda numa entrevista. Ela foi organizando um método para essa multiplicação de informações: treinando voluntárias, educando as mães, organizando grupos, montando rede. As informações que foram sendo multiplicadas eram sobre como preparar o soro caseiro, como e por que manter o aleitamento materno, como preparar a mistura que fortalecia as crianças. O Brasil, nesse período, por ações de voluntários como Zilda Arns, e atuação governamental, derrubou fortemente a mortalidade infantil. Mesmo assim, as estatísticas mostram que o trabalho que ela estruturou, a partir daquela conversa com Dom Paulo em 1982, fez diferença. Hoje, a mortalidade infantil brasileira é de 22 em cada 1.000 crianças nascidas vivas. Nas áreas onde a Pastoral da Criança atua, é de 11 por mil. E o espantoso é que a Pastoral atua justamente nas áreas mais pobres do país. O Haiti tem números terríveis. Basta olhar esse gráfico para ver. Metade do país é de analfabetos, 80% dos haitianos são pobres, destes, 50% estão em estado de pobreza absoluta. Só 30% de luz elétrica, só 20% das casas têm água encanada. O país já foi vítima da mais sangrenta das ditaduras de Papa Doc cuja polícia matou 30 mil pessoas. É atingido por inundações, como a de 2004, em Gonaives, que deixou mais de dois mil mortos, ou os furacões de 2008. O que mostra a presença dos brasileiros no Haiti, e a vida de Zilda Arns, é que a tragédia social não é invencível. Com método, objetivos e solidariedade, ela pode ser derrotada. Hoje é um desses momentos em que os sentimentos se misturam. Orgulho dos brasileiros que morreram levando paz e solidariedade a um país devasta |