quinta-feira, janeiro 14, 2010

MERVAL PEREIRA

Democracia direta

O GLOBO - 14/01/10


Uma mudança fundamental na elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos, que o diferencia dos demais divulgados anteriormente, é que, desta vez, o protagonismo ficou com diversas instâncias de representação da sociedade reunidas em infinidades de conselhos e conferências realizadas pelo Brasil afora.

O processo é o mesmo utilizado no governo anterior para auscultar a chamada “sociedade civil”, mas o que antes não passava de sugestões, desta vez, ganhou caráter terminativo, sem que nenhum setor do governo tenha feito uma filtragem das “decisões”.

Esse é um procedimento recorrente no governo Lula na tentativa de ultrapassagem do Congresso, com a criação de diversas instâncias de negociação em que os sindicatos e as ONGs decidem o que o governo vai enviar para uma aprovação quase formal dos deputados e senadores, que passariam a ter um papel meramente simbólico, e são contemplados em troca com quinhões do orçamento e outras benesses governamentais.

A tese de que a democracia representativa já não é suficiente para refletir os verdadeiros anseios populares está por trás desse sistema decisório, e também da defesa da “democracia participativa” ou “direta”, preferida por setores influentes do governo e mais uma vez incluída entre as propostas no plano de direitos humanos.

É claro que democracia não depende apenas do voto direto, também não das consultas populares, mas da criação de um ambiente onde os direitos individuais estejam protegidos e acima da vontade do poderoso da ocasião, seja o guarda da esquina ou o presidente da República.

A democracia representativa está em crise no mundo todo, e a democracia direta surge aqui na América do Sul como uma solução manipuladora de esquerda.

Em diversos textos, o atual ministro da Justiça, Tarso Genro, aborda o que considera ser a falência da democracia representativa, e defende a organização de um novo Estado com “outras formas de participação direta”, surgindo daí a defesa de “instituições conselhistas”.

Entre esses, ele cita especificamente o controle dos meios de comunicação através de “conselhos de Estado”.

O ministro acha que o que chama de “ ritualismo democrático-formal” é uma das causas da decadência do modelo representativo atual.

Também o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, hoje ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo, defende que as camadas mais excluídas da sociedade participem efetivamente das decisões governamentais “através de referendos e plebiscitos”.

Ele considera que as eleições nas democracias representativas sofrem grande influência econômica, o que, na sua opinião, “dificulta a participação das camadas excluídas da população, provocando grandes tensões sociais”.

A questão é que a transformação dessas diversas representações da “sociedade civil” em instâncias decisórias para políticas do governo faz com que apenas os setores mais mobilizados da sociedade surjam como os grandes protagonistas dos tais conselhos, tornando suas decisões representativas não da maioria da sociedade, mas de sua parte mais politicamente ativa.

Seriam interesses fragmentados que ganhariam uma dimensão majoritária que não têm na realidade.

Também as chamadas “consultas diretas”, como referendos e plebiscitos, correm o risco de ter resultados distorcidos, refletindo mais a influência de lobbies e grupos bem financiados do que realmente a vontade majoritária de uma população.

O cientista político Bolívar Lamounier considera que a possibilidade de manipulação é inerente ao instrumento, “pois a autoridade incumbida de propor os quesitos pode ficar muito aquém da neutralidade”.

É por isso que o Congresso, eleito através do voto nacional, deve ser a última instância. A definição de políticas públicas fora da arena congressual não é uma decisão democrática.

Quando o governo negocia com sindicatos o aumento do salário mínimo, por exemplo, e manda ao Congresso uma proposta consensual, consegue impor sua vontade aos parlamentares, que não têm força para discutir um acordo já fechado diretamente entre o governo e os sindicatos.

Mas quando o assunto afeta os interesses da própria base congressual do governo, aí o sistema apresenta suas falhas. O governo tem uma maioria heterogênea que nada tem de ideológica.

É mais uma barreira a que problemas políticos alcancem o governo do que um grupo político unido em torno de um programa. Seria uma maioria “anti-impeachment” montada após a crise do mensalão em 2005.

Estudo do cientista político Gustavo Venturi, citado em recente artigo do ex-porta-voz de Lula André Singer sobre o fenômeno do “lulismo”, mostra que a tendência para a direita do eleitorado de menor escolaridade, associada à renda — já registrada na eleição de 1989 — continuava presente quase duas décadas depois, na eleição de em 2006.

Enquanto os eleitores de escolaridade superior dividiamse por igual entre os campos da esquerda (31%), do centro (32%) e da direita (31%), entre os que frequentaram até a quarta série do ensino fundamental, a direita tinha 44% de preferência, mais do que o triplo de adesão que tinha a esquerda (16%) e o centro (15%).

Assim como a sociedade brasileira, a maioria do Congresso não é de esquerda, o que inviabiliza a aprovação de um programa tão amplo e baseado em ideologia como o apresentado.

Tive a honra de fazer parte do júri do GLOBO que concedeu o Prêmio Faz a Diferença a Dona Zilda Arns em 2003.

Morreu como viveu, ajudando os mais necessitados.

O nome correto do historiador italiano autor do livro “O queijo e os vermes” citado na coluna de ontem é Carlo Ginzburg.

Nenhum comentário: