domingo, março 31, 2019

Construir, não destruir - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 31/03

Guerra contra o establishment significa ataque ao Legislativo, ao Judiciário e à mídia?



Muita coisa começou a fazer sentido quando o jovem Filipe Martins, assessor internacional da Presidência e amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, publicou no Twitter: “O establishment acusou o golpe. Eles estão com medo. É hora de continuar batendo no sistema sem parar, sem precipitar e sem retroceder”.

O que é o “establishment” a ser combatido? O Congresso, o Supremo e a mídia independente. Isso lembra alguma coisa? Sim, lembra a Venezuela de Hugo Chávez, com sinal trocado.

Chávez, coronel da reserva do Exército, aliou-se às Forças Armadas e a parte da esquerda para combater o establishment e implantar um regime ao seu gosto. Bolsonaro, capitão da reserva, atraiu os militares, a direita e os conservadores para criar uma “nova era”.

Logo, não se trata de direita e esquerda. Em duas democracias cheias de problemas e vícios, a liga política pró-Chávez e pró-Bolsonaro foi possível em torno de costumes, nacionalismo e combate à corrupção. Só que a guinada aqui conta com um arsenal de guerra mais poderoso que os Sukhoi russos de Chávez e Maduro: as redes sociais.

A destruição da Venezuela começou com ataques frontais e uma intensa propaganda contra parlamentares, funcionários, ministros da Alta Corte, jornalistas, e aqui tudo isso é ainda mais rápido, mas as instituições são mais sólidas. Lá, não sobrou nada. A Venezuela vai demorar décadas para se recuperar.

Como Chávez, Bolsonaro também se alia estrategicamente com o capital e as forças de combate à corrupção. Entram aí as figuras decisivas de Paulo Guedes e Sérgio Moro, que são legítimos integrantes do establishment, mas ampliam aliados e conferem grandeza e bons propósitos ao regime.

Guedes é um economista liberal que passou a vida ao largo do setor público e está determinado a repor o Brasil nos trilhos do desenvolvimento. Moro é um juiz que atuou sempre no setor público e se apegou à chance de ampliar a Lava Jato para nível nacional e contra o crime organizado.

Desde a campanha, o economista Pérsio Arida, um dos cérebros mais brilhantes de sua geração, já questionava como poderia funcionar a aliança Bolsonaro-Guedes. O histórico do agora presidente expõe uma alma corporativista, estatizante e nacionalista à antiga. Já seu ministro da Economia é o oposto: liberal, privatizante, globalizante.

Logo, não é surpresa Bolsonaro despejar a reforma da Previdência no Congresso e lavar as mãos, enquanto Guedes se esfalfa com o deputado Rodrigo Maia, outro liberal do establishment, para fazer a reforma acontecer e “salvar o futuro dos nossos netos”.

Quanto a Moro, ronda uma dúvida: a Lava Jato, que foca políticos, partidos e grandes empresários, está em que lado dessa guerra dos bolsonaristas contra o establishment? Vai manter sua ação contra vícios, métodos, desvios e seus agentes, ou vai usar sua ação para engrossar o exército de Bolsonaro, seus filhos, gurus, apadrinhados e soldados da internet contra o Judiciário, o Legislativo, a mídia?

Moro é caladão, discreto, determinado, mas é um atento observador e acaba de orientar “os meninos” a baixarem a bola para a Lava Jato não assumir um lado nessa guerra. Os meninos são os procuradores, à frente Deltan Dallagnol.

Se há um exército contra as instituições, surge outro para protegê-las. Quem tem discernimento nos dois lados quer mudança, mas sem implodir Congresso, Judiciário, mídia. A reação de Rodrigo Maia contra ataques à política não é pessoal, é institucional. Ao resistir às crescentes agressões a ministros, Dias Toffoli blinda o Supremo. E Moro defende negociação: “Precisamos construir, não destruir. Ou nos unimos na beira do precipício ou nos encontramos juntos no fundo do abismo”.

O golpe das vítimas - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 31/03


"O Brasil passou boa parte da última corrida presidencial discutindo um regime instaurado mais de meio século atrás. Sinal impressionante de frescor intelectual e acuidade cívica: um país em dia com seus conflitos artificiais e seu viveiro de fantasmas. Mesmo assim chegou ao aniversário de 55 anos da ditadura de 64 se perguntando o que, afinal, se passou na ocasião.

Como você está cansado de saber o que se passou – assim como todo mundo – não vamos cair aqui também na armadilha desse disco arranhado. Temos mais o que fazer. Tratar, por exemplo, dos golpes depois do golpe.

Foram vários. E talvez o pior deles seja um que está ainda em curso, neste exato momento, perpetrado por uma legião de picaretas espalhados pelo vasto território nacional. É um golpe tipo aquele do falso telefonema do presídio, pedindo resgate por um sequestro de mentira. No caso, o truque é pedir voto, prestígio e grana ao país para combater uma assombração do século passado.

Esse aí engana muito mais gente que o golpe do presidiário (o do trote, não o do PT – que enganou o mundo inteiro).

Em 2019, o maior desrespeito às vítimas da ditadura militar, a maior afronta aos valores democráticos atropelados pelos tanques, enfim, a maior traição à verdadeira luta pela liberdade vem das falsas vítimas do golpe de 64. São personagens que se dizem de esquerda e fazem o jogo daqueles que assaltaram o país por 13 anos, fingindo combater a direita. Se fazer de vítima da ditadura para ter poder e parasitar o Estado também é atropelar a democracia – além de ser um vexame.

Não são poucos os que vivem desse golpe no Brasil. E não são só os que tomaram o poder central e viraram pobres milionários perseguidos por roubar honestamente. Nas artes, na imprensa, no mercado em geral vale uma fortuna você fingir que está lutando contra a censura – como aquelas almas penadas da MPB que tentaram surfar no verão denunciando a proibição do carnaval. Meu reino por uma fantasia de oprimido.

Como disse o gigante Carlos Vereza, de cima do palco, ao final de seu espetáculo sobre Judas Iscariotes: “Que censura, porra?!”

O país vive a mais plena liberdade que já conheceu em 500 anos de história, apesar das tentativas do PT de amordaçar a imprensa – disfarçando seus planos de censura prévia até em pacotes de direitos humanos. Lembra-se disso? Esqueceu? Não soube? Procure saber. E esses profissionais da lamúria contra a censura imaginária não deram um pio – ao contrário, tentaram instituir a censura prévia de biografias não-autorizadas. Obscurantistas são os outros.

Depois do impeachment de Dilma Rousseff – testa de ferro do escândalo sem precedentes desmascarado pela Lava Jato – esse Brasil que se finge até hoje de vítima do golpe de 64 tentou virar a mesa. Uma cena antológica: as viúvas do golpe tentando dar o golpe.

Mas o golpe deles era perfumado, bem penteado como a franja prateada de Rodrigo Janot – o ex-procurador-geral encarregado do serviço sujo. Foi praticamente uma ópera: essas sofridas e podres de ricas vítimas vitalícias de uma assombração morta e enterrada conspirando com o açougueiro biônico do PT (vitaminado com os bilhões revolucionários do BNDES, isto é, seus), com a ajuda de um supremo juiz petista empoderado, por sua vez, pelo açougueiro. Coisa fina, carne de primeira.

A armação para tomar o palácio na mão grande (sem perder a ternura, claro) contou com a parceria valiosa da imprensa FreeBoy – setor da grande mídia assim apelidado por seu esforço cívico para transformar o criminoso Joesley Batista em herói do combate à corrupção, no papel de empresário arrependido. Uma fofura. Com Janot ditando manchetes alopradas a partir de uma delação vagabunda e ilegal (hoje suspensa), tentaram todos juntos garantir um exílio de ouro ao bandido em Nova York – usando suas mentiras para derrubar o governo. Contando ninguém acredita.

O golpe de 2017 não deu certo por um único e singelo motivo: era ridículo. Foi montado e operado por uma galeria de trapalhões, covardes e fanfarrões, iludidos pela crença de que para cometer um crime basta ser desonesto. Ao fundo, essas mesmas e patéticas vítimas vitalícias de 64 aproveitavam a série de TV “Os dias eram assim” para pedir diretas já em passeatas melancólicas.

Esse golpe de estado fracassado não chegou à virada de mesa, mas parou o país – que vinha se recuperando da ruína petista com a saída da maior recessão da história em tempo recorde. Essa equipe econômica tinha o melhor presidente de Banco Central do mundo (ranking “Financial Times”) e foi sabotada pela tentativa de golpe. Coincidências: na ocasião, a reforma da Previdência foi jogada no lixo e um dos nomes citados para assumir a Presidência da República em caso de derrubada do governo era o de Rodrigo Maia.

Os simpáticos conspiradores estão por aí, quase todos soltos, com muito dinheiro e influência para continuar derramando suas lágrimas de crocodilo sobre 64 enquanto lutam pelo único valor cívico que lhes interessa de fato: poder. Quer se ligar no golpe, Brasil? Então olha pra frente."

A ambiguidade de André Lara Resende - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP 31/03

André não enfatiza as implicações fiscais de sua sugestão de alterar a política econômica


André Lara Resende tem provocado ruidoso debate ao afirmar que equilíbrio fiscal não tem importância e que o BC pode colocar o juro onde deseja.

Fui ler o texto original, “Consenso e contrassenso: déficit, dívida e Previdência”, e não foi o que lá encontrei.

Entendo que André está correto quando afirma que um Estado que emite dívida em sua própria moeda não enfrenta restrição financeira, mas somente a restrição de recursos da sociedade. Keynes nos
ensinou esse fato há 80 anos.

No modelo tradicional, a taxa de juros é o regulador da demanda agregada. O BC a fixa para manter inflação na meta. A política fiscal é determinada para garantir a solvência da dívida pública.

André propõe inverter. Manter a taxa de juros baixa —de preferência abaixo da taxa de crescimento da economia— e empregar a política fiscal para regular a demanda agregada.

No modelo tradicional, um parâmetro importante é a taxa real neutra de juros, aquela que mantém o mercado de trabalho a pleno emprego, e a inflação, estável e na meta.

Ao direcionar a política fiscal para o controle da demanda agregada e fixar os juros baixos para não gerar uma dinâmica explosiva na dívida pública, André está nos dizendo que a taxa neutra não é independente da política fiscal, como estabelece há décadas a teoria convencional.

Há anos tenho escrito que um dos motivos que explicam o fato de a taxa neutra de juros ser muito elevada no Brasil é o gasto primário da União crescer sistematicamente além da expansão da economia.

Entre 2008 e 2014, essa pressão sobre a taxa neutra de juros foi agravada pelo BNDES.

Até alguns anos atrás, as melhores estimativas de taxa neutra de juros no Brasil situavam-na em 6% ao ano.

A contenção do crescimento do gasto real da União desde 2015 e a redução das operações com BNDES já reduziram a taxa neutra. Hoje ela situa-se em torno de 3%.

André está certo e faz parte do saber convencional que diferentes regimes fiscais produzirão diferentes taxas neutras de juros.

Por hipótese, como funcionaria a política econômica se André fosse simultaneamente ministro da Fazenda e presidente do BC, no melhor período que tivemos, os anos Lula, quando crescemos 4% em termos reais? Ele fixaria a taxa de juros real abaixo de 4% e faria a política fiscal compatível com essa política monetária e inflação na meta.

Como aqueles foram anos de pressão inflacionária permanente, mesmo com juros reais praticados superiores a 6%, a política fiscal teria de ter sido mais apertada do que foi. Teria sido necessário aprovarmos uma reforma da Previdência e promovermos o ajuste fiscal estrutural desejado
por muitos em 2005.

O texto de André tem um problema retórico. Para tornar sua proposta mais palatável, não enfatiza as implicações fiscais de sua sugestão de alteração do regime de política econômica.

Ele tem ainda um problema histórico. O regime de André era o desejado, por exemplo, por Keynes, que defendeu contração fiscal para enfrentar o excesso de demanda no Reino Unido em 1937.

A experiência do pós-guerra nos ensinou que a política fiscal é muito lenta, pois depende essencialmente do tempo da política, enquanto a política monetária tem a agilidade necessária para manter a inflação controlada.

Com relação à proposta mais polêmica de André, manter os juros reais bem baixos, é sempre possível. Basta convencer o Congresso a produzir a política fiscal compatível com esse juro real baixo e inflação estável.

André fez muito barulho por nada.

Auto de fé e linchamento - ROBERTO ROMANO

O Estado de S.Paulo - 31/03

... Que não joguem livros à fogueira, como Savonarola, sobretudo o volume da Constituição


Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).

Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18: “Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices” (Apologia do Padre Raynal). Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.

O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia”(Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).

Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício. O ressentimento das massas é desafio, impede soluções. Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e de setores lúcidos na sociedade. Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.

Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.

Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.

No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da razão' (Perspectiva)

Governo paralelo, castelos no ar - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 31/03

Cúpulas do Congresso querem ter 'pauta própria' e colaborar com 'parte do governo'


A cúpula do Congresso, Câmara e Senado vai trabalhar para que se aprove alguma reforma da Previdência, além de outros assuntos de grande consenso na elite econômica e de repercussão popular. Quanto ao mais, o governo que se vire.

No final da semana, esse parecia o saldo do arranca-rabo, explicitado em conversas com lideranças que se resignavam com o fato de Jair Bolsonaro ser mesmo o que sempre pareceu.

Não haveria patrocínio de tentativas de sabotagem do governo, que, no entanto, vai colher o que plantar caso provoque a massa parlamentar.

A reforma da Previdência será de certa forma um projeto do Parlamento, um roteiro adaptado, baseado na história original elaborada pelo Ministério da Economia. Será lipoaspirada. As dificuldades de aprová-la talvez sejam até maiores, mas o projeto não será largado pela cúpula do Congresso, como em 2017.

O plano, enfim, é governar com uma parte do governo (sic), em especial em economia e segurança pública. Seria uma espécie de parlamentarismo aéreo, um governo paralelo, quem sabe um castelo no ar.

Pode dar certo? No Brasil recente, viu-se coisa parecida no desastre de José Sarney (1985-1990) e no estágio terminal de Fernando Collor e Dilma Rousseff, que não foram sujeitos a governo paralelo, mas apenas neutralizados ou sabotados. A comparação não ensina grande coisa.

O MDB desde o início podou Sarney, presidente acidental, sempre um estranho no ninho do próprio governo. Não foi eleito, sua administração virou pó a partir de 1987; o MDB era majoritário na Câmara e um partido que liderou a transição transada para a democracia. Outro planeta.

Os casos de Collor e Dilma são de troca de fusível queimado, goste-se ou não dos motivos da interrupção do circuito. Incinerar Bolsonaro não interessa, antes de mais nada porque assim também viraria cinza a possibilidade de haver tão cedo um projeto de recuperação econômica.

De resto, por ora não se nota por aí nenhuma intenção, por nenhum motivo, de colocar fogo na casa.

Isto posto, a questão permanece. Como pode funcionar um sistema em que o governo não tem maioria ou coordenação, em que o Parlamento se propõe a ter um plano próprio de governo e uma massa de uns 250 parlamentares parece perdida na terra do nunca da desarticulação política?

Esses 250, por aí, são a metade do Câmara que não está na oposição, não é do PSL e que não faz parte dessa cúpula que se imagina capaz de criar uma “pauta própria” para o Parlamento.

Caso persista o padrão pendular de loucura do governo, até a Semana Santa haveria nova crise, mas o problema não para aí.

Como o bolsonarismo vai reagir ao Congresso com “pauta própria”, com seus projetos pegando poeira em alguma comissão inerte?

Sim, a liderança do Congresso, da Câmara em particular, vai tentar aprovar projetos também de interesse ou iniciativa do governo. Ainda não há guerra sem trégua. Pode ser até que o governo Bolsonaro nem mesmo consiga mandar muito mais coisa relevante para o Parlamento, com o que haveria um armistício por falta de bala.

Mas é preciso lembrar também que o núcleo puro do bolsonarismo tem crenças messiânicas, fantásticas, autoritárias e ignorantes, de que pode fazer uma revolução moral e contornar a política, com a força do grito da massa nas redes insociáveis, quem sabe nas ruas. Pode ser que essa ambição morra por pura incompetência. Ou não.

Gabeira e um Brasil que vale a pena - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 31/03

Seu papel é um alívio em tempos em que alguns tentam reescrever a história

Conheci Fernando Gabeira há 16 anos, quando eu estava no Ministério da Fazenda e ele, no Congresso. Encontramo-nos poucas vezes desde então.

Em tempos de desesperança, seu programa na GloboNews recupera a alma.

Há tanto que me comove: a descoberta dos recônditos do país, o carinho interessado pelos entrevistados, a câmera curiosa descobrindo detalhes inesperados, como uma placa de trânsito com uma palavra inclinada no canto.

Em um programa recente, visitou Exu, Pernambuco, e alguns de seus moradores. Com imagens espaçadas, como a da boiada passando pela cidade, descreveu um cotidiano. Não consigo imaginar homenagem mais delicada a Luiz Gonzaga, quase um contrabando do afeto.

Em vez de destacar o seu legado, Gabeira optou por mencionar de passagem seus gestos ao retornar ao vilarejo, como a doação de um acordeão a um parente ainda criança em quem anteviu a musicalidade.

Sutilmente, deixou-nos saber da música de Gonzagão que reverbera gerações, como na homenagem ao pai, Januário. As imagens retratavam a vida e a terra que ele cantara em seus baiões e xotes.

Aproveito para resgatar uma memória talvez curtida pela criatividade carioca.

Quando era criança, minha mãe contava-me da ditadura em que vivíamos e dos jovens que resistiam atabalhoadamente, às vezes com violência inaceitável. Falava do sequestro do embaixador americano e, em meio ao desespero dos relatos da tortura e da opressão, ria-se do manifesto demandado a ser lido em horário nobre. Os jovens sem rosto eram identificados pela escrita, dizia ela, em que muitos reconheciam o estilo de Gabeira.

Pura lenda. O autor foi Franklin Martins, contou-me Gabeira.

Sua narrativa na televisão, porém, tem mesmo personalidade. Lembra-me a compaixão de Tchekhov, o dos contos em que revela pessoas por meio de sutilezas do seu cotidiano, não o das peças de teatro e das personagens que anseiam pela mudança e terminam resignadas com as circunstâncias.

A delicadeza do contar fala muito do país, mas também do jornalista, momentaneamente transformado em guerrilheiro naquele período autoritário. Sua generosidade permite encontrar vidas surpreendentes onde a elite apenas se enaltece com o exótico.

Gabeira revela-se um liberal dos velhos tempos que procura conhecer o diferente. Um alívio nesta sociedade dividida em que, costeando a intolerância, alguns tentam reescrever a história.

Há um Brasil que vale a pena. Enfrentar os nossos graves desafios, porém, requer superar o passado e resgatar o diálogo, como, incidentalmente, faz Gabeira com maestria e gentileza.


Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

Coalizão ou impasse - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 31/03

Com sistema político rumo à paralisia, só ação concertada das lideranças pode evitar que o país afunde na recessão e na bagunça administrativa


A teoria é quase tautológica. Quanto mais partidos representativos houver numa democracia, maior é a propensão a que o governo seja uma coalizão entre duas ou mais legendas. Vale para o presidencialismo e o parlamentarismo.

A realidade é que começa a dificultar as coisas —e a realidade brasileira as complica especialmente.

Aqui se decantou, ao longo de 30 anos de vigência desta Constituição, a combinação peculiar entre um presidente da República forte, embora menos do que era na largada, e um Congresso cada vez mais poderoso como instituição mas, paradoxalmente, ultrafragmentado na sua composição partidária.

O presidente, para realizar a sua agenda, necessita do Poder Legislativo. A coordenação de deputados e senadores em maiorias estáveis, porém, tornou-se tarefa mais difícil com o passar do tempo.

Para piorar, os mecanismos de incentivo às boas práticas administrativas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, atuam concentradamente sobre o chefe do Executivo.

Parlamentares adquiriram poderes —como o de evitar abusos nas medidas provisórias— e pleiteiam outros —como a execução obrigatória de mais um pedaço do Orçamento—, mas ainda atuam num vácuo de responsabilização e sob controle partidário evanescente.

Continuam livres para explodir pautas-bomba, que demolem o futuro em nome de imediatismos.

Acrescente-se o fortalecimento recente de organizações de controle do poder representativo, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União.

Tudo somado, o impasse parece ter-se tornado o resultado inercial da governança política no Brasil. Para lá o processo ruma, salvo quando muito esforço, engenho e arte são empregados pelas lideranças eleitas no sentido contrário.

Os debates para reformar o sistema da representação são longos e controversos. É provável que inovações, como a cláusula de desempenho e a proibição de coligações em pleitos para deputado, ajudem a inverter, até certo ponto, a tendência ao despedaçamento partidário.

Há quem pregue remédios mais ousados e incertos. É o caso do chamado semipresidencialismo, em que uma figura parecida à de um premiê surgiria. O debate, de todo modo, é necessário e bem-vindo.

No curto prazo, no entanto, nada será capaz de substituir, como antídoto à paralisia decisória, a iniciativa e a capacidade de trabalho concertado das lideranças que a população e os partidos escolheram. Ou se entendem, ou o Brasil afunda de volta na recessão econômica e na bagunça administrativa.

Os presidentes da República, Jair Bolsonaro (PSL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), precisam dar por encerrado o período das escaramuças. Passa da hora de trabalharem em harmonia pelo país.

O dissenso necessário - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 31/03


Aproximando-se o ciclo dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já é possível constatar uma maneira de governar no mínimo heterodoxa, estimulada por embates permanentes com o uso das novas mídias sociais e baseada fundamentalmente em questões morais. Os pontos centrais, na Economia as reformas e as privatizações, na Justiça, a lei anticrime, têm atitudes dúbias por parte do presidente, cujo passado interfere nas supostas ideias atuais.

Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de um nicho da direita radicalizada, o que já lhe valeu uma queda acentuada de popularidade, principalmente entre a classe média, que foi fundamental para sua eleição.

O analista Fabio Lacombe, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep), diz que a hipervalorização da animação ou reanimação dos “seguidores” estabelece limites muito estreitos para o exercício da convivência política, que requer muito mais do que um agrupamento em torno de determinadas ideias, pois prevê exatamente questioná-las. A desconvocação da cientista política Ilona Szabó de um conselho sobre segurança pública é exemplo disso.

Como Freud mostrou, diz Fabio Lacombe, as exigências morais, uma vez se impondo, se tornam cada vez mais rígidas, em vez de abrirem espaço para possibilidades que ainda não se revelaram. E a realidade política, diferente da postura moralista, está sempre promovendo essas aberturas.

“A questão do agendamento, se não estiver submetida ao propriamente político, é porque se presta mais, por suas dimensões exíguas, a colocar os cidadãos numa marcha onde o pensamento se recolhe às dimensões de reprodução das ordens agendadas”, analisa Lacombe, que lembra que Clausewitz, grande teórico da guerra, avaliou que ela se impõe quando os recursos políticos se esgotaram.

“Apoio político deve ser a adesão a um conjunto de ideias que manifestam a expectativa de que sua aplicação vai promover um estado de coisas que visam ao bem comum”, afirma o analista do Ebep. Delas não emerge nada parecido com um conjunto de regras que devem ser obedecidas sem serem questionadas.

Se, diante da desilusão de certos setores de eleitores que votaram em Bolsonaro mais para se livrar do PT do que propriamente em favor de suas propostas, surge um desapontamento com algo que emergiu, só se pode valorizar esse “desapontamento”, pois gera uma possibilidade de reflexão.

Não basta se encolher numa aparente recompensa, analisa Lacombe. “Mesmo porque ficar livre de algo não garante que essa ‘liberdade’ conquistada deixe em seu lugar algo melhor”, adverte. Se a grande questão era a condução da política submetida a uma rígida postura ideológica, o que tem sido apontado por alguns é que só teria sido invertido o sentido da seta que indicava a direção da ideologia.

Ideologia, lembra Fabio Lacombe, segundo Destutt de Tracy, o criador do termo, trata-se de uma “ciência das ideias”, portanto, nada que possa ser entendido como um conjunto de postulados norteadores de uma conduta política. “A ideologia supõe a necessidade de uma permanente reflexão a respeito da própria conduta”.

O que estaria acontecendo no mundo ocidental que possa estar servindo de sustentáculo para a disseminação do conservadorismo, e não apenas no Brasil? Para Fabio Lacombe, o conservadorismo, no seu manifesto aprisionamento a uma tentativa de evitar as mudanças, encontra nas questões ligadas aos costumes seu alimento maior.

Mas, ao mesmo tempo, destaca que nunca foi tão manifesta a dimensão da ganância, evidenciada no crescente recurso à corrupção, por exemplo. Por que o acento nos costumes, nas regras morais? Qual o lugar da busca pelo dinheiro, nas avaliações do comportamento político?

Na verdade, analisa Lacombe, estamos sendo envolvidos por uma “estimulação” informacional que assumiu proporções assustadoras. “Se pensarmos que os meios atuais colocaram o contato “a dois” numa escala de possibilidades inauditas, certamente criou-se a impressão de uma proximidade entre estamentos antes impossível”, ressalta.

“Se posso acessar um Twitter emitido por meu presidente, figura sempre tão distante em sua altitude, sinto-me numa proximidade que me distingue. Essa dimensão fantasiosa, certamente me preenche em minhas aspirações infantis de estar participando de um mundo ‘adulto’, antes inacessível”.

Fabio Lacombe admite que é “um pouco leviano” elaborar uma conceituação muito requintada do que estamos de fato vivenciando de transformação, “mas não pode passar desapercebido o fato de a relação presencial parecer menos importante da que o celular, por exemplo, propicia. E isso certamente tem uma dimensão política”, acentua Fabio Lacombe.

O 'aprendiz de presidente' - EDITORIAL O ESTADÃO

O ESTADÃO - 31/03

A mais recente edição da revista britânica The Economist publica um artigo intitulado Jair Bolsonaro, o aprendiz de presidente.


Depois de mencionar a crescente série de problemas enfrentados pelo País em razão da inação do governo Bolsonaro em todos os setores, especialmente em relação às reformas, a tradicional publicação comenta que “o maior problema é que o sr. Bolsonaro ainda não mostrou que entende seu novo trabalho”. E sentencia: “A menos que ele pare com suas provocações e aprenda a governar, seu mandato pode ser curto”.

A Presidência de Bolsonaro, diz a Economist, enfrenta um “teste crucial” com o encaminhamento da reforma da Previdência logo em seus primeiros meses, mas o próprio presidente parece não ter compreendido a dimensão desse desafio. Prefere antagonizar a imprensa, ao dizer, no Twitter, que “a mídia cria narrativas de que não governo, sou atrapalhado etc.” e, dirigindo-se a seus seguidores, acusa: “Você sabe quem quer nos desgastar para se criar uma ação definitiva contra meu mandato no futuro”. Ou seja, o próprio presidente Bolsonaro, como a reafirmar sua incrível inabilidade, trouxe à tona, em suas redes sociais, a sombria perspectiva de uma nova interrupção de mandato – e isso antes de se completarem cem dias desde a posse. A Economist disse, com razão, que “os democratas, por mais que abominem Bolsonaro, não deveriam querer que ele não completasse seu mandato”, mas o fato é que o presidente parece estar se esforçando para tirar o gênio da garrafa.

O clima de incerteza provocado pela falta de traquejo presidencial de Bolsonaro, que se reflete em uma relação hostil com o Congresso e em uma gritante falta de rumo administrativo, não autoriza otimismo de nenhuma espécie. Altos funcionários do próprio governo já não escondem de ninguém sua exasperação com o estilo de Jair Bolsonaro de governar – ou de não governar.

Em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que “tem havido uma falha dramática” do governo na relação com o Congresso e disse considerar que “o principal opositor dele (do governo) é ele mesmo”, pois “está falhando algo entre nós”. Esse “algo”, já ficou claro, é a atitude olímpica do presidente Bolsonaro diante do Congresso. Enquanto Paulo Guedes expunha publicamente os atropelos de seu chefe, Bolsonaro resistia a admitir qualquer erro. “Meu erro”, disse à TV Bandeirantes, “foi escolher um Ministério técnico, competente e independente” – sugerindo que está sendo boicotado pelo Congresso por não ter negociado cargos. Além disso, afirmou que governa respeitando, “acima dos colegas políticos, o povo brasileiro que me botou lá” – como se esses “colegas políticos” não fossem representantes do povo brasileiro tão legítimos quanto ele.

Bolsonaro foi eleito com a promessa de acabar com a relação fisiológica entre o Executivo e o Legislativo. De fato, essa era e continua a ser uma demanda de toda a sociedade. No entanto, o presidente parece entender que qualquer forma de negociação entre o Executivo e o Legislativo é necessariamente corrupta, transformando a política numa atividade criminosa por definição e todos os parlamentares em delinquentes até prova em contrário – essa “prova”, ao que parece, seria o voto a favor do governo em todas as matérias. Ora, o sr. Bolsonaro não foi eleito por unanimidade e muito menos tem desenvoltura suficiente para implementar o pensamento único no Brasil.

A sorte de Bolsonaro – melhor seria dizer, a sorte do Brasil – é que ainda há um clima favorável à reforma da Previdência no Congresso, porque predomina a opinião de que, sem essas mudanças, o País quebrará. Provavelmente não será a reforma pretendida pela equipe econômica, mas deverá ser suficiente para ao menos aplacar momentaneamente o pessimismo dos agentes econômicos e políticos a respeito do futuro imediato.

Contudo, apenas a reforma da Previdência não basta. Há muito mais a fazer, num país de infraestrutura muito precária, de educação quase sofrível, de saúde em pandarecos e com índices obscenos de violência. O País precisa de rumo, que deve ser dado pelo presidente. Até aqui, Bolsonaro não se mostrou nem remotamente à altura dessa tarefa, e não há razões para acreditar que algum dia estará.

Mais aposentados no campo do que agricultores - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/03
Há um número desproporcional de beneficiários do INSS em relação ao de trabalhadores rurais


É compreensível, mas não aceitável, que políticos, mesmo diante dos riscos de insolvência do próprio sistema de seguridade e, por consequência, do Tesouro, se oponham a algumas mudanças em nome da defesa dos mais “humildes”.

Sob esta chancela estão os atendidos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), um salário mínimo para qualquer pessoa com 65 anos ou mais que se declare de baixa renda e/ou seja deficiente, mesmo que jamais tenha contribuído para o INSS.

Trata-se de uma ajuda de cunho social, de necessidade indiscutível. Pela proposta original da reforma, a pessoa poderá, já aos 60 anos, começar a receber R$ 400 e chegar ao salário mínimo integral aos 70. Políticos se insurgem contra o que consideram uma desumanidade, mas não se preocupam com a lisura das informações concedidas ao INSS, no enquadramento do beneficiário no BPC. Este é outro exemplo da clássica visão brasileira de que dinheiro público não tem dono nem custo, e por isso pode ser gasto sem cuidado. Sequer admite-se que a possibilidade de garantir um salário mínimo aos 65 anos é poderoso incentivo a que uma faixa da população deixe de contribuir para o INSS a partir de certa idade. E também não se reconhece a injustiça social de se pagar aposentadoria de um salário a quem contribui ou não.

Outra incongruência é o ataque às mudanças na aposentadoria rural, também devido a preocupações ditas sociais. O tamanho dos números desta aposentadoria por si só justifica uma análise das despesas.

Os segurados no campo representam 32% dos benefícios do INSS e respondem por 52% do déficit. No ano passado, a previdência rural arrecadou R$10 bilhões, mas gastou R$ 124 bilhões. Para este ano, o governo projeta receita de R$ 11 bilhões e despesas de R$127 bilhões.

Ora, apenas estes números justificam que algo deva ser feito na arrecadação. Daí propor-se uma idade mínima, para se pedir o benefício, de 60 anos para homens e mulheres — hoje, 60 e 55 anos —, com o aumento do tempo de contribuição de 15 anos para 20, coerente com o sentido de toda a reforma da Previdência — mais tempo no mercado de trabalho, aumento da contribuição. Mantém-se o recolhimento de 1,7% sobre o valor da produção ou um mínimo de R$ 600 por ano.

Além da dimensão dos números, chamam a atenção as evidências de fraudes. Supõe-se que muitas cometidas no período em que foi possível obter aposentadoria com uma simples e pouco idônea declaração de um sindicato rural que atestava a condição de trabalhador no campo.

Há números reveladores, da Secretaria da Previdência: existem mais de 9 milhões que recebem aposentadorias e pensões rurais; só dos chamados aposentados especiais são 7,3 milhões, enquanto trabalhadores autodeclarados no campo são menos de 7 milhões. Mais aposentados do que trabalhadores deveria preocupar o Congresso.

sábado, março 30, 2019

A marcha da insensatez - MARCUS PESTANA

O Tempo - MG - 30/03

A tarefa número 1 do governo é fazer as reformas, mas...


Como todo bom médico, a análise política deve começar por um diagnóstico o mais próximo da realidade possível.

Nessa época de hiperativismo online, onde a reflexão é baixa, as discussões rasas e as opiniões expostas em 280 toques do Twitter, talvez seja mais importante fazer as perguntas essenciais, antes de avançar nas respostas.

Qual é o estado da arte do Brasil no início de 2019?

Como dizia Ulysses Guimarães, vamos a V. Excia. “os fatos”. A não ser que também se queira brigar com a realidade. O desemprego continua altíssimo. As desigualdades ainda são escandalosas. Crianças e jovens são formados num sistema educacional com graves problemas de qualidade. Os vazios assistenciais do SUS são enormes. O crime organizado estabelece ordem constitucional própria paralela. O crescimento econômico é pífio. A década de 2010 está perdida. O crescimento médio será de cerca de 1%. Os governos estão falidos, sufocados por grave crise fiscal. O IBOPE registra queda súbita de popularidade de Bolsonaro. Ufa... Precisa mais?

A clássica pergunta: O que fazer? A quem cabe dar uma guinada? Às instituições, ao sistema decisório, portanto, aos políticos.

“Mas os políticos não prestam”. “Não tem um que salve”. “Não queremos experiência, vivência, biografia, legado”. “Queremos uma nova política”. Estes não foram os bordões de 2018? Não há velha ou nova política, existe boa e má. E mais, fora da democracia não há salvação.

Mas o que a “nova política”, inaugurada em 2019, tem nos oferecido?

A temperatura da Marcha da Insensatez subiu muitos graus nos últimos dias. O Presidente não consegue descer do palanque e largar o celular. Cutucou Temer e Lula numa fala para empresários, portanto alfinetou MDB e PT. Ele e sua turma assestaram baterias em cima de Rodrigo Maia, que heroicamente tenta suprir o déficit de articulação política do governo. O ápice foi a espetada de Bolsonaro relacionando a derrota na votação da PEC que engessou ainda mais o orçamento – espetacular irresponsabilidade da Câmara para impulsionar a Nau dos Insensatos – com abalos pessoais por conta da prisão de seu quase sogro Moreira Franco. A resposta dura de Maia foi: “São 12 milhões de desempregados, 15 milhões vivendo abaixo da linha de pobreza e o presidente brincando de presidir o Brasil”. Será que o Presidente quer aprovar as reformas no Congresso ou não entende nada de articular base de apoio, após 30 anos de vida parlamentar?

Parou aí? Não. A ênfase nas comemorações do golpe de 1964, assunto já pacificado pela anistia, jogou mais lenha na fogueira. O núcleo de ministros discípulos de Olavo continua produzindo gestos inúteis a cada dia. Paulo Guedes, por quem torço radicalmente, acendeu os sinais amarelos do mercado ao dizer que só queria servir e que “se ninguém quiser o serviço, vai ser um prazer ter tentado”. Mas também errou ao caracterizar no Senado o governo FHC - do Plano Real, da responsabilidade fiscal e das privatizações – como socialista.

O Governo tem que governar, é óbvio. Mas não parece para Bolsonaro. A tarefa número um é fazer as reformas. Mas o próprio governo em uma semana cutucou MDB, PT, Rodrigo Maia e seus inúmeros liderados, PSDB, a “velha política” supostamente encastelada no Congresso.

A marcha da insensatez e sua nau têm dificultado enormemente aqueles que se esforçam para serem otimistas.

De sonhos e ilusões - JOÃO DOMINGOS

O Estado de S.Paulo - 30/03

Se o governo não ajudar, fica difícil aprovar qualquer proposta


Da quinta-feira para cá, quando se anunciou a decisão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de, junto com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e com o ministro da Economia, Paulo Guedes, tocar a reforma da Previdência sem esperar pelo presidente Jair Bolsonaro, ficou a impressão de que todos os problemas do País seriam resolvidos. A bolsa voltou a subir, o dólar a cair, um relator para o projeto da Previdência foi escolhido para dizer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara que a proposta é constitucional. Muita gente sorriu e o mundo pareceu mais feliz.

As coisas, no entanto, não são fáceis assim.

O afastamento do presidente da República das negociações da reforma da Previdência pode até ser o sonho de muitos. Principalmente porque as críticas ao comportamento de deputados, senadores e dirigentes partidários poderiam diminuir, visto que Bolsonaro parece ter compulsão por escrever nas redes sociais que eles fazem parte da velha política. Isso irrita que só, embora não haja bem uma definição para o termo. Como também não há para a nova política pregada por Bolsonaro durante a campanha. Tudo não passa de marketing. Quer negociar com o governo? É da velha política, embora negociar não carregue qualquer tipo de desvio e seja próprio da política. O crime é o roubo, a corrupção, o desvio de dinheiro, o caixa 2, e por aí vai. Se o presidente souber de alguma coisa de errado com algum auxiliar, deve demitir o suspeito imediatamente, apoiar a abertura de investigação, esperar o processo e o julgamento e aplaudir as penas.

Pois bem. O afastamento de Bolsonaro das negociações da reforma pode até ser um sonho. Mas, dificilmente, ocorrerá. Em primeiro lugar, porque a reforma da Previdência faz parte do programa de governo e é vista como o principal projeto da atual administração, aquele que devolverá a confiança dos investidores no País, reduzirá desigualdades e dará os primeiros passos para o equilíbrio das contas públicas. A partir daí, gostam de dizer alguns, como o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que o País entrará num circuito virtuoso de crescimento econômico e geração de empregos.

Qual presidente da República vai abrir mão de um programa como este para delegar tudo a seu ministro da Fazenda e aos dois dirigentes das Casas do Congresso? Difícil acreditar que vai. Se o fizer, entregará a chefia do governo a Maia, Alcolumbre e Guedes. Se transformará numa espécie de rainha da Inglaterra e passará a cuidar de viagens e cerimônias. E ainda ficará com a fama de que o governo só entrou nos eixos quando se afastou das decisões mais importantes.

É possível até que na campanha Bolsonaro tenha pensado assim. Questões da economia, como ele mesmo dizia, por entender pouco do assunto, estavam todas elas com Paulo Guedes. A ele, cabia a parte mais divertida, que era criticar os governos do PT, chamá-los de corruptos, abraçar a pauta conservadora nos costumes, defender a flexibilização da posse de armas e dizer que não faria a velha política caso fosse eleito. Tudo o que seu eleitor queria ouvir. Deu certo.

Acontece que um governo é muito mais do que isso. Não é possível apenas pegar um projeto, entregá-lo ao Congresso e dizer: o filho aqui está, agora são vocês, deputados e senadores, que dele devem cuidar. Eu vou tocar minha vida. Se o governo não der uma ajuda, se não oferecer instrumentos para a conquista dos votos, ficará muito difícil aprovar qualquer projeto. Cada um dos 594 congressistas sabe que o dono da caneta é o presidente da República, não o trio Alcolumbre, Guedes e Maia. É nesta caneta que eles estão de olho.

Presidencialismo é de coalizão - SÉRGIO ABRANCHES

O GLOBO - 30/03

É uma negociação, mas não precisa ser um troca-troca espúrio


A confusão sobre o presidencialismo de coalizão tem sido enorme. O centro das incompreensões tem sido as coalizões. Presidencialismo de coalizão é o nosso modelo político desde 1946. Foi quando o Brasil optou pelo presidencialismo, uma Federação com muitos estados, a eleição de deputados pelo voto proporcional e de mesmo número de senadores por estado, pelo voto majoritário, em um sistema aberto a muitos partidos políticos. Essa combinação de elementos institucionais tornou objetivamente impossível aos presidentes fazerem a maioria no Congresso com seus partidos. Eles precisam de outros partidos para alcançar a maioria e governar. Precisam de uma coalizão multipartidária. Daí, presidencialismo de coalizão.

Presidentes têm, em geral, a capacidade de negociar uma coalizão majoritária, alavancados pela vitória eleitoral. Não é, necessariamente, cooptação, conchavo, toma lá dá cá, nem corrupção. Podem negociar essas alianças com base em programas, princípios e valores. Se um presidente fez uma campanha com um projeto claro e viável de governo, ele pode usá-lo como base dessa negociação.

A Constituição de 1988 remodelou o presidencialismo de coalizão e deu ao presidente mais poderes para controlar a agenda de políticas públicas. Mas o Congresso multipartidário manteve a capacidade de bloquear a agenda presidencial e concentrou poderes de coordenação política na presidência das Mesas e nas lideranças partidárias. A principal força do Congresso vem do fato de praticamente todas as políticas públicas precisarem de leis para serem instituídas. As políticas mais relevantes, como a Previdência, foram inscritas na Constituição, requerendo maioria de três quintos (60%) dos votos, para regulá-las ou modificá-las.

Presidentes precisam, portanto, de maioria ampla e coesa para implantar políticas públicas novas, mudar as existentes, ou fazer reformas. Negociar uma coalizão majoritária não é escolha, é um imperativo. Um presidente não governa sem ela, não aprova suas medidas no Congresso, e o governo fica paralisado. Além disso, arrisca-se a ver o Legislativo aprovar medidas contrárias à sua agenda, como aconteceu na Câmara, com as emendas impositivas. Jânio Quadros e Fernando Collor não negociaram coalizões majoritárias e não governaram.

Mas presidentes não precisam trocar favores com o Congresso, distribuir benesses ilegítimas. Podem negociar a pauta e os princípios para formulação de políticas e, legitimamente, compartilhar o poder, nomeando ministros qualificados, indicados pelos partidos da coalizão, selecionados por critérios fixados pelo Executivo. A participação no governo consolida o compromisso dos partidos com as políticas acertadas.

Presidentes têm três recursos básicos para negociar uma coalizão legítima: a força do voto popular nacional que os elegeu, a liderança política e a persuasão. Com esses três recursos na mão, eles e seus líderes têm condições de conduzir a articulação política para formar a coalizão. É uma negociação, mas não precisa ser um troca-troca espúrio. Negociar é conversar, acertar pontos em comum e compartilhar o poder governamental, sem abrir mão da primazia presidencial.

Qual o problema hoje? Bolsonaro deixou o seu capital eleitoral se dissipar, insistindo em miudezas, e não apresentou uma agenda clara e relevante, capaz de unir o país. Fixou-se em questões menores, que dividem muito. Não demonstrou ter liderança. Não se empenhou a favor das propostas de seus ministros da Economia, para a reforma da Previdência, e da Justiça, para a legislação anticorrupção. Descartou indicações políticas, mas nomeou ministros visivelmente ineptos. Preferiu hostilizar o Congresso, a dialogar politicamente. O resultado é paralisia decisória e perigoso impasse político. A trégua recente é uma pausa, não o fim dos atritos.

Sérgio Abranches é cientista político

Battisti, a confissão - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 30/03

Bolsonaro surfa na onda de erro que reforça o discurso dos inimigos dos direitos humanos

"Agora, ele confessa o crime. Me sinto enganado por ele. Admito o erro e peço desculpas por isso." Pedro Abramovay, secretário nacional de Justiça na gestão Tarso Genro, durante o governo Lula, declarou-se "decepcionado" com a confissão de Cesare Battisti. Suas desculpas devem ser postas em arquivo separado das não desculpas do próprio Genro e do ex-senador Eduardo Suplicy. Mas os três estão errados, antes e agora, num nível mais profundo. Bolsonaro surfa na onda desse erro fundamental, que confere verossimilhança ao discurso dos inimigos dos direitos humanos.

Suplicy acreditava na palavra do Battisti de ontem, mas não acredita na do Battisti de hoje: "Eu ainda quero saber qual foi o tipo de ameaça, de proposição feita a Battisti. Caso ele não fizesse essa confissão, o que aconteceria?". Fantástico: o homem falava a verdade quando se declarava inocente, mas mente ao confessar a culpa. A "verdade" de Battisti era que o Estado italiano forjara provas contra ele. Já a "mentira" de Battisti deriva de ameaças do Estado italiano a um preso que cumpre pena perpétua.

Genro não se baseava na palavra do militante, mas no seu próprio parecer sobre o processo judicial italiano: "Não havia prova no processo, que li inteiro". Contudo, como Suplicy, aponta um dedo acusador na direção do Estado italiano: "A Procuradoria precisou da confissão dele para confirmar as acusações. Battisti pode estar fazendo uma confissão combinada com uma transação com o promotor."

De fato, ambos estão dizendo que a Itália era —e ainda é— uma falsa democracia. A acusação implícita reproduz a ideologia do "grupúsculo" extremista de Battisti. Nos textos destinados a justificar sua estratégia terrorista, o Proletários Armados pelo Comunismo —assim como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão— invocava a necessidade de desmascarar as democracias ocidentais, expondo suas almas de Estados policiais. A esquerda brasileira jamais conseguiu se desvencilhar dessa desconfiança essencial na democracia —que, aliás, explica as resistências a condenar nitidamente as ditaduras em Cuba e na Venezuela.

Abramovay segue outro rumo, mas seu erro tem a mesma raiz. Enquanto Genro sugere que a confissão é prova espúria dos crimes de Battisti, Abramovay imagina que ela constitui sua prova legítima. No Estado democrático de Direito, porém, não se admitem confissões como provas conclusivas. A comprovação legal aceitável deve estar nas evidências reunidas pelo processo judicial. Essa regra de ouro, porém, é ignorada tanto pelo que dá crédito à confissão de Battisti (Abramovay) quanto pelos que não dão (Genro e Suplicy). No fundo, os três continuam a desprezar os quatro tribunais que analisaram o caso Battisti.

Aí está o núcleo do problema. Dois tribunais italianos sentenciaram Battisti. Depois, um tribunal francês de apelação autorizou sua extradição e a Corte Europeia de Direitos Humanos confirmou a sentença. O Brasil do PT comportou-se como instância revisora de todos eles. Suplicy, defensor parlamentar do italiano, Genro e Abramovay, autoridades responsáveis pela concessão de asilo, e Lula, chefe de Estado que confirmou o asilo, colocaram as suas convicções políticas acima das decisões dos sistemas judiciais da Itália, da França e da União Europeia.

Atos e palavras têm consequências. A confissão oferece a Bolsonaro e seu cortejo de brucutus uma oportunidade inigualável para identificar a proteção dos direitos humanos à defesa de terroristas e homicidas. Depois da desmoralização do asilo concedido a Battisti, torna-se mais difícil argumentar pela concessão de asilo a dissidentes pacíficos perseguidos por ditaduras de direita ou de esquerda.

Genro, ao menos, não liga para isso: por um ato dele, em 2007, o Brasil deportou a Cuba os dois boxeadores que buscavam asilo no Brasil.

Prática e teoria - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 30/03

A disputa entre o Congresso e o Governo pelo controle do Orçamento tornou mais atual um debate acadêmico provocado pelo economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real e visiting scholar de Columbia. A idéia básica de seus últimos textos, o mais recente deles intitulado “Consenso e Contrassenso: déficit, dívida previdência”, é que juros mais altos que o crescimento do PIB são os verdadeiros causadores da estagnação da economia brasileira, e não a expansão da moeda.

Lara Resende considera que um país que emite sua própria moeda não tem restrições financeiras. Essa tese, num momento em que se busca o controle de gastos, com a reforma da Previdência e outras medidas, para o equilíbrio fiscal do país, condição tida como necessária para o crescimento e atrair investimentos, é considerada por muitos, no mínimo, inconveniente. André rebate as críticas com uma declaração de fé: "Eu não sou político, sou um intelectual que pensa pela própria cabeça".

Nesta semana, em debate na Casa do Saber promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Lara Resende e outros dois colegas seus também pais do Real, o ex-presidente do BNDES Edmar Bacha e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, debateram a tese, discordaram na teoria e na prática, Bacha com mais ênfase, Malan com mais diplomacia.

Lara Resende defende que a carga tributária de 36% asfixia a economia, e que os gastos dos Estados e Municípios não podem ser punidos simplesmente: “Isso destrói o país, destrói a infraestrutura, destrói a segurança, destrói a educação, e o moral da população”. Para ele, aumentar a demanda não cria inflação, num país em que a capacidade ociosa é de 40% e a taxa de desemprego de 12,5%.

Lara Resende enfatizou em seu artigo que “a preocupação dos formuladores de políticas não deve estar no financiamento das despesas públicas, mas sim na qualidade destas despesas”. A questão não seria apenas “quanto o governo gasta e tributa, mas, sobretudo, como gasta e tributa”. Mas destacou o que chama de "restrição da realidade":

“O governo pode gastar mal, inflando os gastos com pessoal, criando uma burocracia incompetente e corporativista, subsidiando empresas improdutivas, mas, ao menos em tese, pode também gastar bem, investindo de forma competente, na educação, na saúde, na segurança e na infraestrutura”.

Por isso, diz ele, é importante que se faça análise cuidadosa do orçamento do governo, e submeter à sociedade as opções, tanto dos impostos a serem cobrados, como dos gastos a serem feitos. Música para os ouvidos de deputados "expansionistas" e problema para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Já Edmar Bacha, que preside a Casa das Garças no Rio, um dos mais importantes think tank do país, chamou a atenção para o fato de que a taxa tendencial de crescimento do PIB dos países desenvolvidos está em torno de 2% ao ano, enquanto a taxa real de juros sobre a dívida pública desses países se situa em 0,5%. Nesse caso, se não houver déficit primário, o déficit do governo, e portanto, o aumento da dívida pública para financiar esse déficit, se deverá somente aos juros pagos sobre a própria dívida.

Como a taxa de juros é menor que o crescimento do PIB, ao longo do tempo a relação entre a dívida e o PIB será decrescente. Os países desenvolvidos podem, portanto, ressaltou Bacha, até certo ponto gastar mais do que arrecadam, sem que isso implique aumento da relação entre a dívida pública e o PIB.

Mas lamentou: “Esse não é, infelizmente, o caso do Brasil. A taxa de crescimento do PIB nos últimos dois anos foi de apenas 1% e as projeções para os próximos anos não superam 2,5%. Enquanto isso, a taxa real de juros sobre a dívida interna do Tesouro Nacional se situou em 5,4% no ano passado”.

Bacha reafirmou que, por isso, “é importante alcançar um superávit primário nas contas do governo, para evitar que a relação entre dívida e PIB, que já é alta para padrões de países emergentes, continue a crescer indefinidamente”.

O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan chamou a atenção para a necessidade de avaliação da eficácia dos gastos públicos, que considera distorcidos em sua composição, contra o investimento, a favor do consumo. Malan disse que as teses de Lara Resende, embora importantes de serem debatidas, não se coadunam com a situação de países sem estabilidade institucional e com problemas estruturais de finanças públicas, como o nosso.

Sem vontade para privatizar - ADRIANA FERNANDES

O Estado de S.Paulo - 30/03


Ministros abraçaram suas estatais e estão colocando obstáculos para privatização



Não é só a reforma da Previdência que enfrenta dificuldades para ganhar tração no governo Jair Bolsonaro. O plano de privatização do ministro da Economia, Paulo Guedes, está fazendo água.

O programa de venda e liquidação das estatais ineficientes - central na política econômica traçada pelo ultraliberal Paulo Guedes - não está no DNA do governo.

O governo tem 134 empresas estatais nos mais diversos setores - 18 delas dão prejuízo anual de R$ 15 bilhões aos cofres do Tesouro.

Mas os ministros de Bolsonaro abraçaram suas estatais e estão colocando todo tipo de obstáculo para privatizar ou fechar essas empresas. A maioria deles já foi capturada pelas corporações e pelo poder de distribuição de cargos que as estatais garantem, mesmo as menores. Não largam o osso de jeito nenhum.

A equipe econômica, que colocou a privatização como uma meta necessária para garantir recursos suficientes para a redução da dívida pública, entrou em parafuso.

O desânimo é muito maior nesse campo do que com os sobressaltos recentes da reforma da Previdência - que, se espera, entrou nos trilhos depois do acordo de paz fechado entre Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Antes mesmo do início do governo Jair Bolsonaro, já havia no time de Paulo Guedes a expectativa de encontrar resistências para avançar com o programa. Mas não de forma tão rápida, nem em nível hierárquico tão elevado na Esplanada dos Ministérios. O governo nem mesmo completou seus 100 primeiros dias.

O retrato desse desânimo foi apresentado pelo empresário escolhido a dedo por Guedes para tocar o programa, anunciado com pompa e circunstância: Salim Mattar.

Em entrevista à revista Veja, o secretário de Desestatização do Ministério da Economia se diz frustrado. Ele foi corajoso ao revelar as dificuldades em vender as estatais e admitir que as resistências contra as privatizações partem dos próprios ministros.

Mattar disparou farpas diretas para o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, um dos mais resistentes. Contou como exemplo do pepino que tem nas mãos o caso de uma estatal que deveria produzir chips para monitorar os rebanhos. “O tal chip, que é instalado na orelha do boi, nem é produzido no Brasil”, criticou.

O desabafo do secretário é revelador. Não adianta mudar a cúpula do governo. É preciso mudar também “corações e mentes”.

Bolsonaro e muitos da sua equipe não mudaram a forma de pensar. Não houve um convencimento e faltou uma ordem clara do presidente para fechar empresas que não têm valor e só sangram os recursos públicos.

Pelo cenário atual, é provável que se chegue ao fim dos quatro anos de mandato de Bolsonaro sem que o governo tenha privatizado muita coisa. Ou pior: com a venda restrita a ativos mais rentáveis ligados aos bancos públicos, mantendo as empresas ineficientes e com custo elevado para o Tesouro.

Investidores já perceberam que o programa de privatizações das empresas está sem rumo - inclusive o da Eletrobrás, que a equipe econômica promete para este ano, mas que continua enfrentando grande resistência no governo e no Congresso. É bom lembrar que, no Fórum Econômico Mundial de Davos, Guedes prometeu conseguir US$ 20 bilhões ou até mais neste ano com privatizações para ajudar a reduzir a dívida bruta.

Se a política do governo definida na campanha eleitoral é o enxugamento da máquina, cabe ao presidente Jair Bolsonaro, e ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, dar uma orientação clara para os ministros que estão barrando as privatizações.

Empresário de sucesso, Salim Mattar pode desistir da empreitada se perceber que não vai conseguir fazer nada.

Economia aumenta pressão sobre os políticos - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/03

Desemprego e baixa confiança dos empresários atestam influência negativa da falta de reformas


A divulgação de indicadores econômicos é periódica e ajuda na calibragem das análises de conjuntura, seja devido a novas informações que auxiliam a entender melhor a evolução recente de cada setor, seja para ajustar projeções. Os dados que têm saído dos institutos de pesquisa ultimamente também deveriam atrair a atenção dos políticos e governantes em geral, que têm perdido tempo em conflitos secundários — criados por eles mesmos —, em vez de acelerar o início do processo de debates e de aprovação das reformas.

A economia, depois da recessão grave do biênio 2015/16 (mais de 7%), ensaiou alguma recuperação, mas tão fraca que o PIB em 2107 e 18 cresceu frustrante 1% em cada período. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou ontem dados sobre o desemprego no trimestre de dezembro a fevereiro, com mais uma confirmação de que a economia não cresce, rasteja.

É fato que, sazonalmente, fevereiro constitui um mês negativo para o mercado de trabalho, passado o período das festas de fim de ano, quando cresce a oferta de vagas de empregos eventuais e informais, depois geralmente fechadas. Porém, é grave a elevação da taxa de desemprego no trimestre dezembro/fevereiro para 12,4% (nos três meses anteriores atingiu 11,6%), o que significa 13,1 milhões de pessoas sem fonte estável de renda. Porque acentua uma situação já bastante degradada.

Mesmo débil, o ensaio de reação da economia deve ter levado muita gente a novamente tentar reentrar no mercado de trabalho, voltando assim a ser contabilizada como “desempregada”. Este efeito estatístico, no entanto, não ofusca a tragédia macroeconômica e social. Ao contrário.

Já outra pesquisa, do Índice de Confiança na Indústria (ICI), da Fundação Getulio Vargas, feita neste mês de março, referenda a virtual estagnação refletida no desemprego, por meio da aferição das expectativas dos empresários. Os dois levantamentos se confirmam entre si. O ICI de 92,7, apurado em março, caiu 1,8 ponto, tendo retrocedido em 14 dos 19 subsetores avaliados. Foi na mesma direção o Índice de Expectativas (IE), com retração igual, chegando a 97,4 pontos.

Confiança em baixa e expectativa pessimista diante do futuro não fazem mesmo qualquer empresa investir e contratar mão de obra. Estes são aspectos que devem, ou deveriam, interessar aos políticos. Vive-se um daqueles momentos em que os negócios — e, portanto, a geração de empregos e renda — têm uma estreita dependência do que acontece nas esferas do poder. No caso, Executivo e Congresso. Infelizmente, até quarta-feira, em choque.

Os conflitos como os observados entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foram entendidos de forma correta: sem o afinamento entre Planalto e Congresso, a reforma crucial da Previdência, a primeira delas, não decolará. E assim o Estado brasileiro continuará na trajetória da falência fiscal, com todos os seus desdobramentos dramáticos: juros nas nuvens, recessão, desemprego bem maior que o atual etc.

A expectativa é que, depois dos 100 primeiros dias de governo, todos tenham entendido o que está em jogo nas reformas, e persista o clima de distensão com que a semana chega ao fim. Qualquer dúvida, basta consultar essas pesquisas.

sexta-feira, março 29, 2019

Acreditar - CARLOS ANDREAZZA

BLOG JOVEM PAN/UOL 29/03
Então, de repente, depois de mais de semana de estupidez, de agressões à democracia representativa, de afrontas ao interesse nacional: temos a paz.

Como não pensar em milagre?

Depois de dias e dias em que o presidente da República e o presidente da Câmara, numa peleja de rara irresponsabilidade, trocaram investimentos na miséria institucional, no desequilíbrio entre poderes da República, na crispação de uma agenda reformista, então, de súbito: temos a paz.

Oh!

Depois de o chefe do Executivo haver dado vazão à sua profunda incompreensão acerca do que seja atividade política, desqualificando mesmo o Parlamento de que fez parte longamente, apregoado – com larga repercussão nas milícias digitais do bolsonarismo – o Congresso como lugar de chantagistas, e de o comandante de uma das casas do Legislativo ter simplesmente respondido que o presidente da República deveria parar de brincar, sair de rede social e enfim trabalhar, ora, ora, eis o que temos, de um dia para o outro: a paz.

Quem acredita nisso?

Quem acredita no armistício – no encaixe no trilho virtuoso das relações institucionais – a partir de um governo em cuja essência está a guerra, o conflito, a beligerância, a necessidade fundamental (a que mantém mobilizada a tropa) de ter sempre inimigos?

Quem acredita na capacidade de pacificação – aquela duradoura, com corpo para liderar, para mitigar crises, para convencer e conquistar, aquela que planta condições para voos que não de galinha – de um governo cuja mentalidade revolucionária o faz operar como oposição?

Quem acredita na durabilidade dessa paz se a fé que governa é a do confronto?

Essa é natureza de uma variável que – para além da pobreza política do Planalto e do que poderá ainda armar o ativismo corporativo de quem acusa e condena – precisa ser considerada por quem calcula a linha de chegada da reforma da Previdência.

Porque a questão não é se será ou não aprovada. Alguma será. Há consenso para tanto ainda que governo não houvesse. Alguma será. Mas qual? E a ser recebida como? Não nos surpreendamos se for festejada qualquer que seja. A incompetência, com seu caráter rebaixador, não raro cria condições para que se celebre o pouco como dádiva. Nós nos ajustamos. Para quem viu a zorra e vislumbrou o nada, dois ou três anos de fôlego é tanto voo de galinha quanto… voo. Ganha-se dinheiro. Empurra-se adiante.

Nós nos ajustamos porque cínicos. Se o voo for esse mesmo, reforma deformada mas com autonomia para alguns aninhos (aquilo desejado por Bolsonaro), reelege-se o presidente ou se unge um escolhido. Que seja. Teremos poupado para que os governantes nos gastem. No Brasil: é assim.

A pergunta que deve ser feita, porém, é anterior – com sorte projetada para o final deste ano: qual a agenda para depois de aprovada a Previdência? Qual o projeto?

Qual a ideia? Ou não precisa de ideia? Somos cínicos assim – admitamos: aprovado o voo de galinha, de repente alguma tração na economia, não reclamaremos de a molecada se encher de pirulitos para brincar no parquinho ideológico.

o presidente aprendiz do Brasil - The Economist / O Estado de S.Paulo

The Economist / O Estado de S.Paulo - 29/03
A menos que ele pare de provocar e aprenda a governar, o seu mandato no Palácio do Planalto pode ser curto



Uma das principais razões pelas quais Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no ano passado foi o fato de prometer movimentar de novo a economia depois de quatro anos de recessão. Ao nomear Paulo Guedes, um defensor do livre mercado, como seu superministro da Economia, ele conquistou o apoio do mundo empresarial e financeiro. Muitos imaginavam que a chegada de Bolsonaro à Presidência por si só traria nova vida para a economia. Mas, depois de três meses, ela continua moribunda como sempre. Os investidores começam a perceber que Guedes tem uma árdua tarefa de conseguir aprovar no Congresso a reforma da Previdência, crucial para a saúde fiscal do Brasil. E o próprio Bolsonaro não vem colaborando.

O déficit fiscal de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) tem um enorme peso sobre a economia, significando que os juros para os tomadores de empréstimo privados serão mais altos do que seriam do contrário. As pensões respondem por um terço do total das despesas públicas e são uma das razões pelas quais o Estado gasta pouco na infraestrutura fragilizada. O projeto de reforma do governo enviado ao Congresso no mês passado estabelece uma idade mínima para a aposentadoria, eleva as contribuições e preenche lacunas, com uma previsão de economias de R$ 1,2 trilhão durante dez anos. O déficit da Previdência foi de R$ 241 bilhões no ano passado. A reforma da Previdência, por si só, não fará com que o Brasil retome um crescimento econômico robusto. Serão necessárias reformas fiscais e outras medidas para aumentar a competitividade. Mas ela se tornou um objeto sagrado.

Bolsonaro está numa situação privilegiada porque, depois de dois anos de debate público e político, a reforma da Previdência hoje é menos impopular do que antes. Mas não é necessariamente uma proposta que conquista votos. E Bolsonaro não faz campanha para isso. “Toda a discussão sobre a reforma da Previdência é algo que os brasileiros gostariam de não ter”, afirma Monica de Bolle, economista brasileira do Peterson Institute for Internacional Economics.

A aprovação, assim, exige liderança do topo. Que está ausente. Em sua campanha, Bolsonaro denunciou a “velha política” corrupta do “toma lá, dá cá” no Congresso. Mas ele não possui uma estratégia alternativa para controlar o Legislativo. Entrou desnecessariamente em confronto com alguns aliados, incluindo Rodrigo Maia, o poderoso presidente da Câmara. O padrasto da mulher de Maia, Wellington Moreira Franco, um ex-ministro, foi preso em 21 de março junto com o ex-presidente Michel Temer, por suspeitas de suborno, o que ambos negam. O que levou a comentários feitos pelos filhos de Bolsonaro, que são assessores próximos do presidente, e que Maia considerou como um ataque pessoal. Sua resposta foi que ele não marcaria votações sobre a reforma da Previdência para um governo que chamou de “deserto de ideias”. As autoridades esta semana tentaram apaziguar Maia. Mas a reforma da Previdência deve sofrer atrasos e diluição.

O grande problema é que Bolsonaro ainda tem de mostrar que entende a sua nova função. Ele dissipou capital político, por exemplo, exortando as Forças Armadas a comemorarem o aniversário em 31 de março do golpe militar de 1964. Seu governo é de uma “confusão monumental”, afirmou Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). À parte a sua equipe econômica, seu governo é uma coleção de generais aposentados, políticos de médio escalão, protestantes evangélicos, um filósofo antes obscuro chamado Olavo de Carvalho. “Ninguém sabe para onde ele vai, qual o curso que está tomando”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Ele avança, depois recua, o tempo todo.”

Se o governo tem um elemento-chave, trata-se do general Hamilton Mourão, o vice-presidente, que tem tentado impor alguma disciplina política. Mas, com frequência, entra em atrito com a família Bolsonaro. Olavo de Carvalho o chamou de “idiota” e afirmou que, se as coisas continuarem como estão por mais seis meses, “tudo estará acabado”.

Embora de modo diferente, outros começam a pensar o mesmo. E ainda por cima, estão surgindo evidências de que a família Bolsonaro está ligada a membros de um grupo criminoso de ex-policiais do Rio de Janeiro acusado do assassinato da ativista Marielle Franco, o que eles negam.

Dois dos quatro presidentes eleitos anteriormente no Brasil sofreram impeachment porque, como afirmou Fernando Henrique Cardoso, “não foram mais capazes de governar”. Por mais que odeiem Bolsonaro, os democratas não devem desejar que ele não chegue ao fim do seu mandato. Ainda é o início. Mas sua Presidência já enfrenta um teste crucial. “Temos duas alternativas”, disse seu porta-voz esta semana. “Aprovar a reforma da Previdência ou afundarmos num poço sem fundo.” Se o seu chefe pelo menos fosse assim claro.

Tradução: Terezinha Martino

Negociar não é dobrar-se - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 29/03

Diálogo, negociação e articulação política são corriqueiros e necessários em uma democracia, e quanto mais complexo e desafiador um tema, mais se exigirá dos governantes



Desde que Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional sua proposta de reforma da previdência, vem crescendo em diversos setores da política e da sociedade brasileira, mesmo entre aqueles que apoiaram seu nome nas eleições de outubro, a percepção de que o governo carece de uma estratégia de coordenação e negociação com o Legislativo. Por outro lado, apoiadores mais entusiasmados de Bolsonaro e cidadãos descontentes com as práticas escandalosas de corrupção reveladas nos últimos anos têm insistido na ideia de que qualquer articulação com o Congresso não se poderia dar senão como negociata de interesses escusos e antirrepublicanos.

Talvez nem sempre se perceba a relevância da negociação, mas ela é tão mais valiosa e necessária nas democracias quanto mais desafiador o tema que está sobre a mesa. É preciso ter clareza: a reforma da previdência, embora urgente para qualquer conhecedor razoável do tema, é um dos temas mais complexos no debate público de qualquer democracia e, também, um dos que mais despertam paixões políticas e contrariam interesses setoriais e corporativos. Mesmo cidadãos bem informados podem ter dúvidas sinceras – senão sobre a necessidade geral da reforma, então sobre pontos específicos do projeto. Entre deputados e senadores, a realidade não é diferente: a sensação no Congresso é de que nunca houve momento mais propício para se aprovar uma reforma, mas há dúvidas entre os representantes populares.


Um parlamentar deve votar de acordo com sua consciência e o bem comum
Imagine-se o leitor um deputado de boa-fé que tenha dúvidas sobre a reforma proposta no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Será razoável antecipar o início do pagamento do BPC para os 60 anos de idade – hoje ele é pago para idosos com mais de 65 anos em situação de extrema pobreza –, mas diminuir seu valor do atual salário mínimo para os iniciais R$ 400,00, que aumentariam progressivamente conforme a idade do beneficiado? Se o ponto referente ao BPC for retirado da reforma, quanto deixará de ser economizado anualmente? Uma eventual perda nessa economia não poderia ser compensada por uma reforma mais agressiva em algum outro ponto?

Um parlamentar que tenha essas dúvidas precisa ter, primeiro, informações claras sobre as consequências de seu voto. Para quem ele deveria endereçar essas dúvidas? Deveria tentar agendar diretamente com o ministro da Economia, com alguém da equipe econômica ou procuraria o líder do governo na Câmara, no Senado ou no Congresso? Nada disso está claro até agora – nem esses agentes todos, que em diferentes medidas representam o mesmo governo, estão falando a mesma língua. Se estiverem, fato é que não é essa a percepção dos parlamentares no dia a dia do Congresso.

Mesmo depois de conseguir as informações, o parlamentar teria de decidir o que fazer com ela. Imagine que ele esteja convencido sobre a necessidade de aprovação da proposta atual do governo sobre o BPC, mas sua base eleitoral não concorde com a mudança. Um parlamentar deve votar de acordo com sua consciência e o bem comum, mas a sensibilidade aos eleitores é também inescapável e saudável nas democracias. Em uma situação dessas, o parlamentar vai procurar os colegas. Seu partido vai fechar questão? E os demais partidos? Os parlamentares do partido do presidente da República eventualmente comprarão esse desgaste com as bases eleitorais para apoiar esse ponto da reforma? O governo estaria disposto a modificar esse ponto se outra questão polêmica da reforma – digamos a aposentadoria rural – fosse apoiada? Da resposta a todas essas perguntas dependerá o voto do parlamentar.

Tudo isso é negociação legítima e necessária em uma democracia, em que os poderes são divididos e, por isso mesmo, devem dialogar e manter a harmonia entre si. Mas, para que essa negociação possa ser proveitosa, é preciso coordenação por parte do governo: uma estratégia clara, com líderes bem definidos e munidos de todas as informações técnicas e conhecimento de todos os compromissos políticos que o governo estaria disposto a assumir em prol da aprovação deste ou daquele ponto. Do contrário, parece claro que qualquer negociação estará fadada ao fracasso: se um deputado recebe uma sinalização do governo, e outro recebe a sinalização contrária, a informação perde toda a credibilidade e nenhum dos parlamentares estará seguro para dar seu voto na proposta do governo.

Por tudo isso, diálogo, negociação e articulação política são corriqueiros e necessários em uma democracia. Quanto mais complexo e desafiador um tema, mais se exigirá dos governantes uma capacidade de coordenação inteligente desse processo, uma liderança inspiradora que não fomente a discórdia, mas busque terrenos comuns, e uma comunicação arrojada que motive o alinhamento dos atores políticos na direção das mudanças que se vislumbram como fundamentais. Se este não for o caminho, todas as sociedades estariam presas a uma alternativa macabra: ou a total inação, ou a imposição unilateral da vontade de um grupo.

Quando há, portanto, uma comunicação engajada, transparente e bem feita, diminui substancialmente a chance de preponderarem os interesses escusos. Mas suponhamos apenas por um momento, como pensa parte substancial da população brasileira, que a maioria dos parlamentares atue motivada por interesses sinistros e inconfessáveis. Nesse caso, a coordenação política deveria ser eliminada? Muito pelo contrário, porque é na clareza e na transparência que se permitem identificar as condutas torpes. Na balbúrdia da falta de transparência e de coordenação é que se torna mais difícil e custoso distinguir as condutas republicanas daquelas indecorosas, imorais e mesmo ilegais. Isso é algo que toda a sociedade precisa reconhecer e que melhorará consideravelmente o processo político brasileiro.

Ainda que nem todas as partes tenham essa clareza, o fato é que há um novo Congresso eleito, e com uma boa taxa de renovação, e um novo Executivo. Há espaço para um aprendizado paulatino na interação entre os agentes políticos e para que a sociedade aprenda também e se engaje de forma mais madura nesse processo. Aprender a negociar não é dobrar-se, mas sim crescer na virtude democrática. Mesmo que seja um aprendizado lento, com tropeços e ruídos, é preciso que os passos sejam dados na direção certa: a do diálogo. Essa é uma caminhada que, no fundo, todos os atores políticos, incluindo os cidadãos, devem fazer juntos.

Bolsonaro não deve dizer ‘desta água não beberei’, o segredo é ferver antes - JOSIAS DE SOUZA

PORTAL UOL 29/03

O vocábulo governabilidade tornou-se uma assombração para Jair Bolsonaro. Nos seus pesadelos, hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas da política se juntam para apoiar o seu governo. Depois, mandam pendurar uma tabuleta na porta: "Base Aliada". Para o capitão, já ficou demonstrado que esse tipo de arranjo passou a dar cadeia no Brasil. Daí dizer que não lhe passa pela cabeça desperdiçar os seus dias jogando dominó com Lula e Temer atrás das grades.

Resta responder: como governar? Ao atravessar na traqueia de Paulo Guedes as emendas de bancada impositivas, a banda fisiológica da Câmara exibiu sua musculatura. Com seus interesses maldisfarçados atrás do apoio a Rodrigo Maia na troca de caneladas do presidente da Câmara com a família Bolsonaro, a turma do balcão está assanhada. Respira-se em certas bancadas uma atmosfera conhecida.

Os partidos pedem, eles reivindicam, eles exigem. Desatendidos, eles adotam a velha tática do 'levanta-que-eu-corto'. Recusando-se a saciar os apetites, Bolsonaro receberá novos trocos. Quando o capitão der por si, os votos do centrão estarão gritando 'NÃO' no painel eletrônico da Câmara, quiçá do Senado. Vem aí a votação da medida provisória que reestruturou o organograma do governo. Ela se presta às piores maldades. Por exemplo: a redução do número de ministérios de 22 para 15.

Não é que Bolsonaro esteja se recusando a encostar o estômago no balcão. O problema é que a mercadoria que ele ofereceu —um conta-gotas de emendas orçamentárias e cargos federais mixurucas nos Estados— não saciou os apetites de hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas. A fome aumenta na proporção direta da diminuição dos índices de popularidade do presidente.

Para complicar, Bolsonaro não é visto no zoológico como avis rara. Ao contrário. Os ministros suspeitos, o laranjal do PSL, as encrencas do primogênito Flávio Bolsonaro e o cheque do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro levam a ala gulosa do Legislativo a chamar o presidente de "um dos nossos".

Num cenário assim, ou Bolsonaro negocia ou a reforma da Previdência pode virar suco. A história recente demonstra que ignorar o pedaço fisiológico do Congresso pode não ser um bom negócio. Bem alimentada, essa turma fornece estabilidade congressual. Submetida a dietas forçadas, desestabiliza o que vê pela frente. Dilma Rousseff, como Bolsonaro, fez cara de nojo. Caiu. Michel Temer entregou todas as vantagens que o déficit público pode pagar. E sobreviveu a duas denúncias criminais.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro tratou como 'chuva de verão' seu arranca-rabo com Maia. "O sol está lindo. O Brasil está acima de nós. Da minha parte não há problema nenhum. É página virada." As palavras do presidente foram recebidas pelos líderes partidários não como um armistício, mas como conversa fiada. Os 28 anos de mandato fizeram de Bolsonaro um personagem manjado na Câmara. Ali, sabe-se que o capitão costuma virar a página para trás. Prefere os temporais às chuvas de verão. Avalia-se que Bolsonaro não demora a disparar novos raios que os partam.

Se quiser fugir da bifurcação que condena os presidentes à queda ou à cumplicidade, Bolsonaro terá de tentar uma terceira via. Precisa parar de dizer "desta água não beberei". O segredo está em ferver antes. As demandas que chegassem ao Planalto iriam para a chaleira. As que saíssem do processo purificadas seriam atendidas. Aquelas cujos germes sobrevivessem às altas temperaturas iriam para o esgoto, com escala no noticiário policial.

Chuva de verão, seca de inteligência - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 29/03

Passou o sururu, diz presidente, mas problema da coalizão política continua na mesma


A turumbamba do governo com o Congresso passou, como chuva de verão, afirmou Jair Bolsonaro.

Depois do verão vem a estiagem. Na seca, um tempo crônico de vacas magras e de ministérios mais gordos na mão de militares, o que o presidente pode ou quer oferecer aos parlamentares?

Depois do sururu, o problema continua quase do mesmo tamanho. Trata-se de dividir poder, cargos e verbas; de impedir que as falanges bolsonaristas avacalhem parlamentares nas redes insociáveis.

Bolsonaro poderia aparecer com uma reforma ministerial e partilhar pedaços do governo, mas:

1) não quer, por enquanto, ao menos;

2) não pode fazê-lo, sem mais, sem desmoralização, pois a rejeição do que chama de "toma lá dá cá" é uma questão de honra para o núcleo puro do bolsonarismo;

3) ainda que conhecesse as artes de como fazer tal reforma, agora faltam-lhe meios. Entregou parte do ministério a militares. O que sobra é pouco, dada a fragmentação ainda maior do Congresso, partidos demais para uma dança de poucas cadeiras;

4) caso aproveitasse essa reforma para dar jeito em ministérios como Educação, Casa Civil, ou Turismo, teria de dividi-los entre condomínios de partidos e, de resto, colocar lá alguém de confiança. Entregar ministério de porteira fechada é de fato um risco letal. Difícil.

Em que termos vai se dar então a "nova articulação política" do governo? Dinheiro não haverá. A receita federal está perto da estagnação, despesas crescem de modo vegetativo. O investimento em obras será ainda mais talhado. Em breve, vamos ouvir queixas da construção civil, a infraestrutura vai ruir aos poucos, universidades e hospitais irão à míngua.

Ficar em bons termos com Rodrigo Maia, presidente da Câmara, ajuda. Isto é, dar-lhe salvo-conduto, proteção contra as falanges virtuais e poder de negociação em nome do governo: apoio para o serviço de premiê improvisado que Maia desde o início ofereceu.

Bolsonaro vai controlar seu núcleo puro, as falanges virtuais, seus filhos e assessores fundamentalistas?

Semana sim, semana não, a depender do tamanho do estrago e da pressão dos conselheiros militares, a turma volta para a casinha, para logo fugir de lá. O problema essencial, na verdade, é que Bolsonaro mesmo mora nessa casinha mal-assombrada.

Em termos materiais, o governo tem à disposição centenas de postos para distribuir ao parlamentariado. Difícil saber se essa solução de varejo vai satisfazer necessidades e ambições de pelo menos meia dúzia de líderes partidários com poder de fazer estrago.

Vários de seus liderados podem levar superintendências ou delegacias regionais disso ou daquilo, mas a soma dessas partes pode não dar em um todo articulado, votos de um partido.

Fazer "articulação política" apenas no puro varejão é uma experiência nova tocada por essa gente que até agora não demonstra capacidade alguma de coordenar governo.

Outro modo de organizar a massa é dar poder à "velha política", parlamentares mais capazes e experientes. Há gente no MDB, no PSDB e no DEM etc. disposta a prestar o serviço. Alguns já o fazem, em tempo parcial ou com emprego intermitente, como na reforma trabalhista.

Para que funcione, precisariam assumir posições de comando, de fato, dentro do Planalto. Seria preciso combinar com o general Santos Cruz e dar um chega para lá em Onyx Lorenzoni. Não foi possível apurar se o governo ao menos entende esse problema, quanto mais se quer resolvê-lo.

Bolsonaro já cometeu crimes de responsabilidade; agora, falará a política - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 29/03

Reforma da Previdência era seu grande ativo, e ele está se encarregando de implodi-la

Sim, o presidente Jair Bolsonaro já cometeu crimes, no plural, de responsabilidade. Vai cair? Depende dele.

Bolsonaro encerra o seu terceiro mês de mandato, e a pergunta mais frequente que me fazem —e isto nunca aconteceu em tempo tão curto— é a seguinte: "Você acha que ele vai até o fim?" Dado que o presidente e seus valentes escolheram a imprensa como inimiga, as pessoas imaginam que temos a resposta porque esconderíamos uma arma letal contra o "Mito". As coisas mais perigosas que guardo contra Bolsonaro são a Constituição e a lei 1.079.

Há um desânimo evidente em setores da elite que apostaram literalmente num milagre, que é o acontecimento sem causa. Por que diabos, afinal de contas, ele faria um bom governo ou encaminharia soluções institucionais? Em que momento de sua trajetória política ele se mostrou reverente à lei e à ordem? Nem quando era militar, ora bolas! Vejam lá: o fiscal que o multou porque pescava em área ilegal foi exonerado do cargo de confiança que ocupava no Ibama. Ainda volto a ele.

Para responder se Bolsonaro conclui ou não o seu mandato, terei de voltar a Dilma Rousseff. Sim, ela pedalou, cometeu crime de responsabilidade, segundo os termos da lei 1.079. Sempre cabe a pergunta: "Mas ela pedalou muito?" Não, gente! Seu governo destruiu as contas públicas em razão de obtusidades várias, que não vêm ao caso agora, mas a pedalada propriamente foi coisa pouca, nada que a sociedade brasileira não pudesse ignorar se a economia estivesse em crescimento, os juros e a inflação em níveis civilizados, as contas públicas em ordem —hipótese, então, em que a presidente não teria passeado imprudentemente de bicicleta...

O impeachment por crime de responsabilidade tem como condição necessária uma agressão à ordem legal —uma motivação, pois, de feição jurídica—, mas só se realiza se estiver dada a condição suficiente, que é a política. Não por acaso, seu primeiro passo é a admissão da denúncia, em decisão monocrática, pelo presidente da Câmara. E toda a tramitação segue sendo de natureza... política! Os senadores, que atuam excepcionalmente como juízes, também são políticos.

Um presidente não é apeado por crime de responsabilidade, no Brasil, se contar com pelo menos um terço dos deputados ou dos senadores. Nota: a reforma da Previdência era seu grande ativo, e ele está se encarregando de implodi-la.

É claro que Bolsonaro brinca com fogo. Cometeu crime de responsabilidade, diz a lei, quando agrediu o decoro e propagou um filminho pornô. Vá lá. A coisa ganhou um tom até meio apalhaçado como consequência da estupefação geral. Mas ele se mostra insaciável nos seus três meses. A ordem para "comemorar" o golpe militar de 1964 —e o verbo foi empregado pelo porta-voz— e sua visita à CIA, onde, confessadamente, tratou da crise na Venezuela, agridem, respectivamente, os valores contidos nos Artigos 1º e 4º da Constituição.

A mesma lei 1.079 que depôs Dilma Rousseff considera, no item 3 do artigo 5º, ser "crime de responsabilidade contra a existência da União cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade". O artigo 7º aponta como "crimes de responsabilidade contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais" as seguintes práticas: "7 - incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina" e "8 - provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis". O mesmo artigo, no item 5, dispõe a respeito da destituição do fiscal do Ibama, ato do ministro Ricardo Salles: é crime de responsabilidade "servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua".

"Não exagere, Reinaldo!" Bem, digam isso a Bolsonaro. Os crimes estão cometidos, e não seria difícil prová-los. Ou alguém manda comemorar golpe de Estado para enviar um recado aos próceres de 1964? Obviamente, a agressão se dá à ordem constitucional de 2019.

"Então ele vai cair?" Depende dele. Se continuar a fazer bobagem e se perder as condições políticas de governar, hoje precárias, cai, sim! Os crimes de responsabilidade já foram cometidos. Por si, não derrubam ninguém. Associados à crise política aguda, tem-se a combinação letal.

As pedaladas institucionais de Bolsonaro já são maiores do que as pedaladas fiscais de Dilma. O que ele fizer na política, agora, vai determinar o resto.

Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Deserto de projetos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/03

A abundância de ideias e opiniões do governo Bolsonaro contrasta com a ausência de projetos e políticas


O governo Jair Bolsonaro parece ser uma fonte inesgotável de ideias e opiniões. Nas redes sociais, o presidente fala de tudo – das ideologias, do comunismo, dos costumes, da imprensa, da lombada eletrônica, da placa de automóvel e até de uma questão do Enem da qual ele discorda. Nos discursos, o tom é altivo. Seu papel não seria apenas o de chefiar o Executivo federal. De acordo com suas palavras, sua missão no Palácio do Planalto consistiria em refundar o País, com a instauração de uma nova ordem social, “libertando-o definitivamente do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”, como afirmou no discurso de posse.

A abundância de ideias e opiniões do governo Bolsonaro contrasta, no entanto, com a ausência de projetos e políticas públicas para o País. Em recente entrevista ao Estado, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez notar que, além do projeto de endurecimento das leis penais de Sergio Moro e da proposta de reforma da Previdência – que o próprio Jair Bolsonaro não assume completamente, dizendo que preferiria não ter de aprová-la –, o novo governo não tem um projeto para o País. “Se tem propostas, eu não as conheço”, disse Rodrigo Maia.

Ao falar da constante presença de Jair Bolsonaro e de sua família nas redes sociais, o presidente da Câmara lembrou um dado básico, que já havíamos ressaltado nestas páginas: “O Brasil precisa sair do Twitter e ir para a vida real. Ninguém consegue emprego, vaga na escola, creche, hospital por causa do Twitter. Precisamos que o País volte a ter projeto”.

É um engodo a ideia de que se está construindo um novo Brasil, “livre de amarras ideológicas”, por força da atuação do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. E a população dá sinais de ter percebido essa realidade. As pesquisas de opinião indicam uma significativa deterioração da avaliação de Bolsonaro em menos de três meses de governo.

A tarefa de governar o País é muito diferente do que simplesmente criticar políticas e ações públicas do PT no governo federal. “Criticaram tanto o Bolsa Família e não propuseram nada até agora no lugar. Criticaram tanto a evasão escolar de jovens e agora a gente não sabe o que o governo pensa para os jovens e para as crianças de zero a três anos”, afirmou o presidente da Câmara.

A ausência de propostas e projetos consistentes para o País contraria diretamente uma das promessas mais repetidas por Bolsonaro e seu entorno – de que o seu governo imprimiria um rumo completamente novo ao Brasil. Sem propostas para os problemas reais, não há como falar em novos caminhos para o País.

A consequência imediata dessa incapacidade de apresentar propostas é a continuidade nos erros da era petista. Foi o que se viu, por exemplo, na participação do Brasil na “Segunda Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul”. Apesar de todo o discurso de que o governo Bolsonaro imprimiria uma nova política internacional, o Brasil deu mais um passo no sentido de reafirmar a tal cooperação Sul-Sul, com suas conhecidas limitações e entraves para uma adequada inserção do País no cenário internacional.

Não se sabe quais são os projetos do governo Bolsonaro para a saúde pública, tema de primeira importância para a população. O mesmo acontece na área de educação. Ao abdicar de apresentar propostas concretas, o governo Bolsonaro reduz sua atuação a disputas verbais, agressões e escândalos.

A manutenção do País num clima conflituoso de campanha eleitoral, que parece ser até aqui um dos grandes objetivos de Bolsonaro, condena, assim, o seu próprio governo a uma preocupante paralisia. Aquele que prometeu um novo Brasil parece agora mais interessado na repercussão de seus tuítes. As urnas deram a Jair Bolsonaro uma missão bem concreta e com precisas responsabilidades institucionais. Ao presidente da República cabe construir soluções para os problemas nacionais. A ausência de projetos é caminho certo para o fracasso. O País não merece tamanho descuido.