sábado, junho 29, 2019

FAB! Farinha Aérea Brasileira! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 29/06

E o Bonde do Bozo agora tem dois aviões: o Aeromito e o Aeromula!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! G39! Coca da Boa! "Militar da comitiva Bolsonaro preso com 39 quilos de cocaína em avião da FAB!" Farinha Aérea Brasileira! Não é mais "a cobra vai fumar". A cobra vai cheirar! Rarará!

E o Bonde do Bozo agora tem dois aviões: o Aeromito e o Aeromula! E a charge do Duke! Piloto do Aeromula com a torre de controle: "Pó pousar?". "Pó! Pô". Rarará! E o Mourão: "Esse é uma mula qualificada". As desqualificadas estão todas no governo. Rarará!

E o tuiteiro Bruno Viana: "Então fica dividido assim: maconha é de esquerda e cocaína é de direita!". Rarará! E atenção! CORAM PARA AS CORINAS! Chamem o Godzilla! Bozo no Zapão! Osaka vira Ozika! Japão declara Tóquio de Recolher! Alerta vermelho!

E ele vai fazer aquela piada que japonês tem aquilo pequenininho? Vai, vai fazer piada com os pauzinhos! Tenho certeza! Rarará! Bozo eTrump: encontro do pé com o capacho. O Criador e a Criatura! Se tirar uma foto do saco do Trump (quem tiver coragem, deve ser um milharal) aparece o Bozo pendurado. Rarará! E convidou Macron pra visitar a Amazônia. Antes que acabe!

E como o Bozo tem certeza que ele conversou com o presidente da China?! Todo chinês é a cópia pirata de outro chinês. Ele se encontrou com aquele chinês que vende Lolex no Saara! Rarará! E vai tretar com a Angela Merkel por causa de desmatamento! Desculpe o trocadilho, mas vai rolar um CLIMÃO! Rarará!

"O senhor está transformando a Amazônia num pasto, Pasto Forest." E o Bozo: "E o nazismo é de esquerda". Rarará! E a Merkel continua com cara de ressaca de Oktoberfest! E o Putin é um presidente que já vem com raiva: Putin! Com aquela cara de vilão de filme de 007!

E atenção! Coca América! Brasil X Paraguai! Quem ganhou a partida? Quem foi dormir mais cedo. O Richarlison pegou caxumba. E o resto do time pegou amarelão e bicho do pé! O Alan caiu na escada do túnel e rachou a testa! E o Tite reclamou da grama. Bota ketchup, que melhora! Rarará!

E, me desculpe, mas futebol é popular porque se joga em qualquer lugar: várzea, lameira, pirambeira e até em ladeira! E de repente pode dar Brasil X Argentina! Que coMESSI a zoeira! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.

Bolsonaro e seus filhos - MARCO ANTONIO VILLA

REVISTA ISTO É
Em 30 anos de vida parlamentar, a maior obra do presidente foi eleger seus rebentos. Juntos, os quatro adotaram a bandeira do irracionalismo


Jair Bolsonaro é uma figura exótica — no mínimo. Permaneceu 30 anos na vida legislativa e não deixou rastros. Nos dois anos passados na câmara de vereadores do Rio de Janeiro, nada fez. Sua atuação como fiscal do Executivo municipal foi nula. Mesmo assim, explorando oportunisticamente o tema da segurança pública, conseguiu se eleger deputado federal em 1990.

Passou 28 anos na Câmara dos Deputados. Presidiu comissões? Relatou projetos? Debateu os grandes temas nacionais? Os anais da casa nada registram. Foi o exemplo mais acabado do que se conhece como baixo clero. Pouco trabalhou. Omitiu-se nos momentos mais graves das últimas três décadas. Faltou a muitas sessões.

Acostumou-se ao ócio, à boa-vida dos parlamentares, todo mês com o salário garantido, as despesas pagas, empregando familiares e amigos, sempre com dinheiro público. Gostou tanto das benesses da velha política que introduziu sua primeira esposa, em 1992, como vereadora no Rio de Janeiro.

Quatro anos depois foi a vez de Carlos Bolsonaro ser candidato à vereança contra a própria mãe — o que daria um belo ensaio psiquiátrico. Em 2002, para a assembleia legislativa fluminense, chegou a hora de seu filho mais velho, Flávio. Em 2014, aproveitou a oportunidade para ocupar o espaço em São Paulo com Eduardo, uma espécie de deputado biônico, sem qualquer ligação efetiva com o estado que, supostamente, diz representar.

Portanto, foram cinco Bolsonaro na política. Hoje estão reduzidos a quatro. É muito difícil encontrar algo similar na história política brasileira, apesar de sermos um País marcado pelo filhotismo.

esmo assim, no último processo eleitoral Bolsonaro se apresentou como o candidato antissistema. Como? Foram 30 anos como parlamentar elegendo quatro membros da família? Um deles, Carlos, era, no momento de sua primeira eleição, menor de idade. Nenhum deles se destacou pelo estudo, pela reflexão. Pelo contrário, tiveram no pai um espelho — dos péssimos.

Reproduziram o desprezo pelos intelectuais e artistas, pelo conhecimento, externaram odes à ignorância, atacaram sistematicamente o estado democrático de direito, defenderam causas reacionárias e transformaram o irracionalismo em bandeira de luta. Da vida parlamentar — tal pai, tal filhos — nada ficou, a não ser o uso e abuso das benesses e o emprego de dezenas de familiares e coligados, alguns que nunca compareceram ao local de trabalho.

Mas, como nos contos de fadas, um dia a casa cai.

Não existe indústria da multa - RODRIGO ZEIDAN

FOLHA DE SP - 29/06

O que queremos é um atalho para tornar a nossa vida melhor e que se danem os outros


Não existe indústria da multa. Para provar isso, bastam as estimativas de dois números: a média de erros no trânsito e a quantidade esperada de multas de um condutor.

Cometemos várias infrações no trânsito toda hora: direção acima da velocidade permitida no local, buzina sem razão, troca de faixa sem ligar a seta, falar (ou teclar!) no celular, ultrapassagem pela direita, estacionamento em fila dupla, e muito mais.

Vamos ser generosos e estimar em somente dez as infrações diárias de um motorista no Brasil (há variação regional, mas está para nascer um motorista que respeite todas as nossas regras de trânsito).

Se uma pessoa dirige 200 dias por ano, isso totaliza 2.000 infrações anuais por condutor. Mas, na média, cada condutor brasileiro recebe duas multas por ano. Isso significa que, a cada mil erros (sendo bem generosos), somente um é punido. Ou seja, a taxa de punição da “indústria da multa” seria de 0,1%.

Nem todas as multas são pagas. Assim, a real relação entre infrações de trânsito e multas pagas seria ainda menor. Vocês conhecem alguma empresa que deixe na mesa 99,9% das suas vendas? Imagine um dentista que consertasse corretamente os dentes de 1 entre 1.000 pacientes. Ou uma fábrica de sapatos na qual 999 de 1.000 fossem defeituosos.

Se existisse indústria da multa, não haveria déficit público no Brasil (exagero, mas não muito). Bastaria colocar agentes de trânsito em qualquer esquina e sair multando todos os carros e suspendendo carteiras de motorista. Depois, seria só colocar empresas atrás dos devedores.

A inexistência da indústria da multa não significa que nossas regras de trânsito não possam ser criticadas. Muitas vezes o Estado usa as multas como medidas punitivas, em vez de educativas. Regras podem (e devem) ser melhoradas, mas ninguém tem o direito de decidir quais regras seguir.

Até hoje me lembro do meu irmão dando carona para uma colega de trabalho, logo depois de ir morar em Portugal. Ele sempre dirigiu bem para os padrões brasileiros, mas, depois de cinco minutos no carro dele, a sua colega lhe pediu que parasse para que ela descesse do carro.

Detalhe: isso no meio de uma avenida no meio do nada. Ela não aguentou a sua forma agressiva de direção. E ele nem percebia isso.

Na verdade, o clamor contra essa inexistente indústria reúne tudo de pior do brasileiro: egoísmo, irracionalidade, ignorância e falta de accountability —parte falta de responsabilização individual e parte transferência de responsabilidade para outrem.

A indústria da multa é a desculpa perfeita para uma sociedade doente: “Não é minha culpa, não é meu erro, a multa nasceu de uma entidade maligna”.

O que queremos é simples: que todos respeitem as leis do trânsito, menos nós. Assim podemos ver uma fila de carros num afunilamento à direita e irmos na outra pista quase até a junção das pistas, nos jogando no primeiro espaço vazio que aparecer perto dela.

“É só um minutinho”, também dizemos quando estamos parados em fila dupla, esperando a filha sair do colégio.

Os brasileiros conduzem muito mal, num comportamento de manada que reforça o comportamento ruim dos outros.

Talvez seja até impossível respeitar todas as leis do trânsito, quando ninguém o faz. Mas dirigir mal não é o problema. Colocar a culpa nos outros é que é.

Não existe indústria da multa, o que queremos, como quase sempre, é um atalho para tornar a nossa vida melhor e que se danem os outros.

Rodrigo Zeidan
Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Participação de moradores pode fazer milagre nos condomínios - MARCIO RACHKORSKY

FOLHA DE SP - 29/06
Projetos ficam melhores e mais baratos quando os condôminos se envolvem

O ditado "santo de casa não faz milagre" não se aplica aos condomínios. O engajamento dos vizinhos tem se mostrado crucial para o sucesso de qualquer iniciativa, e felizmente, aos pouquinhos, a participação dos moradores está aumentando.

É incrível notar como os projetos ficam melhores e mais baratos quando os condôminos se envolvem e dedicam um pouco de tempo para melhorar o lugar onde vivem.

A gestão de condomínios está mais profissional e se tornou uma atividade bastante complexa, que requer a atuação de uma equipe multidisciplinar, composta por advogado, contador, administrador, engenheiro, gestor predial, entre outros profissionais. Mas a engrenagem só funciona direito com a participação dos moradores --citando mais um dito, "o olho do dono é que engorda o porco".

O segredo de sucesso é a criação de comissões temáticas de trabalho, órgãos de apoio e auxílio ao síndico formados por moradores voluntários, com intuito de buscar melhores soluções, práticas e preços.

Temas como finanças, segurança e manutenção são os campeões de demanda nas comissões, mas atividades que buscam integração entre os moradores estão ganhando força, tais como comissão social, de eventos e esporte.

Ademais, a participação dos moradores tende a trazer mais lisura e transparência a qualquer processo, eliminando aquela péssima impressão de que há esquemas nas contratações, propinas e favorecimentos.

Recentemente, num condomínio com mais de 300 apartamentos, o sistema de aquecimento de água entrou em colapso. Síndica e conselheiros buscaram orçamentos para a solução do problema, e as propostas beiravam os R$ 2 milhões.

Em assembleia, foi criada uma comissão da água quente, cujos membros estudaram a fundo o tema, ouviram especialistas e, após reuniões e assembleias, conseguiram uma solução alternativa, que custou menos de R$ 400 mil --um quinto do valor inicialmente estimado. Um case de sucesso, que gerou uma economia milionária.

Em outro condomínio, com problemas de relacionamento entre os vizinhos, criou-se uma comissão social, com a árdua tarefa de aproximar os moradores e acabar com os conflitos. Em menos de um ano, festa junina, dia das crianças, campeonato de futebol e um ciclo de palestras com conscientização sobre direitos e deveres foi o suficiente para quase zerar as ocorrências disciplinares.

Se há algo a melhorar no condomínio, não adianta apenas reclamar, mas sim comparecer à próxima assembleia, se voluntariar para cooperar, angariar o apoio dos vizinhos e fazer a diferença.

Márcio Rachkorsky
Advogado, é membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP.

Vencer o velho isolamento - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 29/06


Acordo com a União Europeia tira o Mercosul do isolacionismo e significa a vitória da ala pragmática do atual governo


É uma grande vitória o acordo comercial União Europeia e Mercosul. Ainda é rascunho, os detalhes são pouco conhecidos, mas a dimensão política de um aprofundamento das relações com a Europa é forte. Vai demorar ainda uns dois anos, segundo fontes do próprio governo, para virar realidade. Há o processo de fechamento dos textos, traduções em todas as línguas e aprovação pelos parlamentos. Mas o efeito na expectativa acontece já e vários fatores ajudaram a levar a esse momento, que é histórico.

Os analistas de fora do governo explicam que as negociações foram retomadas durante o governo Temer, nas gestões de José Serra e Aloysio Nunes no Itamaraty, depois de uma longa hibernação nas administrações Lula e Dilma. Negociadores do atual governo, com quem eu falei, defendem que o desfecho só foi possível agora porque houve um alinhamento entre a política econômica e a política comercial, quando as duas áreas passaram a fazer parte do mesmo ministério.

Um acordo dessa complexidade não se faz em apenas seis meses, evidentemente. Mas o que se diz no governo é que as concessões em áreas como propriedade intelectual, regra de origem e navegação de cabotagem permitiram o salto que levou ao acordo. E que isso só foi possível porque na Argentina o governo é de Mauricio Macri, e porque aqui venceu a ala mais pragmática da atual administração.

— Não é só um acordo de livre comercio, é um acordo de associação econômica. Então ele tem aspectos de investimentos, de serviços financeiros, de padrões ambientais. É uma grande vitória de uma vertente mais pragmática sobre a área mais protecionista, mais isolacionista, que não quer se vincular a regras internacionais. E foi uma loucura o trabalho técnico. Estamos falando de 92%, 93% de toda a economia do Mercosul e da União Europeia. São dezenas de milhares de produtos e serviços e para cada um deles é uma regra diferente — me disse um dos negociadores brasileiros.

Em linhas gerais, haverá dois tempos de redução de tarifas. Um mais rápido para eles, um mais demorado para nós. Há produtos em que a tarifa irá a zero em três anos nas exportações nossas para eles. Mas nas importações o prazo será de dez a doze anos. Portanto, é uma abertura com gradualismo. Nas commodities agrícolas nós teremos que aceitar as cotas, mas dentro delas a tarifa será zero. Ou seja, até um certo volume de vendas, não se pagará tarifa. Já é assim em alguns produtos, como carne bovina e frango, mas essa limitação quantitativa será muito alargada. Houve avanços em vários produtos como açúcar, etanol e suco de laranja.

O embaixador Rubens Barbosa lembra que as primeiras conversas começaram em 1995, mas ao longo do tempo, principalmente nos governos do PT, o assunto ficou em banho-maria. As conversas foram retomadas há três anos e tiveram um salto agora, o que ele comemora.

— Termina um período de isolamento do Brasil e do Mercosul que durou 20 anos. Só fizemos acordos com Israel, Egito e Autoridade Palestina. Agora estamos fechando um acordo com o segundo maior parceiro comercial, um bloco de 27 países. Isso é muito relevante. O Brasil precisa acelerar as reformas que nos tornem mais competitivos. O mercado está lá, mas o Brasil precisa ter produto e também tem que ter preço — diz ele.

Na CNI a reação foi positiva, ainda que até recentemente a indústria tenha mostrado preocupação em relação à entrada de produtos remanufaturados.

— Essa é uma indústria deles que está com um volume muito grande. Nós não queríamos que entrassem remanufaturados que não atendessem às nossas especificações técnicas. Esse produto é, por exemplo, um motor que dura dez anos anos, estraga, devolve-se para a fábrica e ela reaproveita as partes que estejam boas e refaz um produto com um tempo menor de vida. Pedimos para isso não entrar. E fomos ouvidos. A redução das tarifas dos produtos industriais será devagar e isso vai nos dar mais acesso a tecnologias — diz Carlos Abijaodi, diretor de desenvolvimento industrial da CNI.

Muitos eventos ajudaram a esse desfecho. Um deles, o fato de que houve eleições recentes na Europa e muitos comissários estão terminando seus mandatos. Era a chance de deixar uma marca. E esse acordo para eles é o segundo mais importante depois do que foi fechado com o Japão. Assim, a Europa também responde à política comercial protecionista e de conflito do governo Trump.

(COM MARCELO LOUREIRO)

A histórica resistência às reformas - RUBENS PENHA CYSNE

O GLOBO - 29/06

Reis temiam os inventores do progresso e vice-versa


Reformas econômicas, quando de fato necessárias, poderiam em tese ser defendidas apenas com base na sua eficiência para o país. “O bolo (PIB) final será maior para todos”, deveria ser argumento suficiente para o agente da mudança. Ocorre que as ações de cada grupo de interesse não se baseiam no tamanho esperado do bolo. Mas sim no tamanho de sua própria fatia. Via de regra, se a fatia esperada para amanhã, com reforma, for menor do que a de hoje, sem reforma, o respectivo grupo vota e age contra. Independentemente de quanto o país como um todo possa crescer.

Imobilismos gerados pela ação de atores conflitantes, diga-se de passagem, não são inerentes nem ao Brasil nem aos tempos atuais. São vários os relatos de reis que temiam os inventores do progresso e vice-versa. O rei temia os inventores porque o exercício de suas ideias reformadoras poderia fortalecer grupos políticos antagônicos, alijando-o das vantagens do seu reinado. Por outro lado, os inventores temiam o rei porque este poderia sempre usar o seu poder para confiscar-lhes, no futuro, todo o fruto do seu trabalho.

No caso dos inventores e reis, a criação de parlamentos fortes e judiciários efetivos reduziu parte da força do status quo . Mas não toda. Isso porque os próprios Poderes Legislativos e Judiciários são sujeitos a forças políticas, e estas podem se modificar quando reformas importantes são introduzidas. As recompensas futuras dos grupos que acedem às reformas não são passíveis de garantias plenas no campo legal. Demandam também acordos políticos críveis.

A gravidade do conflito entre grupos costuma se mostrar, em cada sociedade, proporcional à desconfiança e à divisão entre as partes. O Brasil, com suas desuniões centenárias de classes por poder aquisitivo e, mais recentemente, com acirramento de suas divisões políticas, passou a ocupar lugar de destaque na fila mundial do imobilismo reformista. As mais óbvias reformas, como a do saneamento básico e a da Previdência, encontram dificuldades que a razão mais simples desconhece.

A solução canônica para esse tipo de problema é tornar crível para todos que quando o bolo cresce todos poderão receber no futuro uma fatia pelo menos um pouco maior do que a atual. Fundamentais no processo são as negociações e os compromissos entre partes. Esse procedimento requer confiança e capital político.

Segue daí que, na solução canônica, aquele que quer resolver o impasse deve ser duro com as ideias que se mostraram inadequadas. Mas não pode se dar ao luxo de entrar no terreno dos revides ou agressões.

Por outro lado, não deve caminhar em demasia na direção oposta, a do consenso subserviente. Aceder além de certo ponto em negociações ou compromissos pode enfraquecer o negociador perante aqueles que estão a seu lado.

Um exemplo histórico de tentativa de conciliação geradora de uma mensagem interna de hesitação ou fraqueza, daí decorrendo forte perda de capacidade de liderança, foi dado pelo segundo presidente americano, John Adams, em 1800.

Em 1798, ele tornara públicos os relatórios da comissão americana na França, que denunciavam uma suposta tentativa de extorsão feita pelo ministro das Relações Exteriores francês. O fato gerou grande revolta americana contra a França. E garantiu a Adams um apoio popular que ele nunca antes tivera.

Dois anos depois, entretanto, o mesmo Adams resolveu adotar uma atitude de conciliação, enviando emissários à França para propor o fim das hostilidades. Perdeu seu apoio interno e passou a ser considerado traidor pelos próprios federalistas americanos que o apoiavam.

Para que as reformas brasileiras se efetivem com mais impacto e rapidez, é necessário que se alcance um ponto de equilíbrio ótimo no chamado “dilema da liderança”. Ela precisa ser suficientemente cordata para oferecer portas de saída às forças políticas que não se elegeram. Mas não tão consentânea que possa transmitir uma percepção de fraqueza de ideais àqueles que lhe conferem suporte político.

O equilíbrio é difícil, mas factível.

Rubens Penha Cysne é professor da FGV EPGE

Trabalhador contra robôs - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 29/06


Entre as propostas que continuam sendo debatidas para a conclusão do texto da reforma da Previdência, uma é fundamental para o modelo de país que queremos construir. A proposta do relator Manoel Moreira, do PSDB que, no fundo, é do Ministro da Economia Paulo Guedes, é acabar com a poupança do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que já caiu de 40% para 28%, e usá-lo para pagar aposentadorias.

Essa é a opinião de José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), um dos maiores especialistas em finanças públicas do país. “Cobra-se uma contribuição do faturamento das empresas, o PIS, a pretexto de financiar o seguro-desemprego, mas se pretende que 58% da receita seja usada para ex-trabalhadores já aposentados, inclusive os servidores públicos”, lamenta.

O futuro do emprego preocupa José Roberto Afonso, que prevê “um desemprego tecnológico brutal, provocado por robôs, economia compartilhada e outras realidades novas”. Quando mais se precisará do FAT, diz ele, o populismo atual vai esvaziá-lo.

Afonso considera a reforma da Previdência necessária, mas insuficiente para lidar com um futuro em que cada vez mais o trabalho não passará por emprego e salário. Para ele, não é a educação que resolverá o desafio, mas habilidades: “Será premente também mudar as qualificações de quem já está dentro do mercado de trabalho”.

A rede de proteção social aos trabalhadores gira em torno do emprego, e os salários são referenciais, seja para cobrança de contribuições sociais, seja para pagamento de benefícios, como seguro-desemprego e aposentadoria. José Roberto Afonso assegura que “essa construção será abalada pela revolução econômica e social, que passará pela automação do processo de trabalho e a expansão do trabalho independente”.

Mais que o BNDES, será o jovem de hoje que vai virar o desempregado do futuro, que vai pagar a conta dos ex-trabalhadores do passado, alerta. Ele diz que o FAT é dos raros fundos públicos que tem dinheiro, e só conseguiu isso porque foi gravado na Constituição que uma parcela de sua arrecadação seria convertida em poupança, aplicada no BNDES, ao invés de ficar parado nos cofres do Tesouro.

José Roberto Afonso lembra que quando essa medida ia ser votada, Lula perguntou-lhe por que os trabalhadores ficariam só com 60% para o seguro-desemprego e não com 100%. “Eu respondi que 60%, de fato e de direito, eram para os ex- trabalhadores, aqueles demitidos que precisavam receber o seguro-desemprego, e serem retreinados.

Quanto mais bem sucedido fosse a aplicação dos 40%, menos se precisaria usar os outros 60%, explicou a Lula. Também na Comissão Especial há uma discussão acirrada sobre o tema.

O deputado federal Pedro Paulo, do DEM do Rio, pergunta em mensagem que enviou aos companheiros da Comissão: “Vamos tirar recurso de um mecanismo que multiplica investimento, renda e emprego, para vinculá-lo a despesa de pessoal, previdenciária e obrigatória?”

Ele defende que a política de investimento do Banco seja corrigida, e redirecionada, mas não sufocada. Voltando da China há pouco, o deputado Pedro Paulo diz que o país não está reduzindo recursos públicos do Banco de Desenvolvimento Chinês (CDB), nem Japão, a Alemanha ou os EUA esvaziam suas instituições públicas de fomento.

“Em todos os casos, os governos apóiam seus bancos, ora com dotação orçamentária, ora com isenção de impostos, ora dando garantia para títulos que emitem.

Os EUA fortalecerão o Eximbank para financiar a venda de máquinas norte-americanas para Brasil: “Esse é um banco público, com dinheiro público no seu capital, no país mais liberal do mundo”.

Pedro Paulo ressalta que “até mesmo países que não têm bancos de fomento público utilizam fundos públicos para investimentos. Na Europa, 1% de cada cidadão vai para a União Européia financiar investimentos, pesquisas através de seus vários fundos disponibilizando muito dinheiro a fundo perdido e empréstimos até com juro zero e prazo a perder de vista”.

“A reforma da Previdência não promoverá crescimento apenas por si. Precisaremos de investimento público de qualidade” ressalta José Roberto Afonso, para quem o BNDES é o melhor agente.

O preço dos desacertos - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 29/06


Há muitos eleitores e não eleitores de Bolsonaro insatisfeitos com os rumos do governo. Pesquisa captura este sentimento. Que o presidente olhe para eles.


O presidente Jair Bolsonaro precisa tomar decisões todos os dias, a todo instante. A mais importante – porque dela dependem não só o futuro de seu governo, mas, principalmente, o do País – é se deseja continuar governando como um presidente de nicho ou, como esperamos, assumir como o presidente de toda a Nação, adotando um tom conciliador.

Até aqui, o presidente tem demonstrado, por meio de suas ações e palavras, ter uma compreensão equivocada do que representam os 58 milhões de votos que o levaram da Câmara dos Deputados para o Palácio do Planalto. Trata-se, é evidente, de uma eleição consagradora, mas nem remotamente o resultado das urnas significa carta branca para que Jair Bolsonaro leve adiante sua agenda programática a ferro e fogo, sem negociá-la com amplos setores da sociedade, sejam ou não seus eleitores. As diatribes da campanha eleitoral deveriam ter cessado em 29 de outubro do ano passado.

Desde sua posse, as faturas dos desacertos do governo de Jair Bolsonaro não param de chegar. A mais recente foi apresentada pelo Ibope na quarta-feira passada. Uma nova pesquisa, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), revelou que a insatisfação da população com o governo federal subiu de 27% em abril para 32% em junho, o maior índice negativo do governo Bolsonaro nesses seis meses de mandato.

Em janeiro, só 11% consideravam o governo “ruim ou péssimo”, o que é compreensível, pois compõem esta fração da sociedade os que não ficaram satisfeitos com a vitória de Bolsonaro. À medida que o tempo passou e o presidente forneceu aos cidadãos mais elementos para análise de seu desempenho, o porcentual de insatisfeitos só subiu. Em fevereiro, aqueles 11% do mês anterior tornaram-se 19%. Em março, 24%. Em abril, 27%. E no mês passado, 32%, o pico até agora.

Quando questionados pelo Ibope “O (a) sr. (a) aprova ou desaprova a maneira como o presidente Jair Bolsonaro está governando o Brasil?”, 48% responderam que desaprovam. Em janeiro, este porcentual era de 21%. Os que aprovam o governo somam 46%, uma expressiva queda em relação aos 67% colhidos no início do ano.

No entanto, o que mais salta aos olhos no resultado da nova pesquisa Ibope/CNI é o índice de confiança no presidente Jair Bolsonaro. O porcentual de brasileiros que confiam no presidente vem caindo drasticamente entre janeiro e junho. No início do mandato, 62% dos pesquisados pelo Ibope disseram confiar no presidente. Em fevereiro, o número caiu para 55%. Em março, para 49%. Em abril, houve uma pequena melhora para 51%. Em junho, nova queda, atingindo 46%, o menor patamar de confiança pessoal no presidente até aqui. A curva dos que não confiam em Jair Bolsonaro percorreu a direção contrária, ou seja, só fez subir de janeiro até junho, de 30% para 51%. O resultado não é alvissareiro para um presidente que exerce liderança baseado primordialmente em seu apelo popular.

O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, preferiu ironizar a pesquisa. “Pelos números do Ibope, o presidente jamais seria Bolsonaro.” A atitude do ministro era previsível dado o comportamento de membros do governo adotado após a apresentação dos resultados anteriores. Ainda assim, não se trata de uma análise precisa porque o Ibope não se furtou a registrar o avanço do então candidato Jair Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto no decorrer da campanha.

Seria muito melhor para o governo e para o País que o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe recebessem os resultados dessa pesquisa, e de outras que lhes sobrevierem, com humildade e espírito público. A mesma sociedade que o elegeu, e que agora aponta seu desconforto, deseja que, ao fim e ao cabo, seu governo seja virtuoso para o País. Há, decerto, quem torça contra o sucesso do governo apenas por fazer parte do espectro político-ideológico diferente do que chegou ao poder. Mas não é a maioria da população que pensa assim. Há muitos eleitores e não eleitores de Jair Bolsonaro insatisfeitos com os rumos do governo. A pesquisa captura este sentimento. Que o presidente olhe para eles.

Guerra de titãs - ADRIANA FERNANDES

O Estado de S. Paulo - 29/06

A equipe econômica trabalha em um plano de corte de renúncias fiscais

O presidente Jair Bolsonaro deflagrou uma guerra de titãs ao antecipar, nas redes sociais, que o governo vai reduzir o Imposto de Importação (II) de produtos de tecnologia, como computadores, celulares e jogos eletrônicos.

A alíquota vai cair de 16% para 4% para fomentar a concorrência e a redução dos preços dos produtos fabricados no Brasil, avisou o presidente.

Extremamente sensível e polêmico, o tema vinha sendo tratado com extrema reserva pelo Ministério da Economia – para não atrapalhar as negociações para votar a reforma da Previdência antes do fim do recesso parlamentar.

Ao usar suas redes sociais para anunciar uma decisão que ainda não foi tomada oficialmente, o presidente acabou chamando para a briga, antecipadamente, toda a indústria nacional e a Zona Franca de Manaus – que fazem uma grande articulação para barrar essa política dentro e fora do Congresso.

Na segunda-feira, o próprio Bolsonaro recebeu, em agenda marcada de última hora e sem publicidade, o presidente da Superintendência da Zona Franca de Manaus, Alfredo Menezes, e o senador emedebista Eduardo Braga (AM).

A disputa com a equipe econômica se antecipara porque, na segunda-feira, o governo publicou uma portaria que altera o processo produtivo básico do terminal portátil de telefonia celular industrializado na Zona Franca.

Na conversa, o senador e o presidente da Suframa reclamaram a Bolsonaro que a norma (muito técnica e datada do dia 21) mexia com a fórmula de cálculo dos produtos importados no Brasil, atingindo em cheio não só a Zona Franca, mas também a indústria de outros Estados, como São Paulo, Paraná e Bahia.

O argumento dado ao presidente é o de que a mudança afeta uma indústria estabilizada e que gera 500 mil empregos no País. Eles cobraram de Bolsonaro um “freio de arrumação” e que ouça também o “outro lado”.

A equipe econômica defende a estratégia de abertura como um processo necessário para o crescimento do País. É ponto central da política do ministro da Economia, Paulo Guedes, de aumento da produtividade e competitividade do País.

Mas procurado oficialmente pela coluna, o time de Guedes não quis comentar o encontro com o setor – que ocorreu no mesmo dia, logo depois da reunião de Bolsonaro, em Brasília.

Bolsonaro ouviu as críticas e prometeu comandar a primeira reunião ordinária do Conselho de Administração da Zona Franca, marcada para o próximo dia 12. Foi um passo considerado importante para a abertura de diálogo.

A polêmica portaria é só mais um episódio das disputas entre a área econômica e a Zona Franca. O Ministério da Economia considerou um desastre a decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) que ampliou os subsídios para a região em R$ 49,7 bilhões nos próximos cinco anos.

Em abril, o Supremo decidiu que as empresas de fora da Zona Franca, que compram insumos produzidos na região – portanto, isentos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – terão direito a contabilizar, como crédito tributário, como se o imposto tivesse sido pago. Fatura considerada inaceitável por Guedes e sua equipe em um momento de correção do déficit fiscal e corte de benefícios.

Como mostrou reportagem do Estado, a equipe econômica trabalha em um plano de corte de renúncias fiscais na tentativa de reduzir os subsídios em mais de um terço do montante atual.

A intenção é cortar o equivalente a 1,5% do PIB até o fim de 2022, ou cerca de R$ 102 bilhões em valores de hoje. Em 2018, o governo abriu mão de R$ 292,8 bilhões em receitas, ou 4,3% do PIB. É claro que a Zona Franca é um dos principais alvos desses cortes.

O embate de corte dos subsídios se soma à política de abertura comercial, à guerra dos concentrados de refrigerantes e à reforma tributária. A PEC de reformulação do sistema tributário, apresentada pelo líder do MDB, Baleia Rossi (SP), é mortal para a Zona Franca ao dar fim a todo tipo de incentivo – ponto fundamental da reforma. Essa briga vai longe e aponta uma guerra sangrenta no Congresso.

Seis meses decepcionantes - JOÃO DOMINGOS

O Estado de S.Paulo - 29/06

Nesse período, o que houve, em excesso, foi muito falatório


O balanço dos seis primeiros meses de governo de Jair Bolsonaro não pode ser considerado positivo, pelo menos na visão deste repórter. A despeito da baixa taxa de juros e da inflação sob controle, heranças do governo de Michel Temer, é bom lembrar, a economia está empacada e o desemprego de 13 milhões de pessoas na idade economicamente ativa é desesperador. Quanto ao PIB, o próprio Banco Central reduziu a previsão de crescimento de 2% em 2019 para 0,8%. E ninguém descarta a possibilidade de nova redução nos próximos meses.

Quanto à reforma da Previdência, único projeto com potencial para dar uma sacolejada boa na economia e reconquistar a confiança de investidores, este praticamente saiu das mãos do governo, passando ao controle do Congresso. Mesmo com toda a dificuldade que propostas desse teor enfrentam, em qualquer lugar do mundo, é possível que o projeto seja aprovado mais por méritos do Congresso do que por esforço do Palácio do Planalto. O governo não se preocupou em criar uma equipe de articuladores competente, mas, sim, uma fórmula incompreensível de atuação, até há pouco tempo dividida entre o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o então secretário de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido no calor das discussões da reforma da Previdência. Não porque tenha falhado na articulação política, mas porque Santos Cruz não dava bola para a agenda conservadora do presidente e ainda era agredido com expressões de baixo calão pelo escritor Olavo de Carvalho, tido como guru do presidente.

Quanto ao pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, também não se vê da parte do governo um empenho grande para que seja aprovado logo. E olha que o combate ao crime foi uma das bandeiras de campanha do então candidato do PSL.

O ideal para qualquer um que escreva sobre política, e que vivenciou erros e acertos de todos os governos do período da redemocratização para cá (1985/1988), seria dizer que agora a coisa vai, que o programa de recuperação econômica é isso e aquilo, que o País caminha para o pleno emprego e que, por isso mesmo, o presidente, no auge de sua popularidade, desistiu de acabar com a reeleição para buscar mais um mandato. O que há é o avesso disso.

Seria também interessante dizer que estão com os dias contados estatais como a Empresa de Planejamento e Logística, criada no governo de Dilma Rousseff para administrar um trem-bala que faria o trajeto entre Rio e Campinas, passando por São Paulo, a tempo de carregar torcedores para a Copa de 2014. Isso, no entanto, não é possível. Passados mais de oito anos da criação da EPL, e sem que um único dormente para o trem de alta velocidade tenha sido assentado, tal empresa continua lá na sua sede, em Brasília, com presidente, diretoria, benefícios sociais, comissão de ética, assessoria de imprensa e milhões para torrar.

Nesses seis meses de governo, o que houve, em excesso, foi muito falatório. “Um festival de besteiras”, na definição de Santos Cruz, que costuma ser cuidadoso quando fala do governo. O general passou quase seis meses lá dentro. Vivenciou grandes e pequenos acontecimentos. Deve saber o que diz.

O certo é que o presidente, que tem falado constantemente em ser candidato à reeleição, continua a agir como se estivesse em campanha. A economia vai mal, não há um projeto de desenvolvimento, por exemplo, para a Amazônia, para o Nordeste, para reduzir a pobreza, para melhorar a educação. Mas Bolsonaro acha que daqui uns dias todos vão querer votar nele.

Para não ficar só nessa lenga-lenga, registre-se que houve o anúncio do fechamento de um acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul. Acordo que começou a ser costurado no governo de Fernando Henrique Cardoso, ainda em 1999.

Papo de velho - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 29/06

Nos EUA, alunos negam os pilares mais básicos do sistema de Justiça ocidental

A gente sabe que ficou velho quando começa a se perguntar o que há de errado com os jovens de hoje. Bem, estou oficialmente velho, porque não consigo entender o comportamento da elite mundial dos estudantes universitários, que, cada vez mais, advoga por “safe spaces” (espaços seguros), “trigger warnings” (alertas sobre textos potencialmente chocantes) e se mete em protestos exóticos, entre outras esquisitices.

O caso concreto que tenho em mente é o de Ronald S. Sullivan Jr., advogado e professor de direito em Harvard. Sullivan ocupava também, desde 2009, a posição de “dean” (diretor) da Winthrop House, uma
das residências para graduandos da universidade.

Os problemas começaram quando Sullivan aceitou advogar para Harvey Weinstein, o produtor de Hollywood acusado de crimes sexuais em série. Alunos se sentiram ultrajados e pediram a cabeça do acadêmico. A administração de Harvard cedeu à pressão e anunciou que não renovará o contrato de Sullivan como “dean”, embora ele conserve sua posição como professor. O New York Times publicou nesta semana um belo artigo dele sobre o caso.

A primeira maluquice dos estudantes é confundir o advogado com seu cliente. Sullivan não é suspeito de nenhum delito. Talvez mais grave, os alunos estão sugerindo que existem crimes tão graves que as pessoas acusadas de tê-los cometido não devem nem ter direito a um advogado. Aliás, nem precisam passar por um julgamento para ser consideradas culpadas. Lamento dizer, mas isso é a negação dos pilares mais básicos do sistema de Justiça ocidental.

Em termos mais gerais, a existência de “safe spaces” e “trigger warnings” depõe contra a própria aventura intelectual. Eu pelo menos me sinto estimulado sempre que me deparo com uma ideia que me tira de minha zona de conforto. Isso é parte inafastável do processo de aprendizagem. Mas isso tudo provavelmente não passa de papo de velho.

Acordo com União Europeia é obra transformadora - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 29/06

Concorrência externa leva países fechados como o Brasil a se tornarem mais eficientes

O Acordo Mercosul-União Europeia anunciado ontem tem dimensão proporcional ao seu ineditismo. Amadurecido em 20 anos de negociações, tem sentido que transcende o simples formato de um acerto econômico transatlântico.

Une 780 milhões de pessoas em Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e 28 países europeus numa inequívoca aposta na cooperação internacional, baseada em princípios da democracia liberal, do livre mercado, da proteção ambiental e do multilateralismo. Juntos, somam 25% da riqueza mundial.

Não é pouco numa época de fragmentação e reedição de políticas nacionalistas, fundadas em unilateralismo populista, às vezes racista e xenófobo, e sempre antiglobalizante.

Sua construção atravessou vários governos, inúmeras vacilações nas duas margens do Atlântico, mas, enfim, se consolidou como notável reafirmação do êxito de um sistema de comércio mundial lastreado em normas de consenso.

Na essência, o acordo revigora o Mercosul e a União Europeia. Abre novas fronteiras de negócios em praticamente todo o comércio de bens e serviços nos dois continentes. Adota ritmo progressivo na isenção de tarifas. Obriga à sintonia na modernização de regulações de mercados, das normas setoriais — inclusive as fitossanitárias — e das regras de propriedade intelectual.

Libera 99% das exportações agrícolas do Mercosul, com 81,7% sem tarifas e regime de cotas ou preferências fixas para os 17,3% restantes — fica de fora uma centena de produtos.

Determina queda de tarifas de importação de bens de capital e de insumos, o que induz a aumento da produtividade industrial.

Facilita as compras governamentais, a integração de cadeias produtivas, investimentos em tecnologia, pesquisa, inovação, na infraestrutura e no setor de serviços. E em alguma medida abre economias fechadas como a brasileira ao exterior.

O comércio exterior ganha mais relevância no Produto Interno Bruto brasileiro. Haverá, é certo, maior competição doméstica em serviços e na indústria com consequências deflacionárias para os consumidores.

Alguns segmentos tendem a ser beneficiários de um crescimento expressivo a médio prazo. É o caso da indústria têxtil, que projeta aumento de 30% nas exportações para a Europa nos próximos cinco anos.

Entre os efeitos mais importantes está a necessidade de mudar a estrutura produtiva do Mercosul, com reformas amplas no setor público, para melhorar a solvência, a infraestrutura e dinamizar as relações entre agentes econômicos. Será preciso, também, novos padrões de gestão no setor privado — desde a prioridade a investimentos na base tecnológica, para aumentar o poder de competição, até a introdução de normas mais rígidas de controle, transparência e prestação de contas a acionistas e investidores.

O acordo é uma obra política histórica, transformadora a longo prazo. Precisa sobreviver à normal alternância no poder das democracias.