Por incrível que pareça, é possível criticar Trump sem canonizar terroristas
FOLHA DE SP - 11/01/2020
Deprimente. Patético e deprimente. Em finais de outubro de 2019, os Estados Unidos eliminaram Abu Bakr al-Baghdadi. Se o leitor consultar a Wikipédia, verá que al-Baghdadi era o líder do Daesh, a organização terrorista que encantou o mundo com suas decapitações e barbaridades.
Infelizmente, uma parte da mídia relegou esse pormenor para segundo plano. Eu sei porque vi: estava na terra do Tio Sam e jornais como o “Washington Post” apresentavam al-Baghdadi como um “austero académico religioso”. Como Joseph Ratzinger, talvez? Como um Dalai Lama iraquiano?
Eis o processo mental que ocorreu na cabeça dessa gente: al-Baghdadi foi executado por Trump; Trump é mau; donde, al-Baghdadi só podia ser bom. O ódio anti-Trump é como certos vírus: instala-se na cabeça do hospedeiro e reduz a massa encefálica a farofa.
Passaram dois meses. Aconteceu o mesmo com Qassim Suleimani, o ex-comandante da Força Quds que espalhava o terror pelo Oriente Médio na tentativa de exportar a teocracia iraniana.
Nos comentários à sua morte, Suleimani passou a ser um grande general, um herói, até um mártir. Alguns, tomados por excitação adolescente, falaram de Suleimani como “o Rommel da Pérsia”.
Isso é elogio? Aplaudir Suleimani por ser como um general nazista? É sério?
Atenção: não está aqui em causa o acerto ou a desacerto de Donald Trump em matar Suleimani. Embora, aqui entre nós, ainda esteja por provar que a decisão de Trump dificultou qualquer negociação com Teerã.
Suspeito que, pelo contrário, só com a remoção da influência maligna do “Rommel da Pérsia” será possível dialogar com os aiatolas.
A própria retaliação do Irã contra duas bases militares que abrigam soldados americanos, milimetricamente calculada para não causar qualquer baixa entre as tropas, parece mais uma peça de teatro para consumo interno do que propriamente uma vingança digna desse nome.
Mas isso são outros assuntos. Porque o assunto principal está no padrão: Suleimani foi executado por Trump; Trump é mau; donde, Suleimani só podia ser bom.
Esse tipo de “raciocínio” (digamos assim) parece uma repetição do flerte intelectual que a revolução iraniana de 1978-1979 provocou em certos intelectuais do Ocidente.
O caso de Michel Foucault, muito bem documentado em livro que recomendo (“Foucault e a Revolução Iraniana”, de Janet Afary e Kevin Anderson, editado pela É Realizações), é o exemplo máximo da estupidez e da mendacidade que ataca alguns espíritos.
Em 1978, Foucault viajou para o Irã (duas vezes) para reportar os avanços da revolução. Sim, o regime autoritário de Reza Pahlavi, que governava o país há quase 40 anos, não era recomendável.
Mas Foucault foi mais longe e viu na luta dos islâmicos a promessa de uma nova era – uma nova “espiritualidade política”, enfim, capaz de salvar o Ocidente da sua decadência intelectual e do seu anti-heroísmo burguês.
Dizer que Foucault se enganou seria um gigantesco eufemismo. Digamos apenas que, na república teocrática que Foucault aplaudia, ele seria o primeiro a ser executado por suas preferências sexuais.
Em matéria de liberdades cívicas e pessoais, o Ocidente decadente e anti-heroico, pelos vistos, ainda era um destino preferível –uma evidência que até Simone de Beauvoir, em nome das mulheres iranianas que seriam rapidamente enclausuradas por Khomeini, conseguiu perceber sem esforço.
Passaram quarenta anos. Parece que regredimos outros quarenta. Para uma parte da inteligência ocidental, criticar Trump e, ao mesmo tempo, reconhecer Qassim Suleimani como um criminoso de guerra é um exercício arriscado que pode provocar uma explosão neuronal.
Um erro, gente. Por incrível que pareça, é possível criticar Trump sem canonizar terroristas. A cabeça aguenta.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.