Familinhas
MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 31/08/11
"Famílias, eu vos odeio", escreveu André Gide, em 1897. "Lares circunscritos; portas bem trancadas; ciumentas apropriações da felicidade."
O narrador de "Os Frutos da Terra" tinha razões claras para tanto ódio. Queria, em primeiro lugar, uma vida sem compromissos que se lançasse pelo mundo em busca do prazer sensorial."
Queria, também, arrancar da proteção dos pais o adolescente que se dispusesse a acompanhá-lo na aventura. "Por vezes, oculto pela noite, eu ficava longamente à espreita na vidraça, contemplando os hábitos da casa. O pai estava ali, perto de uma lamparina; a mãe costurava; um menino, perto do pai, estudava -e meu coração se inchou do desejo de levá-lo comigo pelas estradas."
"No dia seguinte", prossegue o narrador, "eu o revi; no dia seguinte falei com ele; quatro dias depois, ele largou tudo para me seguir". Era bastante ousado para 1897.
Diga-se, pelo menos, que Gide não traça um quadro totalmente negativo das famílias odiadas. Não fala de opressão, de desajuste ou de tragédia. Eram famílias "burguesas", pacíficas, felizes, cujo maior pecado estava no fato de se fecharem no vasto mundo. Em São Paulo, a moda agora é colar na traseira do carro uns adesivinhos retratando o ideal de "família feliz".
Lá vai, grudado na Zafira prata, o desenhinho infantil do pai, da mãe, dos filhos pequenos de mãos dadas. Na banca de jornal, pode-se encontrar também adesivos da vovó, do vovô, do cachorro, do gato, do peixe no aquário.
Gosto de vê-los. Também as famílias, em parte contrariando Gide, lançam-se pelas estradas; o carro é um lar que se move a caminho do Hopi Hari -e as mães não costuram mais. Há quem exagere, claro. Algumas famílias se transformam em verdadeiros times de futebol. Unem-se, pela extensão toda da traseira, pais, filhos, tios, avós, empregadas, primos; não caberiam em duas Kombis, quanto mais no Corsa preto à minha frente.
Acho que com isso se desvirtua um pouco o espírito da coisa. A familinha no adesivo deveria representar exatamente as pessoas que vão dentro do carro. Sugere-se, com isso, algum respeito e mesmo carinho no ambiente selvagem do trânsito.
Provavelmente, a iniciativa de colar as figurinhas não partiu dos adultos. Comigo, pelo menos, foram as crianças que quiseram. Natural que, numa mistura de generosidade e posse, façam questão de ter o máximo de personagens presentes.
Provém das crianças, sem dúvida, o maior desejo de que suas próprias famílias sejam assim, irmanadas, fixas, grudadas para sempre, nem que seja só na traseira do automóvel.
Há também o impulso de toda felicidade, que é o de proclamar-se a si mesma, como fazem, em média, os passarinhos. Mudou bastante, em todo caso, o espírito dos adesivos de automóvel. No começo, serviam para as campanhas eleitorais. Com o tempo, a maioria das pessoas começou a sentir que havia algo de otário nesse comportamento.
Nada pior do que os adesivos de "Collor Presidente", persistindo no vidro de trás, a despeito dos esforços para arrancá-los. Tripas e frangalhos desbotados continuaram em circulação, anos depois do impeachment. Veio depois a moda das grifes, das lojas, das universidades americanas. O motorista informava aos interessados ter sido aluno da Columbia University, ou que comprava seus sapatos na Side Walk.
Fora uma ou outra camisa de futebol, o interessante das novas familinhas adesivas é que não procuram afirmar nenhuma identidade por enquanto.
Ninguém quer se diferenciar pelo fato de consumir isso ou aquilo, de ter estudado neste ou naquele lugar. Afirma-se, antes de mais nada, o fato de ser uma família "como todas as outras".
"Eu não sou como os outros, eu não sou como os outros", chorava o pequeno André Gide, ao voltar da escola, nos braços de sua mãe. Ninguém é. Ele teve, pelo menos, o consolo de que sua mãe, naquele momento, foi como todas as outras.
Segue então o seu caminho, no sinal verde, o carro à minha frente, com sua fileira de pessoinhas de braço dado. À direita, outro carro também vai com sua familinha igual; outro, à minha esquerda. Vem-me o desejo, infantil também, de que todos esses adesivos, esticando-se de carro a outro, se juntem e se deem as mãos. Seria um belo congestionamento, pelo menos.
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