domingo, janeiro 29, 2012

Mario Draghi e o duplo equilíbrio - AFFONSO CELSO PASTORE


 O Estado de S.Paulo - 29/01/12


Um dos problemas mais graves enfrentados por vários países da UE é o da existência de uma dinâmica perversa da dívida pública. As dívidas com relação ao PIB atingiram patamares muito elevados depois da crise de 2007/08 e para que sejam reduzidas, cada país tem de gerar superávits primários maiores do que o produto da relação dívida/PIB pela diferença entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico. Se isso não ocorrer, a relação dívida/PIB cresce ilimitadamente, provocando o default.

Há, assim, dois equilíbrios possíveis. O "bom equilíbrio" será atingido se forem gerados superávits primários suficientemente elevados, que atendam à restrição acima. Mas se o crescimento explosivo da dívida não for interrompido, chega-se ao "mau equilíbrio", apontando para o default.

Ocorre que as taxas de crescimento do PIB dos países da união monetária, que já eram baixas antes da crise, tornam-se ainda menores com os ajustes fiscais necessários para truncar a trajetória explosiva da dívida. Em adição, a elevação dos superávits primários encontra barreiras de difícil transposição. Primeiro, a UE não é um país, mas um agregado de países soberanos que terão de se submeter a regras de governança, impondo limites de dívida e de superávits primários, que têm de ser aceitos por todos os países-membros e em grande parte incluídos em suas legislações. Segundo, porque os ajustes e as reformas terão de ser tanto mais profundos quanto maior for a adesão de cada país ao "welfare state" no qual ingressaram após a 2.ª Guerra Mundial, e quanto maior for a diferença de sua (baixa) competitividade com relação à da Alemanha. Terceiro, porque os ajustes fiscais necessários desaceleram o crescimento e/ou acentuam a recessão.

A gravidade do problema se acentua porque crises de dívida soberana e crises bancárias vêm juntas. Devido às perdas em suas carteiras de bônus de dívida soberana, os bancos na Europa estão subcapitalizados, e na impossibilidade de levantar capital somente lhes resta reduzir a oferta de crédito, o que diminui ainda mais o crescimento econômico e/ou aprofunda a recessão. Se nada for feito, vários países da UE irão para o "mau equilíbrio", e a profecia de ocorrência de um default se autorrealizará.

Porém, a solução do problema exige mais do que a realização das reformas e do ajuste fiscal. Com os investidores percebendo o elevado risco de default, ocorre uma forte contração da demanda por bônus de dívida soberana, como é demonstrado pela elevação dos seus prêmios com relação aos bônus alemães de igual período de maturação. Com isso, acentua-se a diferença entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico, piorando ainda mais a dinâmica perversa da dívida pública. Mesmo que os países aceitem a "condição necessária" para o retorno ao "bom equilíbrio", que são as reformas e o ajuste fiscal, terão de contar com um "salvador de última instância" que realize compras suficientemente grandes de bônus de dívida soberana impedindo que a elevação da taxa de juros acentue a dinâmica perversa da dívida.

Há, nesse campo, três possíveis "tábuas de salvação". A primeira é o ESM, mas ele não é suficientemente grande para realizar essa tarefa. Afinal, para engordá-lo os países teriam de elevar ainda mais a sua dívida, agravando o problema, em vez de diminuí-lo. A segunda é o FMI, mas mesmo que levante recursos com EUA, China e outros países, não pode emprestar ao ESM, nem comprar diretamente bônus de dívida soberana. Como o FMI somente pode emprestar a países em troca de condicionalidades impostas a programas negociados entre as partes, pode ajudá-los na execução desses programas. Será uma ajuda complementar importante, mas não supera o problema imposto pela sua incapacidade de agir como um comprador de última instância, impedindo a ocorrência de taxas de juros tão elevadas que tornem explosiva a trajetória da dívida. A última é o próprio BCE. Porém, ele não pode ser um comprador de quantidades ilimitadas de títulos de dívida soberana, porque com isso estaria cristalizando a "dominância fiscal", o que eliminaria qualquer estímulo à prática de políticas fiscais responsáveis e destruiria os fundamentos do euro, que se deseja preservar como arranjo monetário.

O impasse persistiu até a entrada de Mario Draghi na presidência do BCE. Primeiro, Draghi entendeu que o "mau equilíbrio" tem de ser evitado, e que para isso pode usar todo o espaço legitimamente aberto a um banco central. Não pode ser um comprador de quantidades ilimitadas de bônus de dívida soberana, mas pode e deve agir para evitar uma crise bancária, que é um mandato de qualquer banco central.

Ao percorrer esse caminho, Draghi descobriu que sem se submeter à dominância fiscal pode melhorar a própria dinâmica de dívida dos países, ganhando tempo para que as barreiras às reformas e ao ajuste fiscal sejam superadas. Crises bancárias são destrutivas, como ficou demonstrado pela crise de 2008, e para evitá-la decidiu expandir o balanço do BCE, seguindo o caminho percorrido pelo Fed quando iniciou a expansão do seu balanço através do Talf. Além de afastar de imediato o risco de uma crise bancária, a maciça injeção de recursos de prazo maior através do LTRO ( 500 bilhões, aos quais se seguirá uma nova expansão em fevereiro) evita o crunch de crédito que ameaçava as economias da UE (e do mundo). A recessão na Europa seria profunda, agravando ainda mais a dinâmica perversa da dívida pública. Finalmente, obedecendo à sua equação de riscos e retornos, os bancos compram ativos que rendem mais do que a taxa de juros paga ao BCE. O valor presente desse fluxo líquido é um aumento da sua base de capital, que faz o sistema bancário convergir para a normalidade, como ocorreu com os bancos norte-americanos que se beneficiaram do Talf.

Mas sobrou mais um efeito. Os bancos podem comprar quantidades limitadas de bônus de dívida soberana de vencimentos mais curtos, como 2 ou 3 anos, por exemplo. Têm de obedecer à regulação prudencial, que lhes impõe limites, mas não estão tolhidos de seguirem prudentemente por esse caminho. Na medida em que o fizerem, baixam um pouco as taxas de juros nas sucessivas rolagens de dívida, tornando a sua dinâmica um pouco menos perversa. Isso traz o inconveniente de uma redução no prazo médio de vencimento das dívidas, mas essa piora é mais do que compensada pela queda da taxa média de juros. Gera, também, uma forte inclinação positiva da curva de estrutura a termo de taxas de juros, porque as compras concentram-se em vencimentos mais curtos, mas isso é uma consequência de menor importância nas circunstâncias atuais. Desde que essa ação ocorreu, o quadro na rolagem das dívidas melhorou, com a queda das taxas mais curtas.

Finalmente, essa ação gera o enfraquecimento do euro. A tendência é a inversão de um quadro de euro forte que foi paradoxal nos últimos anos, e que somente se explica pela expansão do balanço do Fed, e pela relutância do BCE em seguir o mesmo caminho. O euro não havia se fortalecido, naquele período, porque a Europa estava com uma economia sólida, mas simplesmente porque os Estados Unidos aderiram à expansão monetária. O enfraquecimento do euro ajuda o crescimento dos países afetados pela crise da dívida, e essa ajuda é tanto maior porque são economias muito abertas ao comércio internacional.

O sucesso da estratégia de Draghi não está garantido. Há barreiras que precisam ser superadas, como as rolagens pesadas de dívida a partir de fevereiro, e não está afastado o risco de default da Grécia, cuja dívida continua sendo insustentável. Não se chegou à "solução" do problema europeu, mas partiu-se de um diagnóstico correto, e foi aberta a possibilidade de que, ao ganhar tempo, a solução das reformas e dos ajustes fiscais possa ser encontrada e implementada.

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