Ministro corre risco de se tornar bibelô liberal, na contramão de interesses do presidente
Paulo Guedes nem tentou pintar com tons pastéis a demissão simultânea de dois secretários de sua equipe. Ao anunciar a saída dos auxiliares, o ministro foi obrigado a admitir que duas das propostas mais emblemáticas de sua agenda liberal estão politicamente interditadas.
O chefe da equipe econômica quis distribuir a culpa e lançou dúvidas sobre as motivações do que chamou de “debandada”, mas foi obrigado a reconhecer uma das razões desse bloqueio tem as chaves do Palácio do Planalto.
A demissão dos secretários responsáveis pelo programa de privatizações (Salim Mattar) e pela reforma da máquina administrativa (Paulo Uebel) atira Guedes na condição de corpo estranho no governo de um presidente que se livra das vestes que usou como figurino de campanha.
Em 2018, Jair Bolsonaro (sem partido) recitou os sonetos liberais sussurrados pelo economista e conquistou a boa vontade de investidores e empresários. Guedes foi recompensado com superpoderes na montagem do governo, mas jamais recebeu do chefe um apoio genuíno aos projetos que pretendia implantar.
No primeiro ano de mandato, o ministro precisou arrancar do presidente um compromisso pela reforma da Previdência. Bolsonaro cedeu, mas vetou a proposta inicial de Guedes para estabelecer uma idade mínima de aposentadoria igual para homens e mulheres.
A vitória suada deu ilusões de grandeza à equipe do ministro, que preferiu não enxergar a cara feia do presidente para o remédio amargo das reformas econômicas. Embalado pela mudança na Previdência, Guedes orientou seu time a preparar uma reforma ousada da máquina estatal, com regras novas e austeras para o serviço público.
Ainda em novembro, veio o primeiro baile. Bolsonaro foi à portaria do Palácio da Alvorada, anunciou que o projeto estava em elaboração, mas pisou no freio: disse que a proposta seria “a mais suave possível”. O texto foi prometido meia dúzia de vezes para a “semana que vem”. Em junho, o presidente avisou que a ideia estava engavetada até 2021.
Paulo Uebel levou dois meses para perceber que sua razão de permanecer no cargo não existia mais. O secretário pediu demissão, segundo Guedes, em sinal de “insatisfação” com o comportamento do próprio governo.
“Se o presidente da República quiser mandar uma reforma, ela é mandada. Se ele não quiser, não é mandada”, disse o ministro, nesta terça (11). “O outro [o presidente] está dizendo: ‘Vai no ritmo que eu quiser. Eu sou o presidente da República, eu tive o voto. Se você quiser, você sai.”
O secretário decidiu sair, explicitando um projeto econômico cada vez mais desgastado. Bolsonaro resiste à reforma administrativa para evitar problemas com a bancada do funcionalismo no Congresso. Guedes, por outro lado, é o economista ultraliberal que chegou a comparar servidores a “parasitas”.
As resistências ao programa de privatizações também ficam na conta de Bolsonaro. Guedes gostava de anunciar que venderia mais de R$ 1 trilhão em ativos, mas nunca recebeu apoio político para engordar o caixa do governo.
O ministro pode ter acreditado que havia conseguido instalar um verdadeiro apologista dessa agenda na Presidência da República, mas todos os sinais em contrário estavam visíveis.
Em janeiro deste ano, ao falar sobre a proposta de venda dos Correios, Bolsonaro mostrou o que pensava sobre o assunto. “A gente pretende [privatizar ainda em 2020]. Se pudesse privatizar hoje, privatizaria, mas não posso prejudicar o servidor dos Correios”, declarou.
Quando anunciou a saída de Salim Mattar do cargo, nesta terça, Guedes disse que o ex-auxiliar atribuiu sua demissão à dificuldade de tocar esse plano. “O establishment não deixa haver a privatização”, afirmou.
Guedes queria jogar a responsabilidade para a classe política de maneira geral, mas cometeu um excesso de sinceridade e incluiu o governo no bolo.
“O secretário especial vai dizer: ‘Olha, o governo não está me ajudando’. O governo pode dizer: ‘Olha, você tem que se empenhar mais’. Os dois juntos podem reclamar e dizer: ‘Puxa, o Congresso pode nos ajudar mais’. São narrativas, cada um vai ter uma”, justificou.
O ministro que emprestava credenciais econômicas para um presidente sem planos claros nessa área corre o risco de se transformar num bibelô, um objeto decorativo de valor simbólico.
Bolsonaro nunca absorveu a agenda vendida por Guedes e passou se sentir cada vez mais confortável para definir suas posições de acordo com interesses políticos. Em pouco tempo, ele percebeu que a pauta impopular defendida pelo ministro poderia criar embaraços para a reeleição e para sua própria preservação no cargo.
Já a sobrevivência de Guedes será um produto dessas pressões. Além das privatizações e da reforma administrativa, o ministro trava uma batalha pela conservação do limite de despesas públicas, na contramão de outros auxiliares de Bolsonaro.
Antes de confirmar a debandada na pasta, ele avisou que jamais apoiará a flexibilização do teto de gastos. “Se tiver ministro fura-teto, eu vou brigar com ministro fura-teto”, afirmou. O aviso tem cara de ultimato. O próprio Bolsonaro, afinal, sonha em arrumar mais dinheiro para financiar seus planos políticos.