O Estado de S.Paulo
Na ausência de vacina e de remédio eficaz, só o distanciamento social consegue reduzir o contágio e o número de mortes provocadas pela Covid-19. Tal estratégia leva a forte queda da produção, como ocorre em uma guerra convencional, com a diferença de que neste caso o inimigo destrói fábricas e cidades, e as mortes chegam a muitos milhões. Há uma destruição de capital físico, cuja reconstrução exige um “Plano Marshall”, e uma destruição de capital humano, que somente será reposto a longo prazo com os investimentos na educação dos nascidos após o final da guerra.
Embora haja queda temporária da produção e da demanda, o distanciamento social evita a destruição dos capitais físico e humano, preservando o PIB potencial. Os governos elevam significativamente os gastos em saúde e em transferências aos menos favorecidos, e a forte expansão de crédito em escala sem precedentes deve impedir (ou reduzir) a quebra de empresas. Parte do crédito é dirigido ao pagamento dos salários, incentivando as empresas a manter os empregos e a renda dos funcionários. Se fosse uma recessão convencional disparada pela queda de demanda, esta teria que ser imediatamente estimulada. Porém, quando ocorre uma queda simultânea de demanda e oferta, com esta última temporariamente incapacitada de reagir, não há como o multiplicador keynesiano possa funcionar, o que somente ocorrerá quando o freio à oferta for aliviado.
Com as fábricas paradas e as lojas de portas fechadas, não é possível que a oferta responda aos estímulos da demanda. O colapso da receitas das empresas implode os lucros e adia os investimentos, contraindo a demanda, e ainda que o financiamento lhes permita manter o emprego, há uma queda de renda das famílias, contraindo o consumo. Para que a economia se recupere é preciso que a oferta responda à demanda, o que não acontece enquanto persistir o choque de oferta.
Esta não é uma recessão descrita em livros de texto, que se resolve com remédios convencionais. Para evitar a destruição do capital físico e humano a política monetária deve inicialmente ser direcionada a manter as empresas vivas através de crédito abundante, e não há por que impor limites. Ao final, as empresas estarão aptas a produzir, mas isto depende de nossa coragem e responsabilidade de fazer o que é necessário. A reação das empresas será mais rápida e intensa se os funcionários forem mantidos, preservando o investimento feito no seu treinamento. Mas é fundamental que não nos acovardemos. Aos tesouros dos países cabe realizar gastos em saúde que forem necessários – elevando a oferta de leitos de UTI, remédios e equipamentos –, e não economizar nas transferências de renda aos desassistidos, preservando o capital humano. A escala na qual isto já vem ocorrendo nos EUA e na Europa é uma medida do que é necessário.
A previsão é que a paralisação econômica durante o distanciamento social será seguida de uma recuperação, mas infelizmente a recessão na qual já estamos será profunda e duradoura, em escala mundial pior do que a de 2008/09. Há muitos cenários possíveis, todos cercados de muita incerteza, mas serei otimista se projetar que ao final de 2020 o PIB brasileiro tenha se contraído em apenas 5%. Estaremos mais habilitados a crescer em 2021 se formos mais ousados e responsáveis agora, mas sabemos, também, que se sairmos rapidamente do ‘lockdown’, como quer o nosso presidente, correremos o risco de uma nova aceleração do contágio, como em Cingapura e no Japão, o que aprofundaria ainda mais a recessão.
Começamos a enfrentar esta crise com uma situação fiscal frágil, e ao final deste ano teremos uma relação dívida/PIB próxima de 90%. Não é hora de tomar isto como um limite ao que é necessário. Gastemos agora o que for preciso, resistindo à pressão dos oportunistas, que são muitos, com o compromisso de sermos sérios no futuro. A equipe econômica tem a obrigação de reagir proporcionalmente à gravidade do problema sem se acovardar, escondendo-se das críticas de que gastamos demais. Se o fizemos, terá sido para evitar o pior.
A Bolsonaro resta curvar-se aos ensinamentos da ciência e abandonar a arrogância com a qual vem negando a necessidade do isolamento social. Ainda que ele seja contido em seus objetivos, influenciará os mais pobres e menos informados a violarem a quarentena, gerando o risco de uma aceleração da infecção, com consequências econômicas e sociais desastrosas.
Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados
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