Sob o bolsonarismo, obrigatoriamente, viveremos num regime de crises
‘Crédito maligno”, a expressão concebida pelo escritor Augusto de Franco, projeta as condições para aquilo que chamarei de dilema da responsabilidade. Qual seja: a situação do indivíduo convicto da necessidade de se aprovar uma reforma da Previdência potente, mas que, ao mesmo tempo, contempla os riscos decorrentes de entregar descompressão fiscal — logo, capacidade de investimento — a um governo cuja natureza autocrática é tão evidente quanto de operação singular.
Não trato aqui de ameaça fascista nem da possibilidade de uma ditadura conforme o modelo clássico, mas de um projeto de poder autoritário cuja dinâmica, a da campanha permanente, do conflito constante, é de emparedamento da democracia representativa e de rebaixamento das instituições republicanas em prol de uma hierarquia submetida ao governante eleito.
O governo Bolsonaro é um terreno para confronto incessante. Os choques não são pontuais nem podem ser compreendidos como típicos de uma administração ainda no início, mas consistem na exata expressão do grupo bolsonarista mais influente, a autointitulada ala antiestablishment, que não existe senão forjando campos de batalha para a tal guerra cultural. O bolsonarismo, comando para combate, produto do colapso político brasileiro, precisa do fomento continuado a rupturas e da conflagração institucional regular.
Já escrevi que o sucesso de um pacote liberal pujante tracionaria as engrenagens econômicas para que o bolsonarismo pudesse brincar longamente no parquinho ideológico. Ocorre que não é brincadeira. Não nos esqueçamos de que um governo pode ser ruim — nocivo — ao ambiente democrático, à qualidade do convívio social, e, concomitantemente, bem-sucedido em matéria econômica, esse bom resultado bancando os olhos fechados à depauperação dos pesos e contrapesos que ancoram a liberdade.
A história é rica em exemplos de quando a mentalidade econômica liberal, tecnocrata, serviu a projetos autoritários de poder. Não seria novidade nem caberia atribuir ingenuidade aos liberais econômicos; mas, antes, refletir sobre se não teriam entendido que fica mais fácil avançar a agenda sob menos contraditório.
Não é mandatório que um programa econômico liberal dependa de instituições democráticas vigorosas nem é certo que liberais econômicos tenham a democracia liberal como padrão inegociável. Certo é, porém, que o bolsonarismo precisa que algo da agenda liberal encaixe como gatilho — “crédito maligno” — para o lastro material de um esquema autocrático a ser acomodado pela tranquilidade concreta proporcionada, por exemplo, pela geração de empregos.
Aí está o dilema da responsabilidade: quanto estaremos dispostos a comerciar da estabilidade — do equilíbrio — institucional em troca de uma reforma cujo impacto abriria os cofres para um governo que funciona, como regra, na lógica da colisão e que tem, por oxigênio, a necessidade de fabricar inimigos?
Sob o bolsonarismo, obrigatoriamente, viveremos num regime de crises, sob o desgaste de um tempo de imprevisibilidade e do que sempre nos parecerão exceções — a própria negação do espírito de ponderação que caracteriza a democracia. O processo de revolução reacionária bolsonarista não é mera retórica eleitoral — no sentido de que não se esgotou com a vitória nas urnas. É perene, agora vertido em guerra interna contra o establishment encrustado na máquina pública. Um governo que, melhor ou pior gestor, é sobretudo oposição.
É batalha sem fim, briga cujo cerne é a infinitude, guerrilha de mobilização cujo norte é criminalizar a atividade política para deslocar o Poder representativo, o Legislativo, tratado como força intermediária e menor, à posição de acuado que se deve encurralar sempre. Isso está dado. Não há República que prospere assim, embora não seja improvável que a economia o faça; de modo que não será ilegítimo um parlamentar pensar da seguinte maneira, o dilema da responsabilidade agravado pelo instinto de sobrevivência: “Se, sob tamanha crise e precisando de mim, o governo me trata como bandido, como me tratará quando estiver nadando em dinheiro e eu não for mais necessário?”
Como editor e jornalista, tenho pensado: devo apoiar — devo me empenhar por — uma reforma da Previdência trilionária, que sei necessária, se também sei que é a condição fundamental para o financiamento de um projeto autoritário de poder? Tenho pensado, admito, sobre se não haveria solução intermediária capaz de minimizar o problema e empurrar o enfrentamento estrutural da Previdência para uma ocasião mais saudável politicamente.
Nunca tive dúvida de que a democracia liberal — como a temos hoje — não é valor para o bolsonarismo. O ponto é que talvez seja mesmo o empecilho.
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