FOLHA DE SP - 16/04
Hoje, o objeto fálico de comparação social são as séries de TV consumidas
O telefone toca, a pergunta vem logo a seguir. “Quais as suas expectativas sobre a última temporada da ‘Game of Thrones’?” É de madrugada, talvez umas 10 da manhã. Mas a jornalista, se entendi bem, quer saber quais as minhas expectativas blá-blá-blá?
Em estado semiconsciente, respondo: “Nenhuma”. Ela reage: “Como, nenhuma?”. Informo que nunca vi a série. Há uma pausa do outro lado, como se eu tivesse confessado a minha preferência pelo bestialismo, seguida de um “mas você está brincando”.
Digo que sim, que estou, e que as minhas expectativas são as melhores. Nem consigo dormir com tanta excitação. Desligo o celular, preventivamente, para evitar novas investidas. Regresso ao sarcófago.
Não estava a brincar. Nem sequer a conservar o meu sono estilhaçado. Nunca assisti a “Game of Thrones”. Serei normal?
Aliás, os nomes das séries “imperdíveis”, “imprescindíveis”, “incontornáveis” que nunca me tiveram como cliente dariam para cobrir a fachada do Empire State Building. O que significa que sou um pária em certos círculos, onde a “serite aguda” é a patologia da moda.
Explico melhor. “Serite aguda” é uma obsessão autoinfligida em que adultos razoavelmente sãos iniciam uma competição entre eles para descobrir quem vê a maior quantidade de séries recentes.
Mas não só. Dentro das séries recentes, a serite aguda se desdobra em vários sintomas. Um deles é saber quem viu mais episódios da série em causa e, de preferência, em quantas horas.
O vencedor sente um alívio temporário e uma sensação de superioridade que dura até ao lançamento da próxima série. O derrotado questiona se vale a pena viver.
No fundo, é uma exibição de status levada até suas últimas consequências. Houve um tempo em que os adultos se entretinham a comparar os restaurantes que frequentavam, as férias que faziam, até as notas que os filhos tiravam na escola.
Não mais. Hoje, o objeto fálico de comparação social são as séries de TV consumidas.
No início, tentei brincar com o assunto. E, só para confundir, citava séries que ninguém tinha visto pelo simples fato de que ninguém tinha feito. “Você já assistiu ao ‘Mortos de Medo’, a última da Netflix?”, perguntava eu, “sotto voce”, como se revelasse a última preciosidade do universo.
O comparsa, abismado e tão morto de medo como o nome da série imaginária, dizia que não. Depois passava a palavra. Havia sempre alguém que ia no Google e desfazia o equívoco.
Hoje, opto pela verdade, só a verdade, nada mais que a verdade. “Terminei ‘Família Soprano’ há pouco tempo”, digo eu, como se proferisse uma blasfêmia. A incredulidade chega a ser humilhante. “Família Soprano”? De 1999? O que virá a seguir, meu Deus? “O Barco do Amor”? Risos alarves.
Artisticamente falando, a obsessão pela novidade não faz sentido. Basta pensar em outras expressões artísticas, nas quais o estatuto de clássico não justifica nenhuma atitude de desprezo ou repulsa.
Ler Shakespeare, escutar Bach, assistir a um filme de Hitchcock não é pior do que ler o último romance do escritor X, escutar o mais recente CD do compositor Y ou perder duas horas de vida com o filme recém-estreado do diretor Z. Às vezes, optar pelo clássico é até bem melhor —e, no meu caso, uma fonte recente de melancolia.
Sei do que falo. Todos os dias, quando entro na biblioteca da casa, passo os olhos pelos títulos que vejo nas estantes e um pensamento triste faz o seu ninho nos meus neurônios. “Já não tenho tempo para ler isso tudo.”
Verdade. Nunca tive. Nunca temos. Mas, a caminho da meia-idade, o tempo acelera como nunca e a finitude abate-se sem aviso sobre qualquer bibliófilo racional.
Traduzindo: fará sentido ler o romance “incontornável” da semana quando nunca li do princípio ao fim o “À la Recherche...” de Proust (ou, por falar nisso, o seu discípulo inglês, Anthony Powell)?
Os ansiosos das séries não me parecem racionais. Parecem-me filistinos, no sentido em que Matthew Arnold usou o termo no século 19. A cultura, para eles, não é uma forma de enriquecimento espiritual.
A cultura, sob a forma de séries de TV, é um valor meramente instrumental para exibir status. E, nesse espetáculo, o que interessa não é a qualidade; é a quantidade.
Isso significa que a “Game of Thrones” está fora do meu radar? Errado. Nada está fora. Mas é provável que só espreite o assunto em 2020, ou 2021. Ou nunca.
Há prioridades na vida. “O Barco do Amor” pode ser uma delas.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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