FOLHA DE SP - 09/04
O 'thatcherismo' podia ser tudo o que quisessem, mas não era burro como versão agora em voga na Europa
Margaret Thatcher foi assassinada por imitadores de quinta categoria muito antes de morrer de fato.
Refiro-me, como é óbvio, aos líderes europeus que vêm adotando políticas de rigor orçamentário e privatizações selvagens, duas das grandes marcas do "thatcherismo", mas de uma maneira burra.
O que estão conseguindo com esse "austericídio", como alguns o chamam, é levar a democracia ao coma.
Há pelo menos duas diferenças essenciais entre o thatcherismo e o austericídio: Thatcher promoveu de fato cortes em programas sociais, mas nem de longe parecidos com os que estão sendo aplicados agora. Basta lembrar que o lendário National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) sobreviveu à era Thatcher, ao contrário do que está sucedendo com a saúde pública em países como Portugal, Espanha e Grécia, por exemplo.
Segundo ponto: dura como era, Thatcher jogou o jogo da democracia tanto que foi reeleita duas vezes, em 1983 e 1987, o que só pode significar que suas políticas eram suficientemente populares para ganhar eleições, goste-se ou não delas.
Já os atuais dirigentes europeus violentam seguidamente a democracia. Impediram, por exemplo, que o então primeiro-ministro grego, Georges Papandreou, promovesse um plebiscito sobre o austericídio, quando dar ao eleitorado a última palavra sobre o que o governo deve fazer é a quintessência da democracia (não é, afinal, o governo do povo, pelo povo e para o povo?).
Segundo exemplo: impuseram à Itália um tecnocrata não eleito, quando precisaram derrubar o bufão que governava o país à época (Silvio Berlusconi). Mario Monti, o tecnocrata, fracassou tão redondamente em sua versão do austericídio que colheu apenas 10% ao tentar legitimar seu governo nas urnas.
Não seria diferente o destino dos governantes da Espanha e de Portugal: neste último, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho é o recordista de impopularidade de todos os tempos. Na Espanha, nem somados os dois partidos que dominaram a política local nestes 36 anos de democracia chegam a 50% (o Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol levariam juntos 47,5% dos votos, se a eleição fosse hoje, quando obtiveram, há escassos 16 meses, 73% dos sufrágios).
Impossível discordar de Adela Cortina, catedrática de ética e filosofia política, quando ela escreve para "El Pais": "Resulta desalentador ver que a Europa, que inventou a democracia na Grécia clássica, que cunhou a ideia da dignidade humana como núcleo da vida compartilhada, que potencializou a racionalidade não só científica mas sobretudo moral, que descobriu o Estado social e a possibilidade de uma comunidade supranacional, traia sua própria identidade com um tenaz empenho suicida".
Antes, no livro "Democracia", o filósofo italiano Paolo Flores D'Arcais já havia escrito que os poderes políticos europeus estão totalmente submetidos às exigências do poder econômico.
A morte física de Margaret Thatcher só acentua a orfandade de uma direita que era inflexível mas não era burra.
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