terça-feira, abril 09, 2013

O mito e o espectro de Hugo Chávez - DANIEL AARÃO REIS

O GLOBO - 09/04

Não é provável que o equilibrista vá cair tão cedo. E, enquanto ele não cair, o mito e o espectro de Chávez permanecerão assombrando inimigos e encorajando amigos


Naquela multidão, longa de quilômetros, manchada de vermelho, não havia espaço entre os corpos comprimidos. Os rostos, expressão de dor, perplexidade e reverência chegaram a esperar vinte horas para, em última homenagem, observar com olhos tristes o defunto. A morte prevista de Hugo Chávez, temida e recusada por uns, desejada e festejada por outros, acontecera, afinal, em 5 de março passado. Deixando o mundo dos vivos, o destino do líder já estava traçado na doença que o corroera: um mito encorajador para os amigos, um espectro amaldiçoado pelos inimigos.

No contexto da polarização radical que marcou sua trajetória, tornou-se difícil formular uma análise objetiva. Para os adversários, um chefe carismático e histriônico, mais um, na tradição populista desta infeliz América Latina carente de sólidas instituições democráticas, um demagogo boquirroto com aspirações ditatoriais. Para os admiradores, uma autêntica liderança popular, responsável maior por um processo reformista revolucionário que, resgatando o que de melhor existe na tradição nacional-estatista de Nuestra América, abriu perspectivas para o “socialismo do século XXI”.

As eleições presidenciais em curso, marcadas para o próximo 14 de abril, só têm acentuado e radicalizado as divisões. Para Nicolás Maduro, candidato do Partido Socialista Unificado da Venezuela/PSUV, designado pelo próprio Chávez, que o visita em sonhos, como sucessor, trata-se de executar o testamento do chefe desaparecido, manter a revolução, garantir as conquistas sociais realizadas, aprofundar a democracia e derrotar o golpismo das direitas empedernidas, racistas, elitistas e subservientes aos Estados Unidos. Para Henrique Capriles, candidato da larga coligação oposicionista, a Mesa da Unidade Democrática/MUD, em que se incluem forças e personalidades de direita e de esquerda, alguns ex-chavistas, trata-se de quebrar a marcha batida para a ditadura em que o pais se encontra e, preservando as chamadas “conquistas sociais”, combater os problemas que ele denuncia como persistentes: inflação, corrupção, criminalidade.

As gentes que mancharam de vermelho as ruas de Caracas, descontada a tradição necrófila latino-americana, têm razões para lamentar a morte de Chávez. Políticas cobrindo áreas diversas — educação, saúde, elevação de salários, distribuição de alimentos a baixos preços, as chamadasmisiones sociales — fizeram desabar os índices de pobreza, de 50 para 30%, e de miséria, de 20,3% para 8,5%. Caiu verticalmente a mortalidade infantil. As desigualdades sociais, ainda elevadas, reduziram-se e a Unesco declarou o pais “livre do analfabetismo”. Obras de infraestrutura e programas habitacionais permitiram que muitos ingressassem no mercado de trabalho formal.

Além disso, o país assumiu um inédito papel nas relações internacionais, elevando a autoestima dos venezuelanos. Beneficiado por uma conjunção de circunstâncias favoráveis — crescimento notável dos preços do petróleo (o país possui uma das maiores reservas mundiais, atrás apenas da Arábia Saudita), nova onda nacional-estatista nas Américas ao sul do Rio Grande, enfraquecimento relativo da capacidade de intervenção dos EUA — Chávez multiplicou iniciativas: a Aliança Bolivariana/Alba; a Comunidade de Estados Latino-Americanos e caribenhos/Celac; a União das Nações Sul-Americanas/Unasul, o ingresso no Mercosul. Em todas as articulações, um objetivo estratégico: constituir espaços latino-americanos livres da presença — e da influência — dos EUA. Um velho sonho de Bolívar e de outros pensadores latino-americanos, como Antonio José de Sucre, José Martí, José Carlos Mariátegui e Carlos Marighella.

O interessante é que o processo adquire um caráter social, não se reduzindo, como querem alguns, à figura de Chávez. A rigor, a ascensão do líder foi precedida por movimentos sociais de envergadura, como o Caracazo, insurreição popular ocorrida em fevereiro de 1989. Dirigida contra o então presidente Carlos André Perez, associado a uma política ultraliberal e antipopular, o levante engrenou um movimento que levaria Chávez, dez anos depois, à presidência da república. Esta dinâmica subsiste e tem adquirido vigor com os Conselhos Comunais. Segundo trabalhos feitos por jovens pesquisadores brasileiros, como Mariana Bruce e Felipe Addor, mesmo não ignorando a iniciativa do Estado, e seu papel ainda preponderante, há evidências claras de um movimento desde abajo que exprime protagonismo social e reivindicação de autonomia numa escala inédita na história do país.

A experiência venezuelana ainda é recente e parece, às vezes, um equilibrista em corda bamba. No entanto, e para além das paixões enviesadas, não é provável que o equilibrista vá cair tão cedo. E, enquanto ele não cair, o mito e o espectro de Chávez permanecerão assombrando inimigos e encorajando amigos.

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