O Estado de S. Paulo - 09/06
É difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas visto até aqui
“O orgulho nacional é, para os países, o que a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o autoaperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidade, excessiva autoestima pode produzir arrogância. Mas, assim como muito pouca autoestima torna difícil dispor de coragem moral, orgulho nacional insuficiente torna improváveis debates políticos vigorosos e eficazes” (Richard Rorty)
Há exatos 16 anos comecei a escrever neste espaço. Assim abria meu primeiro artigo (Falsos dilemas, difíceis escolhas): “Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico – apesar das aparências em contrário”. Havia, então, razões para um realismo esperançoso; para crer que estávamos em processo de aprendizado que poderia vingar – se a ele fosse dada continuidade.
O governo Lula tinha, então, a mesma idade do governo Bolsonaro, que tem à frente problemas domésticos e internacionais não triviais. As circunstâncias de hoje são muito mais adversas que as de então. Ali, o contexto internacional era cada vez mais favorável, a herança não era maldita e a política macroeconômica não era aquela que o PT havia defendido – pelo contrário.
Dada a gravidade da hora, é valiosa a recomendação final da epígrafe de Rorty: tentar tornar prováveis debates políticos “vigorosos e eficazes”. Isso exige a superação da excessiva polarização atual e o gradual deslocamento para o centro; exige atenuar as posições extremadas que hoje marcam o precário debate nas redes sociais.
Rorty escreveu a propósito de seu país, os EUA. Argumentou que a “esquerda” americana não deveria deixar a “direita” se apropriar totalmente da bandeira do orgulho nacional e do patriotismo; e que os debates não seriam “imaginativos e produtivos” a menos que “o orgulho sobrepujasse a vergonha”. Raymond Aron, por sua vez, recomendava que espectadores engajados deveriam evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti, que os dois gumes da lâmina contivessem os excessos, seja de otimismo seja de pessimismo. Todos – Rorty, Aron e Giannetti – tinham em mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem o diálogo e a busca das convergências possíveis. Que sempre existem.
O importante é que ganhem espaço a moderação, o diálogo e a tolerância. Esse sonho tem de ser construído ao longo dos próximos meses e anos. Porque é difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros seis meses deste governo. Seria possível argumentar que essas incertezas são apenas reflexo de longo processo de aprendizado em curso; dores do crescimento de uma ainda jovem República democrática. O fato é que antes de Bolsonaro, e desde 1945, o Brasil elegeu, pelo voto direto, oito presidentes da República. Quatro antes do regime militar de 1964-1985 (Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio); e outros quatro desde então (Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma). Nada menos que quatro destes oito não terminaram seu mandato. O atual presidente desempatará este 4 x 4 – de uma maneira ou de outra.
Em qualquer país do mundo, a grande maioria da população tem pouca memória em relação ao passado geral e escasso horizonte de longo prazo à frente. Tomada pela vida privada, afazeres cotidianos, carece de paciência para conceitos, discussões técnicas e informações estatísticas. Apesar disso, pude perceber na prática, ao longo de décadas, o acerto da observação de um dos mais perspicazes analistas do desenvolvimento econômico, social e político. Refirome ao excelente texto de Albert Hirschman sobre democracia e debates públicos.
“Com grande frequência, os participantes desse debate têm apenas opinião inicial e incerta sobre as questões de políticas públicas. Anunciam com convicção sua visão, mas sua posição mais articulada surge apenas através da discussão, por vezes de prolongadas deliberações; cuja função é desenvolver argumentos, obter informações. Posições finais podem distar muito das iniciais – e não apenas como resultado de compromissos políticos com forças opostas.”
Neste processo estamos e não temos alternativa senão nele persistir. Há exatos quatro anos concluí com a seguinte observação o artigo Tudo muito pouco usual, neste espaço: “Estamos, talvez, no começo do fim de um ciclo, ao longo do qual uma determinada visão e uma determinada política ultrapassaram, por larga margem, sua funcionalidade, relevância e utilidade”. Não tenho nada a modificar nessa conclusão; exceto retirar a palavra talvez.
As razões para tal são hoje conhecidas: o investimento no Brasil começou a declinar no terceiro trimestre de 2013, caiu 26% até o final de 2015 e 33% até o final de 2016. Hoje, está ainda 27% abaixo de seu pico. A economia cresceu de 2011 até 2018, em média, 0,6% ao ano, o que significa uma queda da renda per capita, que ainda hoje é inferior ao nível de 2010. É a mais grave crise que jamais tivemos, e a de mais longa duração. São inegáveis as consequências em termos de desemprego, qualidade dos serviços públicos, desalento, distribuição de renda e carências sociais. Este 2019 será o sexto ano consecutivo de déficit fiscal primário do governo federal. Ao que tudo indica, 2020 será o sétimo e 2021, o oitavo, dada a crise das finanças estaduais e municipais. Turbulenta década esta segunda do século 21.
Ainda assim, neste primeiro dos invernos do governo Bolsonaro, o Brasil não tem alternativa senão continuar a tentar. Tentar mostrar, a si próprio e ao mundo, que é capaz de avançar em termos de maturidade política e de elevação do nível do debate econômico sobre questões fundamentais: por que crescemos tão pouco, por que é tão desigual a distribuição de oportunidades; por que é tão penoso fazer as reformas. Volto ao realismo esperançoso de Hirschman: há que tê-lo. Apesar – e por causa – das aparências em contrário.
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