ESTADÃO - 26/03
Creio ser impossível vingar essa ideia de Jobim, restam-nos as emendas pontuais
O Fórum Estadão, oportuna iniciativa do Estado, cujo tema de fundo é A Reconstrução do Brasil, iniciou-se na manhã de 27/2 com instigante debate em torno da Constituição. Participaram os juristas Eros Grau, Nelson Jobim e Joaquim Falcão, os dois primeiros ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o último, professor da Fundação Getúlio Vargas.
As opiniões foram unânimes: com a Constituição de 1988 é impraticável governar. Além de críticas ao STF pelo excesso de protagonismo, despertou a atenção a proposta feita pelo ministro Nelson Jobim de se “fazer uma lipoaspiração na Constituição” e dela retirar todos os “excessos para reconstruir a harmonia dos Poderes”.
A prolixidade da Lei Fundamental, apontada pelo ministro Eros Grau, teve como uma das causas a força de corporações, associações e sindicatos empenhados em converter em garantias constitucionais todas as expectativas. O professor Joaquim Falcão destacou o tratamento dispensado aos servidores públicos, que “têm 16 vezes mais chances de levar temas para julgamento no Supremo Tribunal Federal em comparação com trabalhadores da iniciativa privada”, os quais, apesar da posição de inferioridade, gozam da proteção de 6 artigos, 42 incisos e 4 parágrafos.
Com 250 artigos, 114 disposições constitucionais transitórias e 99 emendas, a Lei Superior perde em extensão apenas para a da Índia. E me traz à lembrança a frase do jurista espanhol Pablo Lucas Verdú: “La prolijidad de uma Constitución se paga al precio de la dificultad de su interpretación. La dificultad de su interpretación com el fracaso de su aplicación” (Curso de Derecho Politico, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, 440).
Uma das razões da prolixidade reside na manobra política que viciou a eleição dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte. É impossível ignorar que 459 deputados e 72 senadores, eleitos em 15/11/1986, foram beneficiados pela sobrevida assegurada ao Plano Cruzado I, decretado em 28/2/1986, tardiamente substituído pelo Plano Cruzado II, baixado em 21/11/1986, seis dias após o pleito. Anos depois admitiu o presidente José Sarney, sobre o Cruzado II: foi o “maior erro que cometemos no governo e por ele paguei muito caro”.
Com 559 membros na maioria jejunos em técnica legislativa e despreparados em matéria constitucional, os resultados não poderiam ter sido mais desastrosos. O regimento interno teve a relatoria do senador Fernando Henrique Cardoso. Foram criadas 8 comissões temáticas, compostas por 63 membros cada uma, divididas em 3 subcomissões. A tarefa principal ficou reservada à Comissão de Sistematização, integrada por 49 constituintes e presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral, a figura “mais poderosa, com extrema influência política na condução do anteprojeto”.
Em nome da preservação das liberdades democráticas, ao invés de qualificado grupo de constitucionalistas, tivemos anárquica assembleia cujos trabalhos se desenvolveram sem anteprojeto ou projeto. O texto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, ou Comissão de Notáveis, criada pelo presidente Sarney por decreto, foi rebaixado a relatório e enviado ao arquivo do Ministério da Justiça. Quatro vetores orientaram os trabalhos da Constituinte: o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade.
Segundo os professores Yan de Souza Carreirão e Débora Josiane de Carvalho de Melo, da Universidade Federal de Santa Catarina (Representação Política na Assembleia Nacional Constituinte – 1987/1988), “durante o processo foram apresentadas 61.020 emendas e 122 emendas populares”. À Comissão de Sistematização foi enviado 1 milhão de assinaturas favoráveis à reforma agrária e 500 mil pela estabilidade no emprego.
Sendo impossível governar com ela, que destino dar à sétima Constituição republicana? A convocação de assembleia constituinte esbarraria no primeiro obstáculo: quem teria a prerrogativa de fazê-lo? As seis Constituições anteriores resultaram de golpe. A exceção é a atual, cujas raízes se encontram na eleição indireta de 1985, vencida por Tancredo Neves, comprometido com a redemocratização do País. Morto Tancredo, Sarney assume a obrigação e envia ao Congresso Nacional, em junho de 1985, a Emenda n.º 85, aprovada em 26/11, com a determinação de senadores e deputados eleitos em 1986 se reunirem em Assembleia Nacional Constituinte no dia 1.º/2/1987.
Poderia o presidente Michel Temer, ou quem vier a suceder-lhe, redigir e submeter ao Congresso projeto de Constituição, como acabou de fazer no Chile a então presidente Michelle Bachelet (Estado, 7/3). O presidente Castelo Branco o fez mediante o Ato Institucional n.º 4/1966, ao ordenar que o Congresso Nacional se reunisse extraordinariamente, de 12/12/1966 a 24/1/1967, para “discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República” (artigo 1.º). Na data aprazada a Constituição foi promulgada. Os tempos são outros. Ao invés do regime militar, temos o Estado Democrático de Direito. No Congresso escasseiam juristas. Embora impraticável, a Lei Magna será mantida e quando possível e conveniente, obedecida.
Se houver como eleger nova Constituinte, presenciaremos a repetição dos problemas na elaboração da Constituição de 1988. Atores, coadjuvantes e figurantes serão outros, mas o enredo não será diferente. Creio ser impossível vingar a ideia da lipoaspiração, apresentada por Nelson Jobim. A quem competirá determinar quais dispositivos serão sacrificados?
Excluída medida de arbítrio, resta-nos prosseguir no acidentado caminho das emendas pontuais. Quem sabe venhamos a ser governados, em algumas décadas, por Constituição merecedora do nome?
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
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