O GLOBO - 16/02
Histórias passadas em hotéis, do Rio de Janeiro a Nova Orleans
Hotel Perpignan, Paris
Pela janela eu via os edifícios ocres do bairro em que vivíamos. Eu tentava desenhar um toureiro no momento em que ele crava a espada na carne suada do touro. Minha mãe entrou chorando no quarto do hotel: “Mataram o Martin Luther King!”, disse, brandindo um jornal enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Hotel Prins Hendrik, Amsterdã
Não saberemos jamais no que pensava Chet Baker quando despencou da janela do hotel para a morte. Podemos supor que se lembrava do céu azul na primavera em Yale, Oklahoma, onde nasceu, muito longe dali. Testemunhas declararam que havia gaivotas sobrevoando o local e que seus guinchos remetiam ao som de um trompete.
Hotel Intercontinental, Bora-Bora
Acordamos de madrugada com o vento rugindo. Uma arraia gigante deslizava sob o chão de vidro da palafita como se fugisse de alguma coisa. Ligamos para a recepção: “É o tufão?”. “Não”, respondeu o recepcionista. “É só o vento.” Quando amanheceu ainda não tínhamos pegado no sono. Ventou forte durante três dias.
Hotel Saint Peter House, Nova Orleans
O investigador González não acreditou no que viu. “Como esse cara conseguiu morrer assim?”, pensou. O cadáver se enrolava como um pretzel debaixo da mesa do quarto número 37. A polícia nunca concluiu se foi homicídio, overdose ou algum tipo de bruxaria. González ficou indiferente quando soube que o morto era Johnny Thunders, ex-guitarrista dos New York Dolls.
Hotel Novo Mundo, Rio de Janeiro
De madrugada, ao voltar para o hotel, reparei mais uma vez na placa comemorativa do milésimo gol de Pelé, que se hospedara ali no dia do jogo histórico. Eu ainda não conseguira dormir quando o sol nasceu sobre o aterro, iluminando os jardins de Burle Marx. Desci para o café. Peninha estava sentado sozinho numa mesa. Ovelha servia-se de ovo mexido.
Hotel Royal, Porto Alegre
“O quarto é muito pequeno, chê”, disse a mulher para o poeta Mário Quintana. “Não me conformo que tenham te despejado do Majestic. O quarto lá era muito melhor!”. “Eu moro em mim mesmo”, confortou-a o poeta. “Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder minhas coisas.”
Hotel Chelsea, Nova York
Quem entra no quarto número 100 do hotel não consegue deixar de olhar fixamente para a porta do banheiro. Se a porta estiver fechada, a morbidez e a curiosidade se aguçam. Algumas pessoas não se contêm e correm para abrir a porta. E então imaginam Nancy Spungen morta com a faca de Sid Vicious enterrada no ventre.
Hotel Rio Poty, Teresina
As portas dos quartos estavam abertas quando o sujeito irrompeu pelo corredor gritando: “Cadê o segurança?”. O que dava consistência à indagação é que ele carregava um revólver. Alguns fecharam as portas, eu corri para a varanda. O segurança tinha agredido o sujeito quando este se aproximara da van, depois do show, atrás de autógrafos.
Beat Hotel, Paris
Quando o gato de madame Rachou caiu de uma janela do quarto andar, os hóspedes pensaram que ele encontrara a morte na calçada da rua Git-le-Coeur. William Burroughs, que morava no hotel, levou o gato para seu quarto. O felino estava vivo e tinha apenas quebrado uma perna. Na companhia do escritor, logo se recuperou. Burroughs preferia gatos a humanos.
Hotel Nikkey, São Paulo
Sozinho no quarto do hotel, eu não conseguia pregar o olho. Não podia voltar para casa, sob o risco de ser encontrado por um oficial de Justiça e ter de cancelar minha viagem para Montreux, onde gravaríamos um disco. A programação da TV já tinha acabado. Olhei o bairro da Liberdade, vazio àquela hora da madrugada, e liguei o rádio. Tocava “Sonífera ilha”.
Hotel Marriot, Atlanta
“Onde é que você meteu o cinto do papai, garoto?”. Meu filho me olhou com aquela carinha de que não fazia a menor ideia. Já tínhamos revirado o quarto do hotel umas cinco vezes. O quarto não era grande. Meu filho vivia fazendo as coisas sumirem. Eu achava que ele era um mágico em potencial. O cinto nunca foi encontrado.
Hotel Ambos Mundos, Havana
Mais cedo, quando visitamos a casa, lembramos das palavras de García Márquez sobre os sapatos do escritor que a habitara. Lá se podem ver igualmente os chinelos no chão do banheiro. À tarde, no quarto 511 do hotel, onde Hemingway também viveu, nada nos impressionou tanto quanto a visão de seus sapatos pela manhã, nem mesmo a luminosidade de Havana entrando pela janela.
Hotel Seventeen, Nova York
De manhã, na fila para o banheiro, vi um junkie desdentado com uma bandana vermelha na cabeça, três garotas punks japonesas — uma delas carregava um estojo de guitarra —, um garoto moreno latino com uma jaqueta de couro e Dorothy, uma senhora alcoólatra que nunca se separava de sua garrafa de gim. “Hi”, eu disse, mas Dorothy tinha o olhar perdido em algum lugar muito longe dali.
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