O GLOBO - 16/02
Já tive oportunidade de denunciar aqui a aleivosia segundo a qual, quando o mundo acabar, lá na ilha nós só iremos saber uns cinco dias depois. Isto é fruto de inveja e despeito contra a pátria itaparicana. Pelo contrário, a julgar por certas circunstâncias, deveremos estar entre os primeiros a ser informados ou até convidados especiais. Em meio aos nossos inúmeros filósofos, pensadores, visionários e estudiosos de alta escatologia, muitos têm opiniões sólidas sobre o assunto e diversos conhecem datas e pormenores copiosos. O finado Americano, que nunca esteve sóbrio um só instante em toda a vida e morreu com uns noventinha, me disse uma vez que um belo dia o mar ia felver, ia felver, escaldar a ilha toda e, logo em seguida, o resto do mundo. Hélio Bríbria, que não larga a Bíblia e sabe de cor todas as profecias terríveis, fica checando tsunamis, terremotos, erupções e outras catástrofes, lê um trecho da Bíblia que julga apropriado para o evento e, os olhos brilhando, dá umas casquinadazinhas de satisfação. “Hi-hi-hi!” faz ele. “Vocês todos vão se lascar, tá tudo escrito aqui, tá tudo acontecendo!”
Mesmo entre os que não costumam ocupar-se do assunto, como no caso de Toinho Sabacu, há posições claras. A dele, expressa várias vezes no Bar de Espanha, é não estar presente aos acontecimentos. Ao sentir o fim do mundo chegando, pirulitar-se-á rapidamente, para local não revelado mesmo aos mais íntimos e só sai até segunda ordem.
— Não faço a menor questão de estar presente — explica ele. — Não entendo nada do assunto e só ia piorar o sufoco. Tou fora, vou esperar para ver como ficam as coisas.
Nos dias recentes, o fim do mundo voltou ao debate público, espicaçado pelas mudanças climáticas. Quem ligava a tevê se espantava com as notícias sobre o calor no Sudeste, enquanto, lá no Nordeste, chegou a fazer frio e choveu. Houve dois dias em que os mais friorentos saíram meio agasalhados e muita gente chegou a mudar o figurino de casual para passeio completo, que, no caso de ilha é bermuda com camisa, aparição antigamente raríssima no verão. Ao contrário da previsão de Americano, o mar não parecia que ia ferver, mas talvez congelar-se, no ver quiçá exagerado de alguns observadores.
— Meus senhores, a situação é grave! — discursou Jacob Branco. — Estão ameaçadas a atmosfera, a troposfera e a própria ionosfera!
Aplausos respeitosos, belas palavras; Jacob nunca envergonhou, numa tribuna. Prosseguiu ele com uma dissertação sobre a destruição da camada de ozônio, que vários entenderam como a “camada de Osório”, o que levou alguns presentes a acharem que o lado Osório de minha família estava sendo prejudicado, e oferecerem sua solidariedade, diante daquele absurdo. E, mais, chuva ácida, desertificação, desmatamento, poluição ambiental, um deslumbramento ecológico.
Além disso, tinha Jacob razões para crer que evidências inquietantes pululavam por toda a ilha. O caso dos tatus ferrados com anzol já praticamente oficializara a pescaria do tatu, com a futura criação, no Ministério da Pesca, da Secretaria do Tatu, a ser ocupada por indicação da base governista. Só podia ser por causa dos agrotóxicos, que enlouqueceram os tatus, levando-os a acreditar que são peixes e mordendo isca de camarão. Noca Pequeno surgira com a notícia de que fora visto um pinguim em Salinas da Margarida, mas era muito tímido e sumiu logo, aparentando estar estranhando o frio. E Nilmete veio com a história de que botou para correr uma foca que a atacou no escuro, em sua casa na Ilha dos Porcos, mas há quem suspeite que o vulto dessa dita foca era mais parecido com Julinho da Gameleira — cala-te, boca.
Concluindo seu vistoso pronunciamento, Jacob afirmou a necessidade de conscientização, porque, de fato, entre tatus virados em peixes e pinguins tropicais, o mundo podia acabar a qualquer momento, nem neve tinha mais na Rússia. Seria a perfeita chave de ouro, se uma conhecida voz roufenha não viesse da entrada — quem, senão Zecamunista, regressando de mais uma vitoriosa turnê de pôquer, todo sorridente e cercado, não por uma, nem duas, mas seis esplendorosas jovens do Sul do País.
— Jacob, nobre amigo — disse ele. — Você ainda discute se o mundo vai acabar? Claro que já está acabando e eu, modéstia à parte, me antecipei.
Aquelas encantadoras moças antes renomadas acompanhantes, haviam sido as primeiras contratadas para trabalhar no Projeto Bom Apocalipse, destinado a produzir o melhor fim de mundo possível a clientes exigentes. Como não discriminaria ninguém, homens também serão contratados, para compor importante setor de lazer e entretenimento. Infelizmente, no começo o programa ia ter que ser restrito aos de melhor poder aquisitivo, embora já estivesse considerando aceitar participantes com bolsa apocalipse. O principal, como sempre, era entrar dinheiro na ilha. E era importante ressaltar que o mercado ia ser basicamente de corruptos e ladrões sortidos, que entre nós abundam.
— Vamos manter um quadro de advogados de primeiro time. O sujeito rouba, pega julgamento em liberdade e vem para cá. Como o julgamento não acaba nunca, ele passa o resto da vida aqui, no bem-bom, podendo sair até do país, se o juiz deixar e a Interpol não pegar. “Aproveite que o mundo neste país já acabou há muito tempo e viva aqui o melhor fim do mundo do mundo! Traga as propinas, que nós damos o paraíso fiscal! Roubar, todo mundo rouba, mas roubar com elegância e segurança só com o Bom Apocalipse — onde o que você rouba continua sempre seu! É agora ou nunca, não marque bobeira, não seja o único do bairro a ficar de fora! Ladrões de todo o Brasil, uni-vos!”
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