Sabem o que há de errado com o plano de ajuda aos Estados aprovado pela Câmara? Nada! Paulo Guedes resolveu enroscar com ele por falta de imaginação — afinal, sabem como é, seu credo dito liberal tem de ser mantido... E Jair Bolsonaro se opõe porque está na sua cruzada contra Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Casa. O Planalto, então, decidiu apelar a Davi Alcolumbre.
O presidente do Senado (DEM-P) vai relator um projeto alternativo de socorro aos Estados. De quanto, não se sabe. Vai propor, por exemplo, o congelamento dos salários dos servidores federais, estaduais e municipais por 18 meses. Até aí, vá lá. A esmagadora maioria dos trabalhadores da iniciativa privada ou perdeu emprego ou teve salário reduzido. Em dias como os que vivemos, penso, no entanto, que isso caracteriza falta de foco. Mas é defensável.
O problema é a forma da reposição. Os números vão aparecendo ao sabor de quem faz a conta. Aqueles R$ 40 bilhões que Guedes dizia querer repassar aos Estados eram, na verdade, R$ 22 bilhões. Como se diz em Dois Córregos, não preenche nem a cova do dente. O governo acena com a reposição por quatro meses, não mais por três. Mas o valor ainda não está definido. Nem os critérios de distribuição.
A Câmara votou o texto mais objetivo possível: faz-se simplesmente a reposição segundo a arrecadação do ano passado. Incluindo renegociação de dívida com bancos estatais, calcula-se que custaria, em seis meses, R$ 89,5 bilhões. O governo faz contas mirabolantes por aí. Chegou a espalhar a bobagem de que a proposta da Câmara poderia custar R$ 280 bilhões.
Em 2019, o ICMS de todos os Estados arrecadou R$ 509,79 bilhões. Como se trata de reposição por seis meses, se a arrecadação fosse zero, metade desses R$ 509,79 ainda fica longe de R$ 280 bilhões... O número era obviamente mentiroso.
O que mais espanta a lógica é o governo afirmar que não pode fazer a reposição segundo a arrecadação porque, não sabendo de quanto será a queda, fica-se no indeterminado. Mas é indeterminado mesmo. E não se trata de argumentar que, sob o coronavírus, vale tudo. Ocorre que a União tem um colchão de que os Estados não dispõem: a PEC do Orçamento Paralelo, ou de Guerra, criada na Câmara e dada de presente para Bolsonaro e Guedes. O que tiver de gasto extra, joga-se nos ombros (!!!) do vírus e se pode brincar que o teto de gastos está valendo.
Mas os Estados e municípios não têm essa licença. A eles sobraram as despesas extras brutais por causa da pandemia — e o socorro na União nesse particular é sempre insuficiente, além de demorado — e os cofres vazios de quem não pode emitir título. De onde vão tirar o dinheiro?
O Brasil anda tão esquisito — e isso, obviamente, não quer dizer que seja bom — que deveria ser o Senado, a Casa que representa as unidades da Federação, a se ocupar com mais cuidado da solvência dos entes federativos. Em vez disso, mergulhado em sua guerra mesquinha, o governo federal — um desastre em várias frentes — consegue meter uma cunha no Congresso, jogando uma Casa contra a outra.
Bem, que os senadores arquem, então, com a responsabilidade pelo que virá caso resolvam se alinhar com o governo federal nesse caso. Se e quando faltar dinheiro para pagar PMs e médicos, os governadores podem adotar aquele estila Bolsonaro de ser e recomendar: "Vão cobrar do Davi. O Guedes disse pra ele que o dinheiro era suficiente, mas acabou".
De resto, não entendi também como funciona o congelamento. É "per capita"? Não pode aumentar e pronto? Ou se vai congelar o valor da folha de salários? Como se vai operar o controle de gastos de serviços terceirizados? Também estão congelados, por vontade de Guedes, os contratos com prestadoras de serviço? Mais: pensa-se ainda numa fórmula mista para compensar os Estados que misture critérios de arrecadação e de população... É feitiçaria.
Em lugar de uma fórmula simples, que tem como referência o que arrecadaram entes federativos que não dispõem da generosa PEC do Orçamento Paralelo, tenta-se uma charada grega, redigida em aramaico e interpretada por leitores de búlgaro antigo.
O resultado, daqui a pouco, serão Estados quebrados, com o pires na mão.
É assim que vão chegar os bilhões prometidos por Paulo Guedes nesta segunda...
Estamos diante de uma curiosa fórmula, e não é inédita neste governo, que consiste em fazer tudo errado na esperança de que o resultado seja bom.
Uma pena ver Alcolumbre cair nessa conversa. Há outros temas para buscar protagonismo. Ser protagonista da quebra dos Estados parece ter mérito duvidoso.
A menos que o Senado consiga um pacote ainda melhor para os Estados e cidades, aí vou aplaudir, as duas Casas do Congresso se dividem em favor de um governo insano.
O Congresso vinha sendo uma espécie de âncora de confiança do sistema. Os patógenos da loucura já começaram a colonizá-lo também.
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