O Estado de S.Paulo - 08/09
Não se dirá que a Presidência da República fez "muito barulho a propósito de nada" ao saber que era espionada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos. Porque está, sim, em jogo, nesse episódio, uma questão de soberania. Questão sobremodo importante para quem deseja uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. A reação do chanceler, porém, traduzindo o estado de espírito da presidente, se não merece crítica, permite que se divague em torno de tema tão delicado.
A espionagem sempre surge em livros de História e também pode surgir em outros, de ficção, mas a questão da soberania poucas vezes é levantada. Os livros nos relatam que a espionagem de um Estado era admitida por outros na condição de que não fosse tão evidente que exigisse reação à altura do dano real ou virtual.
Ela evoluiu na forma e também na maneira de recrutar quem a fazia. O 007 não é um espião - sua missão é eliminar inimigos do Estado. Antes, o espião furtava documentos, copiava e devolvia. Apanhado, era recolhido à prisão. Era prática normal na relação entre Estados. O Estado ofendido protestava pro forma, tomava precauções, apurava o sigilo, mas não cogitava de romper relações diplomáticas nem comerciais. Havendo estado de guerra, o espião era fuzilado. Assim acontecia até que a tecnologia permitiu outros métodos.
No famoso episódio do U2, a guerra fria fervia e os EUA tinham interesse em saber onde estavam os foguetes intercontinentais da URSS. O U2 era o avião perfeito para espionar o inimigo: a altura em que invadia o território do virtual inimigo permitia aos Estados-Maiores norte-americanos vantagem extraordinária sobre os soviéticos. Quando a artilharia soviética abateu um deles e o piloto sobreviveu e foi aprisionado, esse fato colocou Eisenhower em má posição, considerando-se que tinha marcado reunião com Kruchev, em Paris, para dias depois.
A Kruchev o piloto prisioneiro forneceu pretexto para falar das intenções agressivas dos EUA e demonstrar ao mundo que a defesa soviética era capaz de impedir esse tipo de espionagem. Esnobou Eisenhower e, tempos depois, trocou o piloto por um espião soviético preso nos EUA. Isso se deu apesar de a soberania de ambos os Estados ter sido violada.
Espionagem é coisa corriqueira, que os preocupados com segurança devem praticar. Havendo o que esconder, que cuidem de evitar a bisbilhotice.
Da História fica a certeza de que um Estado só espiona outro quando o tem como potencial inimigo ou adversário de fato. Os EUA não espionariam o Haiti. Em vez de demonstrar irritação, deveríamos estar orgulhosos de o Brasil ser um país que merece a atenção dos demais. E mais: se o presidente de um país é espionado, é porque esse país é importante - para quem o espiona, evidentemente.
Quais informações sigilosas os EUA desejavam obter só sua Agência de Segurança Nacional saberá. Insinuar que o "espião" desejava conhecer segredos industriais brasileiros é exagero. A tecnologia das nossas ultracentrífugas deve ter alguma importância, pois o Brasil não quer que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) venha inspecioná-las sem antes avisar. Mas o Brasil, convenhamos, ainda não se equipara ao Irã. Dizer que os EUA queriam bisbilhotar o pré-sal será outro exagero - afinal, o governo brasileiro vai abrir concorrência para sua exploração e deve fornecer informações, mínimas que sejam, aos que tirarão nosso petróleo do fundo do mar.
Como só a NSA sabe o que buscava, concentremo-nos na reação brasileira, que interessa a todos nós.
Quando se descobriu a espionagem, há um mês mais ou menos, qual foi a reação do governo? Ninguém falou em soberania. O ministro das Comunicações - não o Itamaraty - convocou o embaixador dos EUA e uma missão técnica foi tentar convencer os norte-americanos de que espionagem só poderia ser feita se autorizada pela Justiça brasileira. Os norte-americanos desculparam-se - socialmente -, disseram que não podiam atender ao que lhes era solicitado e os brasileiros voltaram de mãos abanando. Não se falou em chamar o embaixador brasileiro para consultas, nem na possibilidade de cancelar a visita de Dilma Rousseff a Barack Obama, nem em soberania.
Revelou-se, então, que a presidente tinha sido espionada. Invocou-se, ato contínuo, a soberania. Como se o Brasil tivesse sido ofendido e ultrajado, decidiu-se dar resposta à altura. Felizmente, não chegamos a O Rato que Ruge, declarando guerra aos EUA - mas exigimos explicações por escrito (para constar dos autos) e o governo deu a entender que aguarda um pedido de desculpas...
A questão que coloco é muito simples. No julgamento de Cesare Battisti, eminentes juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmaram, mais de uma vez, que o presidente da República era soberano! Faltando acrescentar: legibus solutus. A reação do Planalto e da Chancelaria consagra, agora, essa ideia que nos leva ao tempo em que o monarca era absoluto. Quando todos nós, brasileiros, éramos as vítimas da espionagem, o governo procurava solução técnica para o problema. A soberania do povo brasileiro - que é, afinal, o sujeito dela - não era posta em causa. Quando a correspondência de Dilma foi bisbilhotada, a soberania brasileira teria sido violada.
Seria preciso apontar algo mais para marcar o tipo de governo que temos? Que ideia a presidente da República faz do que seja soberania e de quem seja seu titular? Afinal, a soberania reside no povo ou na pessoa da presidente da República?
A reação oficial indica que o Estado Democrático de Direito foi mais uma vez ofendido em suas bases. E foi ofendido pelo Executivo, que deve apoiar-se na opinião de ilustres ministros do STF.
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