O ESTADÃO - 08/09
Enquanto somente os governados pobres iam para as penitenciárias, tudo bem que fossem pocilgas infectas. Mas, agora que eles podem ser presos, convém prevenir e melhorar logo as penitenciárias
Nossa memória é fraca e nossa atenção é convocada o tempo todo por um volume de informações e solicitações incalculável e cada vez maior. Cumpre-se a conhecida previsão de Andy Warhol, segundo a qual, no futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos. O futuro a que ele se referiu já chegou e a profecia pode ser complementada pela constatação de que novos famosos instantâneos pipocam a cada dia e outros tantos submergem no esquecimento, o prazo de validade vence rápido. Portanto, não é impossível que já exista quem já não recorde direito o episódio do deputado presidiário, apesar de sua divulgação maciça. Mas, ainda que atrasado, pretendo falar no assunto.
Alguns outros acontecimentos deixam os dedos coçando para escrever um comentário. Teve o apagão e o curioso resultado que ele costuma gerar no Brasil, ou seja, uma alta figura do governo, em conversa com a imprensa depois de qualquer apagão, elogia copiosamente nosso sistema de energia elétrica e o equipara aos de Nova York, Copenhague ou Tóquio. Novos apagões, novos elogios, é uma rotina que daqui a pouco se tornará tradição venerável e chegaremos ao dia em que, acendendo velas no meio da noite, não reclamaremos, por sabermos que, escuridão ou não, temos um dos melhores sistemas do mundo, o homem disse.
Ocorreu-me também o caso do senador boliviano. É claro e inequívoco que o diplomata Eduardo Saboia agiu da forma imposta por princípios e valores universais e humanistas, com os quais o governo alega da boca para fora comungar e usa os pesos e medidas que lhe convêm em cada caso. Não sei se a comparação é inteiramente válida, mas, do ponto de vista de um observador neutro, o tratamento dispensado àquele presidente deposto da Nicarágua é grotescamente oposto ao recebido pelo senador, em nossa embaixada na Bolívia. Lembro o nicaraguense, de chapéu de caubói e riso ancho, despachando e quase numa festa, em nossa embaixada em Manágua. Os princípios e valores por trás do gesto do diplomata sempre foram superiores até mesmo à lei escrita. Para os juízes dos criminosos nazistas, não colou — e não devia mesmo colar — a desculpa de que estes obedeciam a ordens, ou cumpriam o que as leis determinavam. É claro que Eduardo Saboia agiu como um homem de coragem, brio e retidão moral, arriscando sua carreira, mas não, em última análise, sua honra. Isso, porém, junto a nosso governo, tem efeito contrário ao que devia ter, assim como, sem querer fazer inteira comparação, acontecia durante o Terceiro Reich. E dá lenha para a fogueira para quem acha que, no Brasil, quem obedece a princípios é otário e vai dar-se mal, pois aqui não medram princípios, a não ser os que interessam ao poder.
E mais coisas se oferecem, como a descoberta — da pólvora, mas todo mundo finge que não — de que os serviços de inteligência americanos espionaram e com certeza continuam a espionar governo e gente importante de todas as áreas de atividade no Brasil, até mesmo a presidente. Imagino que, na visita dela à Casa Branca, na hora da conversinha preliminar informal, ainda diante dos fotógrafos, o presidente Obama, cortesmente, iniciará o papo.
— É uma viagem muito longa — dirá ele. — Espero que a senhora tenha se recuperado bem do cansaço da viagem.
— Sem dúvida — dirá ela. — Eu dormi cedo.
— Eu sei — dirá ele e logo, notando o fora, levará a mão à boca. — Oops!
Bem, acaba não sobrando muito espaço para o deputado. Ele diz que é inocente, mas quem já conversou com presidiários sabe que quase todos são inocentes. E ele foi condenado em última instância, oficialmente é criminoso. Mas ele e os encapuzados morais da Câmara de Deputados, que votam escondido porque têm o que esconder, vão acabar nos legando pelo menos uma reforma, das inúmeras de que precisamos e ninguém faz. Duas reformas, aliás, pelo menos. Uma delas eu saquei logo pela fala dele. Ele se queixou da qualidade da comida, de tomar banho de água fria e assim por diante. Essa, com certeza, é a sementinha que vai levar à urgente reforma penitenciária de que precisamos. O conforto nos chamados estabelecimentos prisionais assume prioridade, porque vários deputados, num contexto mais decente, estariam há muito em cana e — quem sabe do incerto futuro? — poderão um dia ir, já há precedente. Como eles são invariavelmente muito sensíveis a seus próprios interesses, agora essa reforma penitenciária sai. Enquanto somente os governados pobres iam para as penitenciárias, tudo bem que fossem pocilgas infectas. Mas, agora que eles podem ser presos, convém prevenir e melhorar logo as penitenciárias, esse negócio de água fria é um absurdo. Uma das queixas do deputado presidiário foi a de que estava sendo tratado como um preso comum. Que é que ele é, senão um preso comum? Por aí se vê como eles acham que são uma categoria à parte e devem ser privilegiados.
A segunda reforma não tem tanta urgência, mas vai logo prosperar. Será elaborado e aprovado o Código Penal do Parlamentar. Já é hora de os parlamentares contarem com sua própria justiça. O mais importante é a definição das penas específicas para eles. Inspirados no que acontece com ministros e outros figurões que são pilhados em conduta imprópria ou ilegal, as penas estabelecidas poderão começar com o já popular puxão de orelhas metafórico. Várias outras opções certamente serão consideradas, tais como ficar até dois meses sem sobremesa, gravar um vídeo para a televisão em que fala “foi mal”, e escrever cem vezes, com boa letra e sem borrões, “Estou envergonhado e não roubo mais”. Ninguém poderá queixar-se de que eles não fazem reformas.
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