O GLOBO - 08/09
As pedras das ruas de Paraty, é sabido, exterminam qualquer possível traço de elegância no andar de seus transeuntes, mas Dona Cleonice chegou a esse jantar carregada numa liteira literária.
No último dia 28 comemorou seu aniversário de 97 anos a professora Cleonice Berardinelli. Pensando nela nesse dia, elucubrei sobre o que seria sua receita para tamanha vitalidade, sabedoria e conhecimento, e me lembrei do que ela disse à moça que lhe sussurrara o menu de um jantar em sua homenagem. “De tudo um pouquinho.”
As pedras das ruas de Paraty, é sabido, exterminam qualquer possível traço de elegância no andar de seus transeuntes, mas Dona Cleonice chegou a esse jantar carregada numa liteira literária. Dona Cleo contou-nos da sua atuação no “Auto da Alma”, de Gil Vicente, ainda bem jovem. No primeiro ensaio fez o papel de Alma; e sua colega, o do Anjo Custódio. Assim que finalizaram, o diretor decretou “troquem de papéis!”, e Dona Cleo tornou-se então “o Anjo”. Em performance tão arrebatadora que Manuel Bandeira publicou a respeito, no “Jornal da Manhã”, “o anjo era lindo (Cleonice Seroa da Mota), falava com a dupla autoridade da fé e da poesia” e no “momento de comoção”, que lhe umedecera os olhos de poeta. Ela tentou continuar a contar algo sobre ele, mas alguém perguntou se ela gostaria de vinho. Ela aceitou. Ele serviu.
Eu perguntei:
— E então, Dona Cleo, e o Manuel Bandeira?
— Ah, sim, o Manuel...
Aí alguém fez uma pergunta sobre algo relativo às profundezas do âmago de Ricardo Reis. Ela respondeu, até o fundo. Contou ainda que Bandeira, a respeito dos heterônimos, disse que via claramente, em cada um deles, “Fernando Pessoa querendo sair de seu drama”.
Me atravessei logo depois da última palavra:
— A senhora ia contando outra coisa sobre Bandeira...
— Ah, sim, o Manuel, ele...
Alguém ergueu uma taça, e brindamos ruidosos, com alegria infinda, à saúde de Dona Cleo!
Na leitura que fizera mais cedo, alguém do público perguntou se ela já não se sentia um, ou se não gostaria de vir a ser um, heterônimo de Fernando Pessoa, tal a intimidade com a obra do poeta, ao que respondeu: “Não gostaria, é incômodo ser Fernando Pessoa, ele não foi feliz”.
Logo antes, quando surgiu no palco da tenda da Flip, e a plateia levantou-se aos aplausos, ejetada das cadeiras, ansiosa para começar a fazer o que adora, que é ler Fernando Pessoa, foi direto às folhas com os poemas.
<SW,-16>Daí mergulhou nas palavras, nos recônditos, nos labirintos pessoanos. A plateia embasbacou. Não contente, chamou ao palco Maria Bethânia, que entrou, plena de felicidade, engraçada, sacana, fazendo meu queixo cair até os joelhos e por ali permanecer pela hora e meia seguinte.<SW>
Dona Cleo e Bethânia leram “à beira-mar” os principais heterônimos (Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis), os poetas do poeta Fernando Pessoa. Por dentro. Pelas vísceras e vírgulas de cada um.
Uma dada hora ouvi “...mar sem fundo...”, e aquilo me atingiu como um caldo feio de uma onda brava. E foi assim, ainda zonza, que cheguei, não me perguntem como, no jantar para Dona Cleonice.
Soterrada pelos convivas, redigindo dedicatórias exclusivas para cada livro, me cochichou “virei popstar” com olhar de coleguice e prosseguiu assinando e sendo fotografada e assinando e sendo fotografada. Saí da mesa para dar espaço aos ávidos paparazzi que se revelaram os comensais, mas tive a impressão de ouvi-la dizer “...deira” e voltei à minha cadeira às cotoveladas:
— O que, Dona Cleo?
— O Bandeira, estava aqui contando...
— O que, Dona Cleo?
— Que Manuel era perdido por doce! Todo aniversário dele, fazia eu mesma os papos de anjo que ele tanto amava. Embrulhava com celofane, laços de fita e ia lá entregar.
Surpreendida, me ouvi perguntar:
— Dona Cleonice, o que é, hein, afinal, essa ligação dos poetas com os papos de anjo? Vinicius de Moraes disse que não havia nada como comer um pote de papos de anjo ao lado da mulher amada (ao que Rubem Braga retrucou: “ele está gagá, qualquer um sabe que não há nada como comer a mulher amada ao lado de um pote de papos de anjo”).
Proibido pelo médico de comer açúcar, Vinicius assaltava a geladeira sem ninguém saber, até a primeira criatura a abrir a porta de manhã dar de cara com os gelados óculos do poeta, lá dentro, ao lado de uma compoteira de papos de anjo, vazia.
Dona Cleo:
— Olha, acontece que...
E alguém:
— Dona Cleonice! Duas horas da manhã! Agora vamos!
Acabou-se o que era doce, fim do meu papo com “o Anjo”, ele se foi na sua liteira.
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