O ESTADÃO - 08/09
Mais do que o país da piada pronta, o Brasil é, por excelência, o território de tragédias anunciadas. Ou, ainda, o palco onde melodrama entra de fininho no lugar da comédia. Tanto na crônica policial quanto na crônica política. Basta ver a peça encenada pelo deputado de Rondônia (isso mesmo, deputado) Natan Donadon. Que desfecho mais previsível. Quando exibiu os punhos marcados pela pressão das algemas, um silêncio sepulcral tomou conta do plenário. Nem um pio se ouvia naquele espaço barulhento. A performance – assistida também por familiares – continha elementos melodramáticos capazes de gerar comoção e catarse: a falta d’água no meio do banho, o deputado ensaboado valendo-se de três garrafinhas com água do companheiro de cela, as algemas, o camburão, a garantia de que jamais cometera um crime, o pai exemplar, um rosário de repetições que, ao fundo e ao cabo, despertaram em grande parte dos ouvintes os sentimentos que a psicologia designa como projeção e identificação.
Suas Excelências viram projetadas naquele painel suas trajetórias, vitórias e percalços, passando a se identificar com a novela. “Poderia acontecer comigo”, muitos devem ter pensado. Assim, a corrente solidária, amarrada ao tronco corporativista, ensejou aos nossos alegres trópicos uma das mais insólitas cenas da história republicana: a de um cidadão, com direitos políticos cassados pela Suprema Corte, de posse de mandato popular. Uma contradição, ou, melhor, uma aberração jurídica, que o STF deverá corrigir. Não é de admirar que a fenomenologia da extravagância teime em aprofundar raízes no território, principalmente em um ciclo de plantação de sementes limpas no terreno dos costumes. Inauguramos uma era de transformações na fisionomia político-institucional, sob pressão de grupamentos organizados. Seria extemporânea, portanto, qualquer atitude parlamentar que, mesmo de maneira tênue, pudesse ser entendida como retrocesso e, pior, uma repulsa às demandas sociais por dignidade, moral e ética na política. Se isso ocorre, é porque o corpo parlamentar coloca o corporativismo – a prática voltada para salvar companheiros da corporação - acima de qualquer outro escopo.
Na verdade, na esfera política, a evolução tem sido lenta. O cipoal legislativo até incorpora instrumentos de controle, mas os vícios do passado continuam presentes. Ressuscitamos uma modalidade de “neo-coronelismo”, como escreveu Emil Farhat em O Genro, o Grande Culpado: “novas condições ...forçaram o velho tipo municipal a uma retirada estratégica – o coronel foi para o fundo do cenário. Mas, cautelosamente, deixou no primeiro plano, na direção política de seu feudo, o genro-doutor, a fachada moderna do coronelismo como força política”. Em qualquer instância do Poder, nas esferas municipal, estadual e federal, nunca foi tão escancarado o tráfico de influência. Pululam denúncias por todos os lados, a corroborar a tese de que a corrupção tem alma de sete gatos, infiltrando-se nas malhas administrativas, apropriando-se de avanços tecnológicos para se vestir com o manto da lei, apesar da multiplicação dos mecanismos de monitoramento a serviço do Estado.
O tráfico de influência expande seus braços (e cochichos) na esteira da imbricação entre os negócios privados, a burocracia estatal e os representantes dos Três Poderes, que, muitas vezes, agem como donos de espaços. O artigo 332 do Código Penal criminaliza essa prática que consiste em solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função. Parcela dos desvios se deve, ainda, à modelagem governativa. As tais coalizões partidárias que redundam na repartição das estruturas de governos se pautam mais por vantagens auferidas – domínios de espaços, recursos, empregos, troca de favores – do que pela proposição doutrinária. As largas vias da corrupção abrigam os elementos de sua perpetuação: a certeza da impunidade (ou a demora na punição); as disparidades salariais, a burocracia escorchante, as máfias de intermediação entre círculos privados e os burocratas, a falta de eficiência dos serviços públicos, a alta carga tributária etc. No espaço ex-sagrado do Judiciário, abrem-se cortinas de fumaça, sendo comuns casos a cargo de juízes (inclusive da terceira instância), que mudam julgamentos já ganhos em instâncias inferiores simplesmente por conta de jogos de influência. Não é a toa que o presidente do STF, Joaquim Barbosa, quer proibir o exercício de advogados em Tribunais onde operem familiares próximos. No Legislativo, para legitimar desvios, os parentes são lotados em gabinetes de parlamentares amigos. É o nepotismo cruzado.
Observe-se, por último, que floresce o balcão de trocas no momento em que mais se cultua no país o conceito de solidariedade. (Até partido político com este nome está sendo criado). Patrocinadores desse humano valor debruçam-se sobre as mazelas sociais para resgatar o ideário da igualdade e da justiça. Ressalva-se, portanto, a corrente de solidariedade que se espraia sob a égide de pessoas do bem. Cumprem missão salvacionista. Ocorre que, no bojo da locomotiva solidária, multiplicam-se organizações picaretas, cuja única motivação é o transporte de recursos públicos para os cofres privados. Um engodo. A frondosa árvore da corrupção tem mais um galho, o sentimento de onipotência do brasileiro, já consagrado pelo famoso dito: “você sabe com quem está falando”? Galho que tende, felizmente, a esturricar ante a crescente nacional onda de auto-estima. Não pega mais. Imaginem Donadon chegando ao aeroporto, cortando a fila para ser logo atendido. “Você sabe com quem está falando?” Indiferente, a recepcionista gritaria aos passageiros: “Quem conhece esse cidadão”? Sem o aplauso da corporação, Sua Excelência ganharia um festival de vaias.
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