O ESTADÃO - 19/04
Eu me iniciei na profissão de jornalista de rádio e TV no final de 1982, com o governador Franco Montoro já eleito e às vésperas de ser empossado. E me recordo de que mesmo antes do início de sua gestão o tema mais polêmico era a segurança. Os governos anteriores haviam doutrinado a polícia para matar. Havia quem dissesse que "bandido bom é bandido morto" e entre a opinião pública não eram poucos os que compartilhavam essa convicção. No próprio corpo da tropa tal cultura era bem difundida. Policial bom tinha necessariamente de se provar em combate e, entendia-se, quanto mais "bandidos" mortos ele agregasse ao seu currículo, mais respeitado se tornava. Montoro surgiu com uma nova tese. Ele e seu grupo de intelectuais e membros da Igreja Católica entendiam que a função da polícia era o oposto. "Violência só gera mais violência", diziam.
Do confronto dessas duas visões inconciliáveis do papel dos policiais surgiu a política de direitos humanos vigente até hoje. No começo as duas facções se digladiavam de forma apaixonada e radical. Lembro-me de que o pessoal ligado aos direitos humanos - que então controlava a Secretaria de Justiça - chegou a propor, com grande alarde, a criação de "conselhos de presos" que deveriam gerir paritariamente os destinos dos presídios. A grita social foi imensa, o que levou o governador a voltar atrás. De qualquer forma os detentos, com isso, adquiriram uma noção da própria força. O que viria a gerar graves consequências no futuro próximo. Apesar de ter recuado na questão dos conselhos, o governo do Estado manteve sua política de leniência em relação aos criminosos. Bandidos não podiam mais ser "judiados" nas cadeias. Policiais que desobedecessem a essas normas passaram a ser severamente punidos. Criou-se assim um clima de confusão ideológica: os policiais, que haviam sido treinados para agir de uma determinada forma, foram coagidos a agir de outra. O que era o bandido, afinal? Um inimigo da sociedade ou apenas uma vítima dela?
Essa ambiguidade foi crescendo e tomou conta de todo o sistema prisional. Já em 1983, logo após a posse do Montoro, foi criado pelos detentos um grupo chamado Falange Vermelha. A Falange foi a mãe de todas as organizações criminosas que surgiram depois. O governo do Estado adotou, então, a política de simplesmente negar, contra todas as evidências, a existência da Falange. Dizia que isso não passava de invencionice da imprensa. O auge da ação dessas organizações criminosas se deu em 2006, com uma revolta histórica e sangrenta da população de detentos.
Só a partir daí o governo estadual começou a levar a sério a existência desses grupos. Dentre eles se destacavam o PCC, em São Paulo, e o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro. E eram realmente perigosos. Tinham armamento pesado - que adquiriam em troca de tóxicos - e disciplina férrea. A única punição prevista para os meliantes que transgredissem suas regras era a pena de morte. Se possível, da forma mais cruel. Tornaram-se comuns os confrontos da polícia com os bandidos, com dezenas de mortes. Consta que no Rio o problema se tornou ainda mais grave em razão de um suposto acordo entre o então governador Leonel Brizola e a bandidagem. Teria sido estabelecido, à época, que "os bandidos não descem o morro e a polícia não sobe".
Não se sabe se tal acordo ocorreu mesmo, mas o fato é que a política de coexistência pacífica teve resultados desastrosos: bandidos e policiais passaram a conviver de forma fraternal e a criminalidade se multiplicou. Mesmo com a atual política de UPPs não há garantias de que a situação se reverta. E isso as vésperas de eventos internacionais como a Copa do Mundo de Futebol e a Olimpíada.
Já em São Paulo, o clima de confronto vem se acirrando. O governador Geraldo Alckmin adotou uma política inteligente de afastar os criminosos mais perigosos dos centros urbanos. Mas até agora não foi possível mensurar os resultados.
O que foi chamado de "massacre do Carandiru", apesar do enorme número de vítimas, foi apenas mais um capítulo da guerra aberta que se estabeleceu entre policiais e detentos. O Carandiru era um imenso presídio com capacidade para, no mínimo, 8 mil detentos. Não existe no mundo uma prisão de tamanho igual. O Carandiru era, por si só, um tremendo equívoco. Como administrar uma população carcerária dessa magnitude? Na verdade, o Carandiru fora construído para abrigar um número de detentos muito menor. Acontece que através do tempo a demanda de vagas se foi acumulando e todos os governos optaram por inflar a capacidade, em vez de construir novas cadeias. A situação acabou se tornando insuportável. A rebelião de 2 de outubro de 1992 foi, assim, uma tragédia anunciada e a data escolhida coincidiu com a véspera de eleições municipais.
É difícil apurar as responsabilidades, uma vez que o julgamento ainda está em curso. A acusação vale-se do termo "massacre" e atribui todas as culpas aos policiais. Por outro lado, quem conhece ou conheceu policiais envolvidos na operação ouve deles que a situação era incontornável. Existem relatos de que muitos detentos armaram lanças em cujas pontas havia sangue contaminado com o vírus HIV.
De qualquer forma, não há o que justifique tamanha quantidade de mortos. Muitas das vítimas foram mortas em "posição de execução". Outras teriam sido massacradas depois de se haverem rendido.
Entre a população as opiniões se dividem, com semelhantes graus de intensidade. Há quem considere massacres desse quilate inadmissíveis, como há também quem tenha apoiado o comandante da Rota naquela ocasião, coronel Ubiratan Guimarães - que, aliás, foi eleito deputado estadual por duas vezes.
E você, prezado leitor, qual é a sua opinião?
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