O GLOBO - 10/11
O sorriso de Lou Reed é um tesouro que guardo comigo. Mesmo que Roberto Carlos nunca mais queira me ver, continuarei amando quem fez “Fera ferida” e “Esse cara sou eu”.
Só entrei em contato com a música do Velvet Underground em Londres. Talvez já em 1970. Embora seja possível que Artur e Maria Helena Guimarães já me tivessem mostrado o disco com Nico, de 1967, que depois Ezequiel Neves vivia pondo pra tocar em nossas vitrolas. Eu gostei imediatamente do tom sombrio e violentamente urbano das canções e dos sons, a voz e a figura de Nico, que eu já conhecia de “La dolce vita”, somando-lhes mistério e encanto. A cara dessa loura de Fellini em meio aos filmes underground de Andy Warhol compunha um ambiente estético fascinante, o que tingia a música da banda de uma qualidade diferente de tudo o que a gente já gostava no mundo do rock de língua inglesa. Lou Reed apareceu para mim ali, no centro dessa aventura criativa tão estranha ao mundo meio rural, meio onírico do rock pós-Beatles.
Lou Reed morreu. Quando penso em quão longe eu estava de poder captar a beleza de sua arte em 1970 (capacidade que se desenvolveu lentamente e exigiu que eu entrasse em contato físico com a cidade de Nova York, o que só veio a acontecer nos anos 1980), fico assombrado com o fato de eu ter vindo a conhecê-lo pessoalmente e de ter havido uma troca de percepções artísticas entre nós. É perdoável que ele viesse a conhecer tão tardiamente um cantor latino-americano, mas é muito menos perdoável que esse mesmo cantor tenha tomado contato com a arte dele com atraso, ainda que muitíssimo menor. Que os dois tenham se encontrado tem algo de maravilhoso. Laurie Anderson veio ao Brasil com um filme, “Home of the brave”, e fui apresentado a ela. Laurie foi assistir ao primeiro show que fiz em Nova York depois disso. Era o “Totalmente demais”, eu só com o violão e falando muito entre as músicas, tão stand-up comedy quanto os antigos shows de Juca Chaves ou Ary Toledo. Muitas pessoas adoravam as canções suaves às cordas de náilon — e, tanto lá quanto aqui, não falta quem diga preferir aquilo a qualquer formação cello-e-percussão ou qualquer banda indie. Laurie me disse que gostou das falas, não deu muita bola para a aparente bossa nova. Quando fui com Jaques Morelenbaum mais Márcio Vítor e cia., ela levou seu marido para assistir. Ao final, Lou e ela chegaram ao apê em que jantaríamos e ele veio me falar do show. Lou é uma figura tão importante na história das pessoas do mundo contemporâneo, tem tal estatura histórica que não ouso contar o que ele me disse. Felizmente Laurie estava ali para rir um pouco e para dizer com gestos que a maluquice era dele, que ela era minha camarada mas que nada além de ter achado graça em minhas falas do show visto anos antes. Mas quando voltamos com formação semelhante, eles estavam lá. E quando fui com a banda Cê, idem. Sendo que neste último caso, já que fazíamos, em “Não me arrependo”, uma menção à linha de baixo de “Walk on the wild side”, a reação feliz dele saiu até no “New York Times”. Uma tarde, o interfone do meu apê em Nova York tocou. Eram Laurie e Lou, que estavam passeando o cachorrinho e passaram para bater papo. Lou contou uma piada, da qual eu não ri muito porque entendo mal inglês falado (minhas falas no “Totalmente demais” davam a impressão de que entendo tudo o que se diga em inglês, mas não): Laurie riu dele e disse que ele estava sempre contando piadas sem graça. Um casal sereno, muito americano, com um cãozinho. Em todas essas ocasiões, conheci o sorriso de Lou, algo que muita gente pensa que nem existe. E num show dele em Valência — em que ele tinha uma cellista e declamava Poe — fui cumprimentá-lo no backstage, e ele estava com um riso escancarado, feliz com a recepção do público. O sorriso de Lou Reed é um tesouro que guardo comigo. Quando Laurie veio com uma grande exposição no CCBB, mandou me chamar e conversamos. Lou não estava muito bem de saúde, ela me disse. Ou foi Arto Lindsay, amigo de ambos, quem interpretou, completando alguma frase vaga dita por ela em tom levemente triste.
No tempo em que eu nada sabia de Lou, Roberto Carlos tinha virado minha cabeça. Antes dos Beatles, aconselhado por Bethânia, dei atenção ao cara. Dali para a frente tudo foi diferente. Mesmo que ele nunca mais queira me ver, continuarei amando quem fez “Fera ferida” e “Esse cara sou eu”. Minhas trombadas nascem de querer quebrar algum esquema cristalizado que me impacienta. Não tenho o direito, acho. Não sou terapeuta dele nem palmatória do mundo. Zuenir estava certo quanto às diferenças de temperamento. Paulinha não gostou do que escrevi sobre o Rei. Mas acho que não tomo jeito, não vou mudar, esse caso não tem solução. Eu tinha feito muito esforço para defender a parte que acho defensável de uma causa que me estranha. Peço perdão.
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