O GLOBO - 10/11
A questão das classes sociais, sempre controvertida em toda parte, é particularmente difícil de abordar em Itaparica. Meu saudoso amigo Zé de Honorina, em momentos de indignação cívica, costumava dizer que não havia classes sociais na ilha. “Aqui é tudo igual”, dizia ele. “Tudo a mesma desgraça.” Uma vez eu tentei contrapor alguns argumentos discordantes.
— Inclusive nós dois! — interrompeu ele, encerrando a discussão.
Além de visões radicais deste tipo, a análise sociológica esbarra em confusões de toda ordem, como quando Ary de Maninha, em conferência proferida durante as comemorações do Sete de Janeiro, afirmou que a estratificação social na ilha estava adquirindo um perfil prenhe de incertezas. A maioria dos presentes cumprimentou Ary por mais uma vez brindá-los com belas palavras que ninguém entendeu, mas Piroca Vieira, que desconhecia qualquer um, quando se tratava de defender a ilha, não gostou, porque achou que se tratava de uma alusão pejorativa às reconhecidas virtudes da mulher itaparicana. Exigiu cadeia para o orador, e discursou várias vezes na porta da quitanda de Bambano, lamentando que já estivesse em desuso a antiga e veneranda prática de enfiar um ovo quente na boca dos difamadores.
— E não venha me dizer que “prenhe” não é “prenha”, que eu sei que “prenhe” é “prenha” em francês! — bradou Piroca. — Se não fosse o respeito que eu tenho por dona Maninha e dona Maroca, você agora ia ouvir quem é que está aqui prenha por causa da estripificação social! Eu não sou analfabeto, eu entendi tudo o que você disse com seu francesório metido a merda!
Não bastassem esses mal-entendidos, ainda há ações inesperadas, de consequências imprevisíveis. Zecamunista andou mais uma vez ausente por uma temporada, desta feita na região de Vitória da Conquista, como convidado especial de um torneio de pôquer para milionários e profissionais, onde as finíssimas garçonetes, atendentes, recepcionistas e outras auxiliares eram todas moças mundanas do mais alto quilate, contratadas no Sul do país. Tinha convidado quatro para passar uns dias com ele, uma delas era aquela mesma lourona de um metro e oitenta, que, quando atravessou de biquíni o Largo da Quitanda, Jacob Preto desmaiou. Sorridente e pagando uma rodada atrás da outra, no Bar de Espanha, Zeca comentou que os profissionais, principalmente ele, se deram bem, mas, quanto aos milionários, ele se orgulhava em dizer que promovera uma bela redistribuição de renda, naquela excursão.
Deve ter sido nesse instante que se manifestou o diabinho que frequenta o juízo dos agitadores contumazes e lhe sopra ideias inusitadas. À menção de distribuição de renda, o impenitente bolchevique, num salto surpreendente mesmo para quem, como ele, faz ginástica todo dia ouvindo as ondas curtas da Rádio de Moscou, levantou-se, batendo na testa. Era isso mesmo! Como não tinha pensado nisso antes? A revolução ao alcance da mão! A um custo irrisório, toda a estrutura de classes do município da Denodada Vila de Itaparica seria definitivamente alterada, a ilha ia dormir uma coisa e acordar outra coisa, nem Napoleão podia gabar-se de proeza semelhante.
Depois de uma ausência de algumas horas, trancado em casa, durante a qual as moças que hospedava e seus biquínis rebolaram pela Rua Direita abaixo e Jacob passou mal outra vez, Zeca finalmente ressurgiu no Bar de Espanha. Tinha consultado fontes, já tinha mandado acertar tudo, buscar notas de dois reais no banco, preparar postos de pagamento, contratar gente, fazer um cadastrozinho. Tudo somado, trabalho para não mais que uma semana, por aí. Vamos dizer, duas semanas para o pleno funcionamento do esquema, que era muito simples. Bastava pagar dois reais a cada cadastrado de classe média, o resultado estava garantido.
— O raciocínio é simples — disse Zeca. — Eu li que, para o governo, a classe média, começando pela baixa classe média, vai de 291 a 441 reais de renda familiar. Aí eu dou dois reais a cada família nessas condições. Quem está com 290 sai da pobreza e entra logo na classe média. Quem está com 441 pega os dois reais, passa para 443 e entra na classe média média. E quem está com 641, que é o limite da classe média média, pega os dois reais e entra na classe média alta. Acho que ainda preciso acertar uns ajustes na passagem da pobreza para a média baixa, mas, quando em boas mãos, as estatísticas fazem qualquer coisa, está aí o governo mesmo, que não me deixa mentir. Itaparica, o município com a maior porcentagem da população na classe média! Curva-te, São Paulo! Ajoelha-te, Rio! Aprende, Europa! O brasileiro é um ingrato e o nordestino um injustiçado, do contrário eu entraria para a História como o homem que revolucionou a mobilidade social, o primeiro a aparecer com uma novidade nessa área, desde Lenine.
— Você me desculpe, mas em que que isto muda alguma coisa?
— Você é um cego político. É o que dá se vender ao jornalismo capitalista. Isto é o mapa da vitória nas urnas, melhor que isto só no tempo em que o coronel seu avô pagava cem mil réis por um saveiro cheio de eleitores. Pense no programa de tevê do partido que adotar minha ideia: “Você hoje não é mais pobre, é classe média. E, agora que já se instalou nela, não vai querer sair, vai? Filie-se e vote no Nosso Partido, o NOP! Somente o NOP garante dois reais por família, para você permanecer ou subir mais na classe média! É o nosso compromisso! Votou, ganhou! Na escada para o topo, conte com o NOP!”
— Claro que essa maluquice não ia dar certo. Ia ser preciso um partido muito cínico, um Congresso muito irresponsável e um povo muito avacalhado.
— Justamente — disse ele.
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