O GLOBO - 04/08
Dias atrás, o secretário de Justiça dos Estados Unidos enviou uma carta formal ao ministro da Justiça da Rússia. Nela, o alto representante do governo americano achou necessário atestar que em seu país não há tortura. Há muita ironia da História embutida nesta história.
Ao longo de todo o século XX, nos países do Ocidente, gerações inteiras se habituaram a associar tortura e violação de direitos humanos com o regime comunista soviético fincado em Moscou. A democracia ficava hospedada em Washington. Mesmo depois do colapso comunista de 1991.
Com o ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas, os Estados Unidos se habituaram a viver subordinados à lógica e às demandas de um emaranhado de leis de segurança nacional. Foi através desses imperativos que se infiltraram a tortura, as prisões clandestinas, as práticas condenadas por convenções internacionais. Eram os efeitos colaterais da chamada Guerra ao Terror decretada pelo então presidente George W. Bush e seu vice, Dick Cheney.
Barack Obama herdou esse pacote ao chegar ao poder em 2009. Prometeu desinfetá-lo. No seu segundo dia na Casa Branca assinou três ordens executivas que revertiam os aspectos mais corrosivos da era Bush. Só que ordens executivas não são lei, podem ser anuladas a qualquer dia, basta uma nova. Sem falar que uma das três - o fechamento da prisão de Guantánamo, com seu escandaloso amontoado de detentos vitalícios - continua a desafiar o poder presidencial.
A tortura, sim, foi banida. Além de oficialmente vetada por Obama, a prática vem caindo em desuso até entre os mais recalcitrantes agentes terceirizados nos confins do Afeganistão. Mas é o tipo de mancha que leva tempo para ser apagada.
Por isso seria tão importante jogar um facho de luz no passado. Contudo, ainda permanece sob sigilo, por ordem do Executivo, o tão aguardado relatório de 6.000 páginas elaborado pela Comissão de Inteligência do Senado, baseado nas atividades da CIA no período.
Um outro levantamento sobre os programas de interrogatório e detenção da era Bush, apresentado três meses atrás pelo Constitution Project, um grupo de pesquisa independente, chegou a uma conclusão dura: embora em todas as guerras com tropas americanas tivessem ocorrido brutalidades, nunca antes houve discussões tão precisas e detalhadas envolvendo um presidente e seus assessores diretos sobre a propriedade e legalidade de se causar dor e tormento em detentos sob sua custódia .
O relatório também lista as acrobacias jurídicas criadas para justificar a brutalidade dos interrogatórios e sua supervisão médica. Conclui com uma severa crítica ao governo Obama por obstruir a divulgação plena desse passado recente, crucial para a história futura do país.
Foi com este pano de fundo que o secretário de Justiça, Eric Holder, enviou a tal carta a seu colega russo Alexander Konovalov. Ele garantia que o delator Edward Snowden não seria torturado se fosse extraditado para se apresentar à Justiça americana por ter escancarado os programas de espionagem global do governo. Tampouco seria condenado à morte.
Triste sina, a de Holder, ter de rebater as alegações de um fugitivo da Justiça americana sobre o que esperar se retornasse a seu país. Em outros tempos os temores de Snowden soariam a desculpas ocas.
Hoje, é legítimo comparar sua condição à de outro delator, o soldado Bradley Manning. Manning é o analista de sistemas que fez a famosa derrama de 700 mil vídeos e documentos de inteligência para o WikiLeaks enquanto servia no Iraque. Tinha 22 anos quando foi preso em 2010. Durante os primeiros nove meses de detenção ficou confinado numa solitária sem janela durante 23 horas por dia. Não podia se exercitar. Era obrigado a dormir nu, sem travesseiro nem lençol. Não fora julgado nem condenado.
Dos cerca de 2,3 milhões de pessoas encarceradas nos Estados Unidos, estima-se que 80 mil estejam confinadas em regime de isolamento semelhante - mas todas já cumprindo pena e por representarem algum tipo de ameaça à segurança do presídio.
No caso de Manning, que sempre teve comportamento exemplar e cujo julgamento agora se aproxima do fim, a própria juíza da corte marcial considerou excessivo e extremo o tratamento ao qual foi submetido. Por isso, dos 126 anos de pena máxima a que ele poderá ser condenado, serão deduzidos 112 dias. O confinamento solitário pode ser clinicamente tão perturbador quanto a tortura física , diz o Journal of the American Academy of Psychiatry and Law .
Desde quinta-feira passada a carceragem de Bradley Manning deve ter fugido um pouco das preocupações de Edward Snowden. Após cinco semanas de existência de limbo jurídico numa ala do aeroporto de Sheremetievo, ele recebeu das autoridades russas asilo temporário de um ano. Pode agora iniciar nova etapa de sua incerta odisseia.
Para o governo dos Estados Unidos, foi um choque de realidade. Sempre pairou no ar a ameaça velada de Barack Obama cancelar sua reunião de cúpula com o presidente Vladimir Putin, agendada para setembro, caso a Rússia desse abrigo a Snowden. Semanas atrás, Obama ainda telefonara pessoalmente a Putin para reiterar o peso que os Estados Unidos dão ao caso.
Mesmo assim Putin foi em frente. Deve ter calculado o risco. Esta pode ser a oportunidade talhada para lhe angariar alguma simpatia da juventude europeia e parte da que lhe é hostil em casa. Ademais, fazer frente ao colosso americano sempre reforça a imagem.
Por enquanto os preparativos para a cúpula com Obama prosseguem, pois, como disse o porta-voz do Kremlin, não se pode dançar tango sozinho .
Mas talvez Moscou seja pequena demais para Barack Obama e Edward Snowden circularem livremente e ao mesmo tempo. Plantão dobrado para a National Security Agency.
Ao longo de todo o século XX, nos países do Ocidente, gerações inteiras se habituaram a associar tortura e violação de direitos humanos com o regime comunista soviético fincado em Moscou. A democracia ficava hospedada em Washington. Mesmo depois do colapso comunista de 1991.
Com o ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas, os Estados Unidos se habituaram a viver subordinados à lógica e às demandas de um emaranhado de leis de segurança nacional. Foi através desses imperativos que se infiltraram a tortura, as prisões clandestinas, as práticas condenadas por convenções internacionais. Eram os efeitos colaterais da chamada Guerra ao Terror decretada pelo então presidente George W. Bush e seu vice, Dick Cheney.
Barack Obama herdou esse pacote ao chegar ao poder em 2009. Prometeu desinfetá-lo. No seu segundo dia na Casa Branca assinou três ordens executivas que revertiam os aspectos mais corrosivos da era Bush. Só que ordens executivas não são lei, podem ser anuladas a qualquer dia, basta uma nova. Sem falar que uma das três - o fechamento da prisão de Guantánamo, com seu escandaloso amontoado de detentos vitalícios - continua a desafiar o poder presidencial.
A tortura, sim, foi banida. Além de oficialmente vetada por Obama, a prática vem caindo em desuso até entre os mais recalcitrantes agentes terceirizados nos confins do Afeganistão. Mas é o tipo de mancha que leva tempo para ser apagada.
Por isso seria tão importante jogar um facho de luz no passado. Contudo, ainda permanece sob sigilo, por ordem do Executivo, o tão aguardado relatório de 6.000 páginas elaborado pela Comissão de Inteligência do Senado, baseado nas atividades da CIA no período.
Um outro levantamento sobre os programas de interrogatório e detenção da era Bush, apresentado três meses atrás pelo Constitution Project, um grupo de pesquisa independente, chegou a uma conclusão dura: embora em todas as guerras com tropas americanas tivessem ocorrido brutalidades, nunca antes houve discussões tão precisas e detalhadas envolvendo um presidente e seus assessores diretos sobre a propriedade e legalidade de se causar dor e tormento em detentos sob sua custódia .
O relatório também lista as acrobacias jurídicas criadas para justificar a brutalidade dos interrogatórios e sua supervisão médica. Conclui com uma severa crítica ao governo Obama por obstruir a divulgação plena desse passado recente, crucial para a história futura do país.
Foi com este pano de fundo que o secretário de Justiça, Eric Holder, enviou a tal carta a seu colega russo Alexander Konovalov. Ele garantia que o delator Edward Snowden não seria torturado se fosse extraditado para se apresentar à Justiça americana por ter escancarado os programas de espionagem global do governo. Tampouco seria condenado à morte.
Triste sina, a de Holder, ter de rebater as alegações de um fugitivo da Justiça americana sobre o que esperar se retornasse a seu país. Em outros tempos os temores de Snowden soariam a desculpas ocas.
Hoje, é legítimo comparar sua condição à de outro delator, o soldado Bradley Manning. Manning é o analista de sistemas que fez a famosa derrama de 700 mil vídeos e documentos de inteligência para o WikiLeaks enquanto servia no Iraque. Tinha 22 anos quando foi preso em 2010. Durante os primeiros nove meses de detenção ficou confinado numa solitária sem janela durante 23 horas por dia. Não podia se exercitar. Era obrigado a dormir nu, sem travesseiro nem lençol. Não fora julgado nem condenado.
Dos cerca de 2,3 milhões de pessoas encarceradas nos Estados Unidos, estima-se que 80 mil estejam confinadas em regime de isolamento semelhante - mas todas já cumprindo pena e por representarem algum tipo de ameaça à segurança do presídio.
No caso de Manning, que sempre teve comportamento exemplar e cujo julgamento agora se aproxima do fim, a própria juíza da corte marcial considerou excessivo e extremo o tratamento ao qual foi submetido. Por isso, dos 126 anos de pena máxima a que ele poderá ser condenado, serão deduzidos 112 dias. O confinamento solitário pode ser clinicamente tão perturbador quanto a tortura física , diz o Journal of the American Academy of Psychiatry and Law .
Desde quinta-feira passada a carceragem de Bradley Manning deve ter fugido um pouco das preocupações de Edward Snowden. Após cinco semanas de existência de limbo jurídico numa ala do aeroporto de Sheremetievo, ele recebeu das autoridades russas asilo temporário de um ano. Pode agora iniciar nova etapa de sua incerta odisseia.
Para o governo dos Estados Unidos, foi um choque de realidade. Sempre pairou no ar a ameaça velada de Barack Obama cancelar sua reunião de cúpula com o presidente Vladimir Putin, agendada para setembro, caso a Rússia desse abrigo a Snowden. Semanas atrás, Obama ainda telefonara pessoalmente a Putin para reiterar o peso que os Estados Unidos dão ao caso.
Mesmo assim Putin foi em frente. Deve ter calculado o risco. Esta pode ser a oportunidade talhada para lhe angariar alguma simpatia da juventude europeia e parte da que lhe é hostil em casa. Ademais, fazer frente ao colosso americano sempre reforça a imagem.
Por enquanto os preparativos para a cúpula com Obama prosseguem, pois, como disse o porta-voz do Kremlin, não se pode dançar tango sozinho .
Mas talvez Moscou seja pequena demais para Barack Obama e Edward Snowden circularem livremente e ao mesmo tempo. Plantão dobrado para a National Security Agency.
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