O GLOBO - 14/03
No mercado popular de Alexandria, as barracas de lingerie vendem peças tão ridículas que não dá para imaginar que alguém use aquilo fora de um cabaré cenográfico
Vi uma mulher de burca pela primeira vez em Londres, em meados dos anos 1970: na verdade, um coletivo de mulheres de burca. Eu estava chegando à Harrods quando alguns carros pararam na porta da loja. Deles saltaram umas dez mulheres cobertas dos pés à cabeça, acompanhadas por uns poucos homens de terno e gravata. Pareciam criaturas saídas das “Mil e uma noites” ou de uma aventura do Tintim. Fiquei imaginando se seriam as várias mulheres de algum sultão enquanto as observava fazendo compras. Elas mal e mal olhavam a mercadoria; apenas apontavam o que queriam e os homens que as acompanhavam faziam o pagamento. Nunca vi, nem antes nem depois, alguém comprar bolsa Vuitton a dúzia, e fiquei devidamente impressionada.
Anos depois — décadas depois! — fui à Turquia, e me espantei quando vi quantidades de mulheres com diferentes tipos de xales e véus na Mesquita Azul.
— Eu não sabia que as turcas usavam burca — comentei com o guia.
— Perdão, senhora Cora, mas onde a senhora está vendo turcas? — perguntou o Mustafá. — Essas são turistas, como a senhora.
Claro! Pontos turísticos atraem turistas, mas nem me havia passado pela cabeça que aquelas mulheres todas cobertas estivessem ali a passeio, se divertindo.
Voltei a encontrar muçulmanas conservadoras na Índia. Nas grandes cidades elas usam um xale comprido chamado dupata, e mal se distinguem das hindus, que se vestem da mesma forma. É no interior que os tipos mais diversos de cobertura aparecem. Em Agra e no mercado do Jodhpur vi mulheres até de chador, aquela burca preta do Irã — embora seja perfeitamente possível que, como as “turcas” de Istambul, elas também fossem turistas. O chador, que transforma a mulher numa forma escura e indefinida, triste espécie de ave de mau agouro, contrasta violentamente com a indumentária linda e colorida das indianas, que é sempre um prazer de se ver.
No Egito, porém, chamam a atenção as mulheres que não usam tipo algum de véu. Todas se cobrem de uma ou outra maneira, embora a sociedade, como um todo, me pareça bastante tolerante (ainda!) em relação à forma como cada uma se veste. Durante todo o tempo da minha estadia levei um lenço na bolsa para a eventualidade de ter de cobrir a cabeça, mas isso não foi necessário nem nas mesquitas. Fiquei agradavelmente surpresa com essa postura: na Índia, que em tese é mais liberal do que o Egito, me fizeram vestir uma capa xexelenta para entrar na Grande Mesquita de Nova Délhi.
As egípcias usam de tudo. As moças da classe média mais ocidentalizada cobrem a cabeça com lenços; outras combinam roupas ocidentais com véus elaborados. No City Stars, o gigantesco shopping do Cairo, meninas de cabeça descoberta andam lado a lado com moças tão radicais que, além do niqab (que cobre o corpo todo, deixando uma pequena fresta para os olhos) usam até luvas. O que não se vê, exceto nas turistas sem noção, são saias curtinhas, shorts e blusas sem manga.
O mais estranho é que todas essas moças bem comportadas consomem uma lingerie tão escabrosa que, aqui no Brasil, só seria aceita em sex shops. No mercado popular de Alexandria, onde o uso do niqab é quase universal, as barracas de lingerie vendem peças tão ridículas que não dá para imaginar que alguém use aquilo fora de um cabaré cenográfico; e, no entanto, lá estão as mulheres, cobertas de preto dos pés à cabeça, comprando aquilo sem qualquer constrangimento. Vá entender...
É bom notar que, no Egito, o véu não significa necessariamente opressão. Vi por toda a parte incontáveis garotas de véu... e jeans e tops ultra-apertados. Vi também garotas de preto, com véu na cabeça, namorando descontraídas pelos cantinhos. Vi ainda moças de niqab e luvas estudando, sozinhas, na Biblioteca de Alexandria.
A situação das egípcias é, claro, bastante diferente da situação das mulheres do Afeganistão, da Arábia Saudita ou do Irã, onde a polícia religiosa persegue e espanca as que não estão “adequadamente” vestidas. Em comparação com a maioria das mulheres do mundo islâmico, elas gozam de relativa liberdade: estudam, trabalham, saem sozinhas. Muitas usam véu ou niqab apenas porque se sentem mais seguras na rua com aquele pano todo.
Pudera, não: desde a revolução de 2011, quando a polícia virtualmente desapareceu das ruas, os índices de violência sexual explodiram. Uma mulher não pode sair de casa sem ouvir gracejos estúpidos, sem ser bolinada nos transportes públicos, sem correr o risco de ser estuprada mesmo em meio a multidões — ou sobretudo em meio a multidões. Segundo ativistas ouvidos pelo “The Daily Mail”, de Londres, a Irmandade Muçulmana tem contratado gangues para estuprar ou abusar sexualmente de moças que participam dos protestos contra o presidente Mursi. Nem estrangeiras escapam: Lara Logan, correspondente da CBS, foi atacada por uma dessas gangues enquanto cobria uma manifestação na Praça Tahrir.
Pessoalmente, não tenho queixas. Fui tratada com cortesia e respeito durante toda a minha viagem, mas dei sorte: além de estar constantemente na companhia de dois amigos, já passei da faixa etária que precisa se preocupar com egípcios selvagens. Afinal, alguma vantagem a gente tem que ter ao envelhecer.
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