O Estado de S.Paulo - 12/09
Ao dar entrevistas sobre o 40.º aniversário do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973, fui indagado sobre minha experiência pessoal. Eu morava em Santiago havia mais de oito anos, exilado do Brasil. Lá estudei Economia e me tornei professor da Universidade do Chile. Trabalhei na Comissão Econômica para a América Latina da ONU e na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, a FLACSO.
Nunca deixei de acompanhar o que acontecia no Brasil e fui um dos principais organizadores de um comitê que divulgava as denúncias de torturas e assassinatos cometidos em nosso país. Fizemos um livro sobre o assunto e obtivemos a convocação do Tribunal Bertrand Russell para julgar as violências da ditadura. Com frequência eu recebia novos exilados, ajudando-os a entrosar-se na vida estudantil e profissional, por vezes hospedando-os em casa. Betinho foi um deles. Cesar Maia, outro, a quem recomendei o curso da Escola de Economia e ajudei a conseguir a matrícula. Apesar de distante do dia a dia da Ação Popular e de suas ações no Brasil, avistava-me com dirigentes que passavam por lá, vários deles posteriormente presos, torturados e assassinados.
No ano anterior ao golpe assessorei o ministro da Fazenda chileno, sem me afastar da FLACSO, onde eu era funcionário internacional. Coordenei uma espécie de reforma tributária, uma lei orçamentária e redigi um plano, que nunca saiu do papel, de estabilização da economia chilena, à época com inflação superior a 20% ao mês, desabastecimento, mercado negro generalizado, estrangulamento externo brutal, produção em queda, microeconomia desorganizada no campo e nas cidades, acirramento dos conflitos sociais e políticos. O espectro já fazia sua sombra.
Sem dispor da maioria dos chilenos nem do Congresso, a Unidad Popular havia tentado implantar o socialismo pela via democrática. Socialismo de verdade, com estatização dos grandes meios de produção, das finanças e do comércio e uma reforma agrária radical, que desapropriava fazendas acima de 40 hectares. O intento se frustrara. Era preciso, então, encontrar uma saída política que preservasse a democracia e permitisse consertar a economia. Mas, como diria São Lucas, a porta era estreita.
O golpe começou de manhã, com o bombardeio aéreo ao palácio presidencial e posterior invasão, seguidos do suicídio de Allende. No fim da tarde soubemos que o comandante do Exército, general Augusto Pinochet, até então considerado legalista, assumira a chefia. Na televisão, mostrou sua cara de buldogue enfezado, voz desafinada e espanhol rudimentar. Na mesma TV, outro general delirava, afirmando que havia no Chile um exército comunista de 10 mil estrangeiros. Estimulava a população a denunciá-los.
Passei a atuar como elo entre, de um lado, as organizações internacionais que lá operavam - a maioria ligada à ONU, as quais tiveram papel admirável naqueles dias de loucura assassina - e, do outro, estrangeiros refugiados, que eram muitos. Cheguei a negociar a abertura da pequena Embaixada do Panamá para receber asilados brasileiros. Logo eram mais de uma centena. Levava alguns no meu carro e deixava lá alimentos e remédios.
No fim de setembro, uma patrulha militar foi prender-me na FLACSO. Ante a informação de que eu não estava (embora estivesse) e da reação indignada do nosso diretor, pois o prédio era legalmente território estrangeiro, os soldados se foram. Passei, então, sem asilo formal, a dormir na casa do embaixador da Itália. Diante do protesto pela tentativa de prisão, pois eu tinha imunidade diplomática, a Chancelaria chilena acabou pedindo desculpas e renovou meu visto oficial, com a garantia de que não haveria problemas. Por isso, em 14 de outubro rumei para o aeroporto com a minha família. Estava claro que o mais prudente era sair do Chile. A prisão era questão de tempo - e não de muito tempo.
Na sala de embarque, já carimbados os passaportes, em companhia de minha mulher, carregava no colo meu filho de 3 meses e falava com minha filha de 4 anos, apontando o avião que nos esperava na pista. Subitamente fomos interrompidos por um policial civil, que anunciou minha prisão. Caíra numa armadilha.
Levaram-me para a ala de desembarque, algemado. Sentado numa cadeira no corredor, trocava olhares furtivos com os passageiros que chegavam. Aprendi na hora que, quando se mexem os pulsos, as algemas apertam ainda mais, machucam. Passei a noite na sede da polícia civil, no sofá de plástico de uma sala, onde os detetives jogavam ludo e conversavam aos gritos. Gentilmente me ofereceram um cobertor. Enquanto eu falava com eles sobre futebol e o Palmeiras, a fim de disfarçar a angústia. No final consegui cochilar.
De manhã, num interrogatório algo idiota, percebi que a prisão se deveria à interferência do governo brasileiro. Cresceu minha inquietação. Fui então levado para o Estádio Nacional, transformado em presídio e lugar de torturas e assassinatos. Deveria ser interrogado pelo Exército, mas acabei saindo de lá antes disso, por autorização de um major chamado Mario Lavanderos, sob o compromisso de que voltaria no dia seguinte, o que, obviamente, não fiz. A experiência do estádio está a merecer outro artigo.
Fiquei na Embaixada da Itália quase 200 dias, sem salvo-conduto. O general Herman Brady, comandante de Santiago e brucutu emergente, dizia não se conformar com o fato de eu não ter sido "interrogado". E o relatório manuscrito de um agente brasileiro dizia que o governo chileno estava à minha procura e assegurava, com o peculiar humor dos torturadores, que eu seria "bem tratado". O major Lavanderos, que autorizou a minha saída do estádio, foi morto a tiros dois dias depois, num quartel do Exército. A perícia demonstrou que não foi suicídio.
Eram tempos brutos. Eram tempos sórdidos. A defesa da democracia me levou ao duplo exílio, ao duplo desterro, do Brasil e do Chile. Os valores que me fizeram resistir estão vivos em mim e definiram para sempre a minha vida de homem público.
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