O GLOBO - 12/09
Do ano novo ao Dia do Perdão os judeus rezam para serem inscritos no Livro da Vida. Este ano, enquanto entoava a oração mais grave sobre quem viverá neste novo ano e quem, na natureza da finitude, perecerá neste ano, saltou sobre meu livro de rezas um lacerdinha. Ele saíra de um painel de plantas à minha frente e começou, no modo que lhes é singular, a deslocar-se lentamente sobre as palavras hebraicas que diziam: "Quem viverá e quem morrerá?; quem pelo fogo, quem pela água?; quem pela doença, quem pelo acidente?"
Para quem não sabe, o lacerdinha era um inseto muito comum no Rio e que por questões de adaptação a esta cidade tão difícil deve estar em extinção. Não via um deles há muitos anos. Em homenagem ao ícone dos políticos da época, ganharam esse nome por sua capacidade de atazanar a vida dos pobres mortais, apesar de a analogia hoje não ser de todo apropriada, já que, infelizmente, os políticos são uma espécie em franca expansão e mutação. Confesso que para mim os lacerdinhas eram uma questão pessoal: para além do asco, à semelhança de políticos, atacavam em bando e tinham predileção pela cor branca tal qual a obsessão de contraventores por esta coloração. Quantas vezes na infância sofri por conta da atração que tinham pela esclerótica (a parte branca que circunda a pupila) onde deixavam uma coceira-ardência inesquecível. Com todo esse passado entre nós, lá estava ele passeando pelo meu livro e bastaria um único e leve movimento enquanto se aventurava pela dobradura da encadernação para imprensá-lo para sempre junto à bela liturgia sobre a vulnerabilidade da vida.
Comecei a refletir sobre a frugalidade de tal decisão e seus paralelos com minha própria inserção no universo. Todos nós queremos viver mais um e muitos anos em longevidade. Li há pouco um estudo sobre pessoas que vivem para além dos 100 anos. Uns diziam que seu segredo era fumar e beber enquanto outros diziam que era fazer esportes e levar uma vida saudável; uns que era viver sem muita preocupação e outros que era viver uma vida regrada; uns que era uma vida sexual exuberante e outros que era viver uma vida celibatária (mulher de 105 anos!). Enfim parece não haver um segredo único para evitar que o livro se feche e nos esmague definitivamente.
Há no Talmude, no entanto, uma bizarra opinião sobre o que seria esse segredo: diz Rabi Iehuda que a vida se prolonga quando prolongamos as preces, a mesa e o tempo no banheiro. Se por um lado peculiar, talvez haja aqui uma relevante lição sobre vida e morte. Acho que Rabi Iehuda está tentando dizer que a vida se prolonga verdadeiramente não no controle dos anos, mas naquilo que se pode prolongar na rotina. Independentemente dos anos vividos, quem viverá este ano num ritmo que prolonga sua vida? Ou diremos no fim deste ano que tudo está passando rápido demais ao darnos conta que mais um ciclo se passou?
Talvez as preces sejam nossa relação com o Criador e com a vida. Prolongar mais esta dimensão traria longevidade não dos anos, mas do dia. Prolongar a mesa seria estar-se mais ligado à família, amigos e comunidade. Quanto mais vivemos apenas para nós, mais rápido passa o tempo, e quanto mais nos envolvemos com o outro, mais prolongadas são as experiências de vida. E prolongar o tempo no banheiro seria ter mais tempo para si. É muito estranho, mas muitas vezes o banheiro é o único lugar onde podemos estar a sós. Muitas mães, muitos trabalhadores, empresários ou mesmo qualquer um, sabe que este é o único lugar onde o telefone e as urgências do outro ficam anuladas.
Prolongar o tempo com Deus (meditar e alegrar-se); prolongar tempo com comunidade (viver para além de si); e prolongar o tempo de re-tiro e de tempo para si, isso sim prolonga a vida.
Porque, do lado de fora, a vulnerabilidade da vida é muito grande. Num único momento, num único impulso e qualquer lacerdinha tem seu édito escrito. Encontrar favor e mercê é sempre uma possibilidade, mas não devemos contar com isso. O que, sim, podemos fazer é uma boa gestão, que prolonga enquanto durar.
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