O GLOBO - 01/09
Por mera associação visual de imagem, o flagrante de Fortaleza trouxe à mente uma foto — essa sim, icônica — captada em Little Rock, no estado do Arkansas, 56 anos atrás
É sempre imprevisível o desdobramento que pode ter na vida de uma pessoa até então desconhecida o fato de ter sido fotografada, por acaso, no lugar errado e na hora errada. Ou no lugar certo e na hora certa. A História está coalhada desse tipo de instantâneo que transforma o protagonista em símbolo de algo maior do que ele.
Nesta linha, vale esmiuçar uma foto estampada na primeira página da “Folha de S.Paulo” desta terça-feira. Ela mostrava, em primeiríssimo plano, um homem de estatura forte e fisionomia tensa. Sua linguagem corporal era defensiva. Mantinha o olhar fixo em algum ponto morto, talvez para evitar contato visual com a hostilidade à sua volta. Sua alegre camisa xadrez amarela parecia destoar do ambiente carregado.
Era negro, cubano e médico.
No flagrante captado pelo fotógrafo, ele recebia apupos de duas mulheres que estreitavam sua passagem. Brancas, ainda jovens e de fino trato, destacavam-se pelos jalecos. Faziam parte de um grupo de médicos cearenses. Com as mãos em torno da boca para ampliar o eco das ofensas, xingavam o cubano em coro com outros só parcialmente enquadrados. Eram o retrato da intolerância.
Como foi fartamente noticiado, o episódio ocorreu em Fortaleza, no fim do primeiro dia de treinamento dos 96 recém-desembarcados estrangeiros (79 dos quais cubanos) do programa Mais Médicos. No Ceará, onde 701 dos municípios foram preteridos por profissionais brasileiros, o Sindicato dos Médicos estadual decidira protestar contra a contratação de cubanos e cercara a Escola de Saúde Pública da cidade, onde se realizava o curso. Houve tumulto, empurra-empurra, ovo voando.
Ao fim da aula inaugural, os cubanos, assustados, se viram cercados e obrigados a passar por um corredor humano de colegas de profissão brasileiros que os vaiavam e chamavam de “escravos”, “incompetentes”. Palavras de ordem como “Voltem para a senzala” foram entoadas contra os estranhos ao ninho.
Por mera associação visual de imagem, o flagrante de Fortaleza trouxe à mente uma foto — essa sim, icônica — captada em Little Rock, no estado do Arkansas, 56 anos atrás. Ela transformou o rosto de uma adolescente de 15 anos na imagem do ódio racial nos Estados Unidos e fez da fisionomia da outra adolescente retratada a face da tenacidade negra. À época, nenhuma das duas jovens americanas sequer notou o instante em que o fotógrafo do “Arkansas Democrat” virou suas vidas pelo avesso.
Foi no dia 4 de setembro de 1957, seis anos antes de o pastor Martin Luther King levar para Washington seu célebre discurso-sonho de uma América menos desigual. Elizabeth Eckford era uma adolescente reservada. Estava entre os nove alunos negros de Little Rock selecionados para cumprir a ordem judicial de integração racial na cidade. Mas se perdeu do seu grupo e precisou marchar sozinha em direção ao portão principal da melhor escola local, até então reservada a alunos brancos.
À sua frente, teve a passagem barrada por soldados armados da Guarda Nacional. Às suas costas, uma pequena multidão começou a lhe lançar xingamentos. “”Vamos linchá-la”, “Dá o fora, macaca”. Uma senhorinha branca a quem pediu ajuda lhe cuspiu no rosto.
Ao tentar sair dali sem correr, como lhe ensinara a mãe, teve um séquito de jovens no seu encalço, além de três adolescentes coladas no calcanhar.
Quando o flash do fotógrafo disparou, uma das três entoava o bordão “Vai pra casa, nigger. Volta para a Africa”. Era Hazel Bryan, de 15 anos, esbelta, coquete e popular aluna do colégio segregado. A foto captou-a de olhos e sobrancelhas franzidos e de boca aberta contorcida pela raiva. E, em primeiro plano, via-se a estudante negra Elizabeth, de vestido de algodão branco, apertando um fichário e um livro contra o peito. Prosseguia sua caminhada de cabeça erguida, com o medo escondido atrás de óculos escuros.
Por mero acaso e apesar da pouca idade, ambas foram assim catapultadas para a História — Hazel como o retrato do ódio racial, Elizabeth, o da determinação — e tiveram o resto de suas vidas marcado por aquele instantâneo.
O flagrante do episódio cearense difere em quase tudo do caso que entrou para a história dos direitos civis americanos como “Os Nove de Little Rock” — na natureza, no significado, na dimensão, na consequência. Aproximam-se apenas por humanizarem de forma indelével, para o bem ou para o mal, um noticiário até então sem rosto.
No caso de Little Rock, as duas protagonistas eram meninas que repetiram em público o que aprenderam em casa. No caso de Fortaleza, são todos adultos — o cubano negro, assustado, mais tarde identificado como Juan Delgado, de 49 anos, que já trabalhou quatro anos no Haiti — e as duas médicas brasileiras retratadas aos apupos. Olhando pelo retrovisor, talvez preferissem ter ficado fora da foto. Ou do foco.
Em tempo: segundo dados do Censo de 2010, somente 1,5% dos médicos brasileiros se autodenomina negro e 13,4% se autoclassificam como pardos. Já no cômputo geral dos agora mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, contudo, 50,7% se autodeclaram pretos ou pardos.
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