O ESTADÃO - 01/09
A par das motivações que estão por trás de suas ações diretas e truculentas, é inegável que os black-blocs afrontam a lei e rompem a textura do Estado de Direito. Pode-se até argumentar que não são meros vândalos e baderneiros, ao inseri-los no ciclo de protestos do final dos anos 90, quando o grupo ganhou visibilidade nas manifestações contra a Organização Mundial do Comércio, em Seattle (a Batalha de Seattle/1999) e, em Gênova (2001), quando morreu o primeiro ativista do movimento antiglobalização, Carlo Giuliani. Na moldura brasileira, porém, a indignação do grupo não tem como lastro um episódio de envergadura nem o pano de fundo de profunda crise econômica, como a que abalou Nações em 2008. O movimento Ocuppy Wall Street, lembre-se, tinha como foco protestos contra a desigualdade econômica, a influência de empresas e bancos no governo americano, sob a tessitura da crise financeira internacional. A situação deflagrou movimentos congêneres nos países assolados pela borrasca financeira. Por aqui, o conceito dos black-blocs entra mais na esfera de barbárie, convergindo para o que Elias Canetti, no clássico Massa e Poder, classifica como malta: “um grupo de homens excitados que nada desejam com maior veemência do que ser mais; o que lhes falta de densidade real suprem por intensidade”. A falta de discurso é suprida pela estética da destruição.
Não se trata de proibir manifestações, mas de obedecer aos dispositivos constitucionais, principalmente o inciso IV do artigo 5º da CF, que estabelece: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; a este se segue a regra do inciso XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independente de autorização, desde que não frustrem outra reunião convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Fica patente que as máscaras cobrindo as feições dos militantes lhes conferem a condição de anônimos, enquanto outros pré-requisitos da ordem são desprezados, como a atitude pacífica, o espírito desarmado, o dano aos patrimônios público e privado, o direito de outros de irem e virem. A visibilidade e a transparência devem integrar o caráter público do poder do Estado, na medida em que constituem dispositivos para distinguir o justo do injusto, o lícito do ilícito, o certo do errado, a cidadania ativa de maltas oportunistas. Se portam demandas legítimas de comunidades, se iluminam as consciências com as luzes do civismo e da ética, por que agir sob disfarce? Que coragem é esta, repartida entre pernas e braços que funcionam como aríetes de ferro e aço e feições protegidas com lenços pretos?
Tentemos entender a inclinação civilizatória pela violência. Ortega Y Gasset chegou a sinalizar a propensão das massas para a subversão, fruto do que chamava de era das nivelações: “nivelam-se as fortunas, nivela-se a cultura entre as diferentes classes sociais, nivelam-se os sexos e até os continentes”. Vejam só. O filósofo espanhol fez tal peroração no final da segunda década do século passado, quando descreveu o homem-massa, com sua vida sem peso nem raiz, “deixando-se arrastar pelas correntes”, sem resistir aos redemoinhos que se formam nas artes, na política ou nos usos sociais. Pois bem, apesar dos ganhos civilizatórios em quase todas as frentes a serviço da vida humana, particularmente nos campos da educação e saúde, as mais perversas formas de barbárie têm se desenvolvido nos intestinos do Estado moderno. E pior é ver que a democracia tem fracassado na promessa de debelar o poder invisível que se incrusta em todos os quadrantes do planeta, sob a forma da quebra da lei e da ordem, das ondas da vertiginosa criminalidade, do declínio dos valores morais e cívicos, dos conflitos étnicos e religiosos, do incremento dos negócios das drogas e das armas, enfim, do esvanecimento dos elementos básicos da civilização. O que mudou na essência do discurso de Gasset? Piorou. Na esfera do homem-massa, apenas mudou a dimensão. Antes integrado às vastas multidões que se deixavam levar ao sabor das correntes, hoje a pessoa se refugia em núcleos de referência, organizados pela cadeia de especialização que a sociedade foi impelida a buscar na esteira do progresso técnico.
A foto do presente flagra a violência dos caras pretas. A legenda, porém, é a mesma que Nietzsche gritou daquele penhasco de Engadine, nos Alpes suíços: “vejo subir a preamar do niilismo”.
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