O GLOBO - 21/07
Vou me deitar de manhã, com a sensação de que o mundo está se contorcendo
Arto Lindsay veio aqui em casa. Fazia um tempo que a gente não se via. Gozado é que vi, da sacada, a primeira parte dos efeitos colaterais da manifestação no Leblon ao lado de outro americano que vive no Brasil, Mark Lambert, também músico (muito bom músico), que vem aqui para a gente conversar em inglês, e isso menos para desenferrujar minha eloquência do que para ver se supero minha grande falha, que é a quase incapacidade de entender o inglês falado. Víamos as luzes vermelhas do engarrafamento e os helicópteros. Por cima do mar, eles lançavam um facho que fazia brilhar as marolas. Mark e eu vimos que se tratava de um reforço à vigília que se mantém em frente à casa de Sérgio Cabral. Conversamos sobre assuntos brasileiros e americanos: as passeatas, a absolvição de George Zimmerman, que matou Trayvon Martin, o lado Paraty da família de Thomas Mann. Tudo em inglês — e eu tinha de tentar falar menos para ver se entendia talvez dois terços do que ele dizia. Mas no geral tudo soava como uma conversa: eu tenho a insuportável capacidade de parecer que estou entendendo. Depois que Mark saiu e Arto chegou, só se falou português (nunca fui capaz de falar inglês com Arto, que é quase mais de Garanhuns do que da Carolina do Norte — e quase mais do Rio e da Bahia do que de Nova York).
Ele e eu deveremos estar voltando de Garanhuns (onde ele cresceu mas aonde não vai há mais de 40 anos) quando este artigo estiver impresso. Ontem, aqui, ele estava impressionado com a foto sexy na capa da “Rolling Stone” do garoto checheno que colocou os explosivos na maratona de Boston. Quando ele saiu, já depois da meia-noite, abri minha caixa de e-mail e dei de cara com uma mensagem dele. Nela, o link da Mídia Ninja, que acompanha pela internet, em áudio e vídeo, os protestos em tempo real. Tudo estava acontecendo bem perto. Já contei aqui como amigos meus se queixaram de a polícia carioca ter agido mal no dia da passeata grande, tanto na frente do Piranhão quanto na Lapa. Parece que o ritmo que se formou a partir das primeiras manifestações, em que a polícia quis mostrar que não agiria de forma agressiva — e aí um grupo de pessoas atacou a Assembleia Legislativa —, e as reações exageradas que ela exibiu em oportunidades subsequentes não contribuem para a possível pacificação das ruas da cidade, abrindo espaço para um diálogo claro sobre o que fazer das energias liberadas pelo movimento. Os sons e imagens que a Mídia Ninja transmitia diziam muito dos ânimos que movem o Rio.
Na verdade, Arto me enviou três links: dois da Mídia Ninja (suponho: o segundo se chamava ninja2) e um do Black Bloc. Este no Twitter. Havia uma série de posts criticando a polícia, ridicularizando o governador, atacando a imprensa — sobretudo a TV Globo — e estimulando os eventuais leitores a protestar na chegada do Papa. As imagens da ninja1 eram puro expressionismo abstrato, com fragmentos sucessivos de objetos inidentificáveis captados em meio a algum movimento — embora o som fosse claro e inteligível. A pessoa que segurava a câmera comentava o que via. A truculência da polícia, sua covardia, era sublinhada. Fui para a ninja2. A imagem era mil vezes melhor. O câmera-narrador também frisava que a polícia atacara sem muita razão para isso. Era bastante bonito porque o jeito desse narrador era o de um partícipe, não o de um repórter externo ao ato ou isento. Sentia-se o gosto da aventura. Tudo muito juvenil. Ao lado das imagens corriam posts curtos com perguntas, encorajamentos e observações. “Bombinha de São João. Nada comparado às bombas deles”. Uma moça se aproxima e diz, emocionada: “prenderam o Rafuco”. Ao que o câmera e seus próximos reagem com preocupação. Logo vejo nos posts que o nome se escreve Rafucko: todas as pessoas que postam o conhecem. Uma se oferece para consolá-lo. Imagino que seja o Cohn-Bendit de 2013. Todos decidem ir para a 14ª DP, para onde Rafucko tinha sido levado. Na porta, em meio à confusão, um pai que veio buscar o filho que fora preso diz que há manipulação política e que Garotinho está por trás da incitação à baderna. Ligo a TV e vejo o contraponto na GloboNews. No Panamá, armamento pesado (e antiquado) foi encontrado em navio norte-coreano vindo de Cuba. Depois acho o Rafucko na web. Muito engraçado e muito legal. No link do Black Bloc vejo um vídeo do cara “viciado em manifestação”. Uma amiga (ou irmã) tenta libertá-lo da compulsão com gás lacrimogêneo numa bombinha para mantê-lo em casa. Ele repete slogans.
Vou me deitar de manhã, com a sensação de que o mundo está se contorcendo. Imagino que vou olhá-lo de Garanhuns, com Arto. E voltar para comentar com Mark, em inglês.
Um comentário:
Muito interessante.
Caetano é realmente ótimo!
Serviu de grande inspiração para composição e produção das minhas músicas.
Abraço,
Zuza Zapata.
bitly.com/zuzazapataoficial
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